Mais um decreto de Bolsonaro contra os trabalhadores
O Decreto Nº 10.854, de Bolsonaro, visa a compatibilizar as normas trabalhistas com as políticas e interesses de seu governo, que tem ódio aos trabalhadores e a seus direitos fundamentais sociais
Por José Geraldo de Santana Oliveira*
No que diz respeito ao figadal ódio aos trabalhadores e a seus direitos fundamentais sociais, Bolsonaro tem se comportado com absoluta coerência, ao longo de seu desastroso e teratológico governo – que parece um sonho dantesco –, confirmando o que enfatizou ainda nos seus primeiros meses: “eu não vim para construir nada; estou aqui para destruir”.
Dando prosseguimento a essa cruel e progressiva sanha, iniciada ao 1º de janeiro de 2019, com a medida provisória (MP) 870, que, ao extinguir o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), instrumento institucional de proteção mínima dos direitos trabalhistas, normas de segurança e de saúde dos trabalhadores, por quase oito décadas consecutivas, Bolsonaro baixou o Decreto Nº 10.854, ao dia 10 de novembro corrente, publicado no Diário Oficial da União (DOU), edição do dia 11 com a seguinte ementa:
“Regulamenta disposições relativas à legislação trabalhista e institui o Programa Permanente de Consolidação, Simplificação e Desburocratização de Normas Trabalhistas Infralegais e o Prêmio Nacional Trabalhista e altera o Decreto nº 9.580, de 22 de novembro de 2018”.
Composto por 187 artigos, revoga 35 decretos e modifica 1; o primeiro decreto revogado é o de Nº 27.048/1949, que regulamentava a Lei Nº 605/1949, que trata do repouso semanal remunerado.
O Parágrafo único, do Art. 3º, diz com todas as letras os objetivos do governo, ao baixá-lo: “Parágrafo único. A revisão da legislação trabalhista infralegal consiste no exame dos atos normativos pertinentes a serem integrados, quanto ao mérito, à oportunidade, à conveniência e à compatibilização da matéria neles tratada com as políticas e as diretrizes do Governo federal e com o marco regulatório vigente”
Patenteia-se, nesse dispositivo, que o decreto em questão não visa a compatibilizar as normas trabalhistas infralegais com as garantias constitucionais e com a própria CLT, já por demais deformada, que são políticas de Estado; visa, isto sim, à compatibilizá-la com as políticas e interesses de governo, mais precisamente, do governo Bolsonaro.
Esse dispositivo, de plano, desautoriza o primeiro dos objetivos gerais, inserto no Art. 5º, I, que diz: “I – promover a conformidade às normas trabalhistas infralegais e o direito ao trabalho digno”.
Como já dito, o primeiro dos decretos revogados pelo atual é o de Nº 27.048/1949, que regulamenta o repouso semanal remunerado, estabelecido pela Lei Nº 605/1949.
No entanto, a redação do Art. 158, do Decreto atual, é absolutamente idêntica, quanto ao conteúdo, àquela dada pelo 11, por aquele decreto de 1949, apenas com a inversão da ordem e a substituição do vocábulo virtude por razão; senão, veja-se
Decreto Nº 27.048/1949:
“Art. 11. Perderá a remuneração do dia de repouso o trabalhador que, sem motivo justificado ou em virtude de punição disciplinar, não tiver trabalhado durante toda a semana, cumprindo integralmente o seu horário de trabalho”
Decreto Nº 10.854/2021:
“Art. 158. O trabalhador que, sem motivo justificado ou em razão de punição disciplinar, não tiver trabalhado durante toda a semana e cumprido integralmente o seu horário de trabalho perderá a remuneração do dia de repouso”.
A redação de 1949, repetidas pela de 2021, são incompatíveis com o Art. 7º, caput e inciso XV, da Constituição Federal (CF)- “Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: XV – repouso semanal remunerado, preferencialmente aos domingos”-, representando dupla punição ao trabalhador que, durante a semana, faltar injustificadamente, em total confronto com a garantia do princípio constitucional do non bis in idem (ninguém pode ser punido duas vezes pelo mesmo fato).
Colhe-se do conteúdo e da finalidade das garantias constitucionais sob destaque, que a falta injustificada ao trabalho enseja o desconto do proporcional do repouso semanal remunerado, à razão de 1/6.
Porém, não é isso o que consagra o Decreto Nº 10.854/2021, que determina a perda da totalidade da remuneração do repouso.
No que tange à proporcionalidade do aviso prévio, assegurada pelo Art. 7º, XXI, da CF, e regulamentado pela Lei Nº 12.506/2011, o Decreto Nº 10.854, propositadamente, desconsidera a Nota Técnica Nº 184/2012, do extinto MTE, aceita como compatível com os comandos constitucionais e legais, em sedimentada jurisprudência pelo TST.
Eis o que diz o Art. 98, do Decreto N. 10854/2021:
“Art. 98. O aviso prévio, nos termos do disposto no Capítulo VI do Título IV da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1943, será concedido na proporção de trinta dias aos empregados que contem com até um ano de serviço ao mesmo empregador.
Parágrafo único. Ao aviso prévio de que trata o caput serão acrescidos três dias por ano de serviço prestado na mesma empresa, até o máximo de sessenta dias, com o total de até noventa dias”.
Eis o que diz a Nota Técnica Nº 184/2012, em conclusão:
“111. Conclusão
Em síntese, estes são os entendimentos que submete-se à consideração superior para fins de aprovação:
1) a lei não poderá retroagir para alcançar a situação de aviso prévio já iniciado;
2) a proporcionalidade de que trata o parágrafo único do art. 1 0 da norma sob comento aplica-se, exclusivamente, em beneficio do empregado;
3) o acréscimo de 3 (três) dias por ano de serviço prestado ao mesmo empregador, computar-se-á a partir do momento em que a relação contratual supere um ano na mesma empresa;
4) a jornada reduzida ou a faculdade de ausência no trabalho, durante o aviso prévio, previstas no art. 488 da CLT, não foram alterados pela Lei 12.506/11;
5) A projeção do aviso prévio integra o tempo de serviço para todos os fins legais;
6) recaindo o término do aviso prévio proporcional nos trinta dias que antecedem a data base, faz jus o empregado despedido à indenização prevista na lei no 7.238/84; e
7) as cláusulas pactuadas em acordo ou convenção coletiva que tratam do aviso prévio proporcional deverão ser observadas, desde que respeitada a proporcionalidade mínima prevista na Lei no 12.506, de 2011.
De acordo com a tabela aludida no item 1, da Nota Técnica MTE 184/2012, a contagem do aviso prévio dá-se do seguinte modo: até 1 ano de contrato, 30 dias; de 1 ano e 1 dia até 2 anos, 33 dias; de 2 anos e 1 dia até 3 anos, 36 dias; e assim sucessivamente, até chegar a 90 dias, com 20 anos completos.
Nada disso mereceu atenção do decreto sob discussão, por se constituir em norma protetiva dos trabalhadores, em consonância com os comandos constitucionais e legais.
Aliás, o Art. 22, sem fazer referência específica à Nota Técnica Nº 184/2012, desautoriza expressamente a exigência de seu cumprimento, bem assim de todas as outras. Já o Art. 23, para não deixar dúvida, prevê a apuração de responsabilidade administrativa, do auditor-fiscal que descumprir o comando do 22.
Eis o que dizem os dois artigos:
“Art. 22. É vedado ao Auditor-Fiscal do Trabalho determinar o cumprimento de exigências que constem apenas de manuais, notas técnicas, ofícios circulares ou atos congêneres.
Art. 23. A não observância ao disposto no art. 22 poderá ensejar a apuração de responsabilidade administrativa do Auditor-Fiscal do Trabalho, nos termos do disposto no art. 121 e no art. 143 da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990”.
Os demais dispositivos do decreto sob comentários seguem a mesma toada, em rigoroso compasso com nefastos propósitos que efetivamente o ensejaram.
Não sem razão, a Contee e todas as entidades a ela filiadas encaminharam, ao ministro chefe da Casa Civil, por meio do Ofício N. 216/2021-CONTEE, datado de 19 de fevereiro de 2021, “Nota de Repúdio sobre a consulta pública à minuta de decreto que ‘regulamenta disposições relativas à legislação trabalhista e institui o Programa Permanente de Consolidação, Simplificação e Desburocratização de Normas Trabalhistas e o Prêmio Nacional Trabalhista”, que, com pequenas alterações, converteu-se no Decreto ora sob destaque.
*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee