Malvadinhos da Lava Jato: por que o Brasil não pode crescer como as potências capitalistas?
No final do capítulo 14 de seu livro Nada menos que tudo, o ex-Procurador Geral da República Rodrigo Janot tece alguns comentários sobre o contexto geopolítico em que a Lava Jato se insere.
Janot reconhece que os EUA, no intuito de ajudar a Lava Jato, financiaram cursos de capacitação de procuradores brasileiros não porque são bonzinhos e querem combater a corrupção, mas porque queriam acessar um mercado que lhes estava fechado devido à associação do Estado brasileiro com determinados agentes privados.
Esse é, para manter o espírito da narrativa, um dos pontos de maior sobriedade de todo o livro. Ainda assim o relato fica muito aquém de tudo. Isso porque Janot afasta com desprezo a tese de que todo o processo do golpe deriva de interesses diretos do imperialismo estadunidense, como se tratasse de uma teoria da conspiração absurda de esquerdistas que acreditam que a Terra é plana.
Para ele é como se houvesse uma (in)feliz coincidência entre as ações absolutamente necessárias e técnicas de combate à corrupção levadas adiante pela Lava Jato e os interesses econômicos do Estado norte-americano. É, de fato, uma coincidência feliz para um lado e infeliz para o outro, mas de todo modo uma mera coincidência, totalmente aleatória. A conformação com essa sina, que apenas reforça nosso viralatismo, só vai ser superada quando o povo brasileiro compreender o tabuleiro interimperialista sobre o qual ocorre o jogo da economia mundial.
Todas as potências construíram suas economias a partir da associação entre o setor público e o setor privado, desde as companhias comerciais da era mercantilista até o setor energético do século 21. Por que o Brasil não pode seguir essa receita? O ex-PGR replica em seu raciocínio uma noção totalmente ingênua sobre Economia Política, que foi brutalmente difundida no país desde antes das jornadas de junho de 2013 (aliás, desde sempre) por meio de think-tanks intimamente ligados a poderes alheios ao Brasil. Ele acha que o caminho para a soberania seria possível pela via de um “capitalismo verdadeiramente concorrencial” ao invés do chamado “capitalismo de compadrio”, termo depreciativo usado por aqueles que querem desvalorizar o tremendo, ainda que contraditório, avanço da civilização brasileira dos últimos anos.
Todas as análises sérias, pautadas pelos interesses materiais em escala global indicam que a emergência da economia brasileira como potência decisiva no hemisfério Sul provocou uma reação certeira, principalmente com a confirmação da descoberta do pré-Sal (ver, por exemplo, Fiori e Nozaki 2019: https://diplomatique.org.br/
Todas as análises robustas também conseguem estabelecer um vínculo sólido entre essa reação e a Lava Jato, cujo efeito concreto foi tirar o Brasil do cenário mundial. Moniz Bandeira, eminente historiador falecido em 2017 que provou com farta documentação a interferência estadunidense nos golpes de Estado na América Latina ao longo do século 20 (como o caso brasileiro e o caso chileno já indicava em 2016 que a análise de custo-benefício do assim chamado combate à corrupção apontava para uma perda de bem-estar social dos brasileiros, porque os recursos recuperados não cobriam os recursos perdidos com a eliminação dos postos de trabalho em toda cadeia produtiva em torno da Petrobras (ver Bandeira (2016) : https://atarde.uol.com.br/
E caso Janot considere esses autores suspeitos de serem representantes de “certos setores da esquerda brasileira”, que acreditam “que a corrupção é a graxa que move a economia” e que portanto, trata-se de “um discurso míope e tosco” como ele escreve, pode-se ainda referir à bacharel em Direito Érika Gorka, que foi candidata a deputada federal pelo NOVO e é colaboradora do Instituto Millenium segundo o jornalista Luis Nassif . Seu levantamento detalhado (publicado na Ilustríssima da Folha aqui mostra que as punições da Lava Jato não consideraram as estruturas de propriedade dos acionistas, de modo que os danos oriundos das sentenças recaíram sobre todos os proprietários minoritários e trabalhadores e trabalhadoras que nada tinham a ver com o esquema.
O resultado é evidente: o efeito colateral das investigações e sentenças foi o desmantelamento da indústria de base tupiniquim em vias de se estabelecer para no México, Argentina, Venezuela, Peru, Colômbia, Angola, Moçambique etc. Mas será que não era exatamente essa a razão de ser da operação, desde o começo? Não pode haver dúvida de que a Lava Jato se relaciona com a desordem mundial do século 21 e que o Brasil foi o perdedor da vez.
Assim, há certa convergência objetiva sobre esse processo, tanto da perspectiva de análise geopolítica e de Economia Política quanto do Direito, independentemente da posição do analista no que tange a classificação entre esquerda e direita. Por quê? Porque a verdade é objetiva: o Ministério Público Federal, com a Lava Jato, quebrou o setor de engenharia nacional e serviu aos interesses dos Estados Unidos, mesmo que de forma inconsciente. Ou seja, os procuradores e juízes realizaram essa façanha não porque são todos malvadinhos, mas porque muitos deles, ao serem ignorantes demais para vislumbrar o cenário maior e, principalmente, por terem identidade de classe com o estrato médio submisso à nossa elite do atraso, puderam ser manobrados sem dificuldades através da cadeia de comando que parte de Washington e que colocou essa moçada para surfar na crista do devido processo legal.
A linha divisória entre minions conscientes e inconscientes poderá ser discutida no futuro. Por ora, é certo que muitos desconhecem a concretude da disputa entre os Estados pelo mercado mundial e acreditam no faz de conta de uma concorrência igualitária que impede o Brasil de adotar o mesmíssimo truque de expansão como fizeram e fazem todas as grandes potências na história do capitalismo.