Indígenas Guarani Kaiowá são baleados em ataques após retomadas de terras no MS: ‘estão prometendo um massacre’
'Fazendeiros estão atirando para matar' alerta a Aty Guasu, Grande Assembleia Guarani Kaiowá: 'Estamos pedindo socorro'
Ao menos dois indígenas do povo Guarani Kaiowá foram baleados em ataques feitos por homens em caminhonetes em diferentes regiões do Mato Grosso do Sul entre domingo (14) e esta segunda-feira (15). Os atentados aconteceram após territórios ancestrais já delimitados, porém com a demarcação estagnada, terem sido retomados por indígenas neste fim de semana. As áreas estão sobrepostas por fazendas.
Na noite de sábado (13) para domingo (14) um grupo de indígenas ocupou uma área da Terra Indígena (TI) Panambi-Lagoa Rica, na cidade de Douradina (MS). Por volta das 14h, ataques armados foram registrados não só na área retomada, mas nas quatro comunidades que compõem atualmente o território: Itay, Guyra kamby’i, Gaaro’ka e Tajasu Iguá.
O indígena Paulo Aquino, de 56 anos, tomou um tiro na perna esquerda. A nhandesy (rezadora) Sheila Kaiowá, de 63 anos, sofreu ferimentos no braço e no pé. Um vídeo divulgado pelo Coletivo Terra Vermelha mostra uma série de caminhonetes avançando numa estrada de terra e indígenas correndo enquanto são ouvidos sons de disparos.
A cerca de 110 km dali, na cidade de Caarapó (MS), outra área cuja demarcação está estagnada, pertencente à TI Amambaipeguá I, foi retomada por indígenas na madrugada desta segunda-feira (15).
Já no início manhã, um atentado com características similares sitiou a área e alvejou, também na perna, a jovem Daiane Guarani Kaiowá. Às 12h o Brasil de Fato conversou com uma liderança da área e o socorro ainda não havia chegado.
Em nota a Aty Guasu, Grande Assembleia Guarani Kaiowá, denunciou que o ataque foi feito por “fazendeiros da região, que em bandos invadiram nossa comunidade”.
“Eles estão atirando para matar e prometendo um massacre. Estamos pedindo, urgentemente, socorro”, alerta a organização indígena.
Em um post no Instagram, a Aty Guasu marcou o perfil do presidente da República. “O povo Guarani e Kaiowá teve paciência em esperar quando Lula falou que seríamos prioridade. Agora faremos várias retomadas e estamos enfrentando derramamento de sangue e morte!”, diz a postagem. “Agora responde para nós Lula”, demanda a Aty Guasu.
Procurada pela reportagem, a Polícia Federal informou estar “acompanhando de perto o caso, com a Funai [Fundação Nacional dos Povos Indígenas] e o MPF [Ministério Público Federal], que também se encontram no local. No momento, deu-se início à fase investigatória para esclarecimento do fato”.
A Funai foi questionada sobre a situação atual e sobre o processo demarcatório de ambas as TIs, mas não respondeu até o fechamento da matéria.
Panambi-Lagoa Rica
Desde 2011, a Terra Indígena Panambi-Lagoa Rica está oficialmente reconhecida, identificada e delimitada em 12,1 mil hectares. Ao longo destes 13 anos, no entanto, o processo demarcatório não avançou – ainda falta a publicação de uma portaria declaratória e da homologação.
É por conta destes “longos anos de espera”, “sobrevivendo em barracos de lona, sem as mínimas condições de vida, sofrendo ameaças e perseguições por parte do latifúndio que nos cerca com sua produção de grãos” que, segundo nota da Aty Guasu, um grupo de indígenas decidiu retomar parte de seu território ancestral.
“A Funai, até o presente ano, ainda estava debruçada sobre o processo de contestações dos fazendeiros, que é um passo que deveria ter sido finalizado ainda em meados de 2012, 2013”, destaca Matias Hampel, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
“Essa negligência com o povo Kaiowá gerou dois problemas. O primeiro problema é que os fazendeiros passaram a atacar os indígenas. E o segundo é um processo judicial, que está a nível do Tribunal Regional Federal-3, que questiona inclusive a validade do processo de demarcação”, elenca.
Este cenário, conjugado com a pressão ruralista no Congresso Nacional, que aprovou a Lei do Marco Temporal (14.701/23) e tenta reforçá-la em uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC 48/23), escalou a tensão no Mato Grosso do Sul.
“Isso tem gerado um sentimento nos indígenas de que não só o governo não vai homologar as terras, como a aplicabilidade do marco temporal ou algum desses outros instrumentos de morte, como eles chamam, vai afetar diretamente os processos de demarcação”, avalia Matias Hampel.
Os ataques deste domingo e segunda-feira se somam a um histórico de assassinatos de indígenas nesta mesma região. “Lembramos que em 2015, estes mesmos grupos de fazendeiros já atacaram a comunidade de Guyrakamby’i e que só não cometerem uma chacina porque o Ministério Público Federal (MPF) impediu. Solicitamos urgente ajuda e que o Estado garanta nossa segurança, pois estamos em nosso território ancestral”, destaca a Aty Guasu, em nota.
Os indígenas se referem a um ataque feito por fazendeiros no distrito de Bocajá em 2015, que resultou na morte de Semião Fernandes Vilhalva. Na ocasião o MPF-MS abriu um inquérito para investigar a possível formação de milícia privada de proprietários rurais.
O caso veio a público depois da divulgação de mensagens de Whatsapp em que o presidente do Sindicato Rural de Rio Brilhante, Luís Otávio Britto Fernandes, convocou “produtores rurais para se unirem e se deslocarem até o local” onde havia “fazenda invadida”.
Caarapó e a memória de um massacre
Delimitada em 2016, a TI Dourados Amambaipeguá I abrange 55,4 mil hectares. Os Guarani Kaiowá vivem, no entanto, confinados em uma área de cerca de 3 mil.
Os tiros disparados de dentro de caminhonetes nesta segunda-feira (15) remetem a um episódio acontecido no mesmo local, oito anos atrás. O Massacre de Caarapó aconteceu em resposta à retomada de um território tradicional sobreposto pela Fazenda Yvu.
Na ocasião, cerca de 70 pistoleiros se encontraram na sede da Coamo, uma das maiores cooperativas agroindustriais da América Latina. O ataque foi feito a mando dos fazendeiros Nelson Buainain Filho, Virgílio Mettifogo, Jesus Camacho, Dionei Guedin e Eduardo Yoshio Tomonaga. O indígena Clodiodi Aquileu Rodrigues de Souza foi assassinado, outros seis ficaram feridos e um foi preso.
De lá para cá, a violência não cessou. Em fevereiro deste ano, cerca de cinco meses depois de terem erguido, em mutirão, uma oga pissy (casa de reza, em guarani) no território retomado de Kunumi Verá, os indígenas viram o espaço sagrado ser incendiado e reduzido a pó. Os autores do fogo não foram identificados.
Edição: Felipe Mendes