Intervenção Federal do Rio não deve ser copiada, diz estudo
“Temos a convicção de que trilhamos um caminho difícil e incerto, mas cumprimos a missão.” Foi assim que o general Braga Netto avaliou a intervenção federal de dez meses no Rio de Janeiro na cerimônia de seu encerramento, em 27 de dezembro do ano passado. O ponto de vista do militar, que foi responsável pela Segurança Pública do Rio nesse período, contrasta com o balanço do Observatório da Intervenção.
Após acompanhar diariamente os resultados da presença das Forças Armadas no estado por 320 dias, o Observatório lançou nesta quinta-feira (14/2), dia em que a execução da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes completa 11 meses, um relatório com dados que explicitam os impactos da intervenção federal.
Intitulado “Intervenção Federal: um modelo para não copiar”, o documento reúne a avaliação dos especialistas que compõem o Observatório, liderado pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC/UCAM).
A conclusão dos pesquisadores se baseia no fato de que a gestão da Segurança Pública do Rio pelo Gabinete de Intervenção Federal não registrou mudanças significativas na segurança pública do Estado – a despeito da injeção de 1,2 bilhão de reais de recursos da União. Em comparação com o mesmo período do ano anterior (16/2 – 31/12), as mortes violentas tiveram uma redução de 1,7%. Apesar de uma queda der 9,4% na capital e 6,5% na Baixada Fluminense, região metropolitana do Rio, o indicador de mortes violentas foi compensado por um aumento de 15,8% no interior do estado.
O deslocamento de manchas criminais para regiões fora dos holofotes já havia sido observado durante a instalação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), no período que antecedeu a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos.
Fenômeno semelhante ocorreu com os roubos de carga, cuja redução foi elencada como prioridade pelo comando da intervenção. Em 2017, o impacto econômico desse tipo de crime para o estado foi estimado em 8,3 bilhões de reais pela Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan).
Operações de combate a essa prática chegaram a mobilizar mais de 5 mil agentes das Forças Armadas, Polícia Militar e Polícia Civil em junho do ano passado. Os esforços tiveram resultados, e os indicadores tiveram queda de 17,2%. Porém, novamente, com forte disparidade entre a realidade da região metropolitana e o interior do estado, onde chegaram a aumentar 46,5%. Além disso, o último trimestre de 2018 superou as ocorrências do mesmo período de 2017 em quase 5%, o que demonstra a insustentabilidade da estratégia adotada.
Para a socióloga Silvia Ramos, coordenadora do CESeC, esse conjunto de dados revela um caráter midiático da estratégia implementada no Rio de Janeiro.
“Se essas ações de grande visibilidade não são articuladas com um trabalho silencioso de longo prazo, de desarticulação, o crime se desloca com muita facilidade. É muito difícil para as autoridades entenderem que o que estão fazendo hoje vai ter efeito só daqui a seis meses, um ano. Mas, como não se faz isso, temos sempre os mesmos problemas no ano seguinte”, comenta.
A crítica dos especialistas do Observatório se concentra justamente na ineficácia do modelo repressivo para combater organizações criminosas. Durante os dez meses de intervenção, foram realizadas 711 operações e 221 ações de patrulhamento no Rio. O número de armas longas (fuzis, metralhadoras e submetralhadoras) apreendidas no período foi 8,2% inferior ao registrado em 2017.
Em contrapartida, houve um aumento de 108,1% na apreensão de munições no período analisado, resultando no recorde da série histórica do Instituto de Segurança Pública no mês de fevereiro.
O resultado se deve principalmente a operações realizadas pela Polícia Rodoviária Federal (PRF), que também contribuíram significativamente para a interceptação de armas longas. Para Ramos, o sucesso dessas iniciativas confirma que as ações de inteligência são mais baratas e efetivas.
“Essas armas e munições foram apreendidas antes de chegar às mãos dos criminosos. Não foi preciso sequer atirar no motorista. Ao se ver naquela situação, ele já diz para onde está indo”, afirma.
“As ações de confronto custam mais em todos os aspectos. Não é só o financeiro, mas as vidas que se perdem e o pânico gerado em quem fica no tiroteio, seja as crianças no horário escolar ou quem sai para trabalhar”, acrescenta.
O laboratório de dados Fogo Cruzado registrou um aumento de 56,6% nos tiroteios e disparos de armas de fogo durante a intervenção. Em movimento semelhante, as chacinas, casos em que há mortes de três ou mais pessoas, tiveram alta de 65,6%. As mortes provocadas por agentes do estado cresceram 33,6%. Por sua vez, 99 deles morreram no período.
Ex-chefe do Estado-Maior da Polícia Militar do Rio de Janeiro, o pesquisador do Laboratório de Análise da Violência (LAV/Uerj) Robson Rodrigues assinala que houve um desprezo à preservação da vida, priorizada em estratégias bem-sucedidas de combate ao crime em Nova York, Bogotá e mesmo em outros casos no Brasil.
“Houve operações para recuperar cargas roubadas em que morreram pessoas. A mercadoria ultrapassou o valor da vida nessa política insensível. O mesmo se aplica ao policial. Os roubos de carga representaram uma fração inferior a 4% do total de roubos em 2017. Foi suficiente para que setores com maior poder econômico orientassem a política pública”, critica.
“A PM é instrumentalizada para isso, sem perceber, e acaba sendo refém desses discursos fáceis, populistas, que não são baseados em evidência mas aproveitam a emoção desses profissionais. Isso cria uma situação perversa em que pobres praticam violência contra pobres. Precisamos reformar as polícias, pois ainda reproduzimos valores de uma cultura muito reforçada no período da ditadura militar”, conclui.