Inconstitucionalidade de lei sobre ‘ideologia de gênero’ é vitória contra Escola Sem Partido
A luta contra as tentativas de mordaça praticadas pelo movimento Escola Sem Partido — e todas as suas formas de censurar e criminalizar o magistério em todo o país — tem sido uma das pautas mais caras à Contee nestes últimos anos. E essa luta conquistou uma importante vitória na última sexta-feira (24), data em que o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou, por unanimidade, que é inconstitucional a lei da cidade de Novo Gama (GO) que proibia qualquer referência sobre “ideologia de gênero” nas escolas, além de submeter todo material didático a uma “análise” antes de sua distribuição aos estudantes.
O julgamento foi uma resposta à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), de autoria da Procuradoria-Geral da República, contra a lei do município goiano. No processo, iniciado em 2017, o então procurador Rodrigo Janot alegava que a Constituição veda a censura e garante o pluralismo de ideias e concepções pedagógicas e o direito à liberdade de aprender e ensinar. O procurador ressaltou ainda a laicidade do Estado e a competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional.
Segundo Janot, a norma em questão “é uma das diversas leis de municípios brasileiros que (…) lançam mão do conceito indeterminado apelidado de ‘ideologia de gênero’, para vedar ensino da diversidade sexual”. Ele acrescentou que esse tipo de lei “enfraquece o sistema educacional brasileiro, ao torná-lo menos plural e igualitário. (…). Conhecimento, liberdade e democracia são valores que se devem efetivar no espaço da escola para que a educação nunca perca sua dimensão cidadã”.
O combate a uma pretensa — e inexistente — “ideologia de gênero” tem sido o braço com que o Escola Sem Partido atrai uma parcela da população, sobretudo a mais conservadora, à sua causa. Foi a fonte, por exemplo, de uma das mais disseminadas e estapafúrdias fake news que, espalhadas pelas redes sociais e aplicativos de mensagem, contribuíram para a eleição de Jair Bolsonaro à Presidência da República: a existência de um suposto “kit gay” que teria sido distribuído às escolas no então ministério de Fernando Haddad à frente da Educação. Tratava-se de uma forma pejorativa e mentirosa de se referir ao material Escola Sem Homofobia, encomendado pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados ao Ministério da Educação (MEC) e elaborado por um grupo de ONGs especializadas, com o objetivo de promover “valores de respeito à paz e à não-discriminação por orientação sexual”. O material, aliás, nem chegou a ser distribuído porque, diante da polêmica na época, em 2011, foi vetado pela presidenta Dilma Rousseff.
Em 2014, os delírios sobre a “ideologia de gênero” voltaram à carga, com a pressão ultraconservadora interferindo diretamente no texto do Plano Nacional de Educação (PNE) e, por consequência, nas discussões posteriores dos planos municipais e estaduais. Vale lembrar que o termo tão alardeado jamais apareceu em qualquer estudo das ciências humanas e começou a ser disseminado apenas no debate do PNE, pelos próprios fundamentalistas. Essa é uma das razões pela qual a vitória contra a lei de Novo Gama é tão importante: porque devolve à juventude o direito de acesso à informação e restitui à educação seu caráter de promotora da igualdade de gênero, do respeito à diversidade e da cidadania, roubado do PNE. E isso, ainda mais num momento em que a violência de gênero aumenta (e se agrava em tempos de isolamento social), é uma grande conquista.
Há outro ponto de destaque, contudo. Como dito, a cruzada contra a discussão das questões de gênero nas escolas, bem como do necessário enfrentamento ao machismo, à homofobia e à transfobia — e o papel crucial da educação nesse processo —, é mais do que uma das bandeiras do Escola Sem Partido. É, na verdade, a forma que o ESP encontra de atrair mais adeptos. Enquanto isso, segue em sua perseguição ideológica (inclusive com ameaça à integridade física dos docentes, como postado em redes sociais), acusando os professores de doutrinação política quando quem a promove é o próprio movimento. Por isso, o julgamento da ADPF pode ser considerado uma vitória contra o ESP. E também uma vitória da própria Contee, pioneira nessa discussão e autora da primeira Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) contra o Escola Sem Partido: no caso, a Lei da Mordaça do estado de Alagoas, suspensa liminarmente deste 2017 por ação da Confederação junto ao STF.
Nessa ADI, Contee já apontava que “tal lei é contrária aos princípios da Constituição Federal que prevê, dentre outras coisas, liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino, e gestão democrática do ensino público, na forma da lei”. A ADI, sob o número 5537, indicou também que a lei afronta os principais tratados internacionais, dos quais o Brasil é signatário, tais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto de San José da Costa Rica.
De forma análoga ao que fez quanto à lei de Novo Gama, a PGR, em seu parecer sobre a ação movida pela Contee, considerou inconstitucional a tentativa de censurar e criminalizar professores e destacou que a “lei alagoana restringe o conteúdo da liberdade constitucional de ensino, pois suprime manifestação e discussão de tópicos inteiros da vida social, quando proíbe o docente de ‘introduzir, em disciplina ou atividade obrigatória, conteúdos que possam estar em conflito com as convicções morais, religiosas ou ideológicas dos estudantes ou de seus pais ou responsáveis’”.
As duas decisões são passos essenciais para barrar todas as propostas similares que tramitam no Congresso Nacional e nas assembleias legislativas e câmaras municipais de todo o Brasil. E a Contee continuará na sua batalha em defesa de uma educação democrática, inclusiva, e contra todos os tipos de mordaça.
Por Táscia Souza