Marco Civil da Internet faz 10 anos em meio a desafio de regular as redes

Renata Mielli, coordenadora do CGI.br, diz que lei foi pensada para estruturar direitos e que, diante do impacto das redes, é preciso avançar na regulação do ambiente digital

por Priscila Lobregatte

Há uma década, durante o governo Dilma Rousseff, passou a vigorar o Marco Civil da Internet — conjunto de princípios, garantias, direitos e deveres que devem nortear o uso da rede mundial no país —, tido como um dos mais avançados até então concebidos. Hoje, uma série de novos desafios impõem ao Brasil e a outras nações regulações focadas, sobretudo, no amplo poder adquirido pelas redes sociais e seu efeito sobre a democracia e o comportamento humano.

“Passados dez anos da aprovação do Marco Civil da Internet, podemos dizer que tivemos muitos avanços, mas que continuamos tendo muitos desafios”, diz, ao Portal Vermelho, a coordenadora do Comitê Gestor da Internet no Brasil, Renata Mielli. “O MCI é uma lei que foi pensada para estruturar direitos. E acho que no seu conjunto ela continua importante”, completa.

Ela salienta que a legislação “foi construída de forma colaborativa e participativa, num processo que inaugurou um novo paradigma da participação social para a elaboração das leis. Naquele momento, o marco teve sua importância reconhecida por outros países e organismos internacionais”.

Publicado em abril de 2014, o MCI tem, entre seus principais pontos, a neutralidade da rede, que consiste no dever de as provedoras tratarem “de forma isonômica, quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação”.

Outro aspecto importante é que a lei obriga o respeito à legislação brasileira e aos direitos à privacidade, à proteção dos dados pessoais e ao sigilo das comunicações privadas e dos registros em operações como coleta, armazenamento e tratamento dos dados.

Mesmo com avanços como esses, em virtude das mudanças do ambiente de internet ocorridas nos últimos anos, Renata defende que “precisamos compreender as necessidades de aprimoramento e evolução das muitas legislações que nós precisamos ter para dar conta dessa nova realidade digital”.

Entre os pontos que destaca está a garantia da neutralidade da rede: “é um conceito importante, mas nós temos muita dificuldade, ainda, de garantir a observância plena dessa neutralidade”.

Além disso, aponta que “o reconhecimento da internet como um serviço, como um direito fundamental, também é algo que ainda precisa ser olhado por parte tanto do Estado quanto do setor privado, na perspectiva de que políticas específicas sejam desenvolvidas a fim de garanti-lo”.

Renata Mielli também argumenta que é preciso avançar “na compreensão das complexidades relacionadas às muitas aplicações da internet, para que a gente possa ter um um sistema dinâmico de responsabilidade de seus vários atores. Muitas questões devem ser aprimoradas à medida que a internet se desenvolve”.

Nesse sentido, é preciso salientar que sobram exemplos, mundo afora, dos impactos negativos que as plataformas podem ter nas sociedades, desde questões relacionadas ao bullying e a preconceitos até a desestabilização de democracias e o beneficiamento de determinados candidatos e setores políticos em detrimento de outros.

A experiência dos últimos anos vem mostrando que a extrema-direita tem sido o segmento que mais tira vantagem dessa situação, nadando de braçada na onda de ódio que ela própria alimenta e que é ampliada exponencialmente pelos mecanismos de funcionamento das redes sociais e viabilizada pela falta de regulação.

Além disso, nessa última década, houve grande concentração de serviços fornecidos por uma mesma empresa, como a Alphabet — dona do Google que, por sua vez, é proprietária do Youtube — ou a Meta — que comanda o Facebook, Instagram e WhatsApp, por exemplo. Ou seja, pouquíssimas empresas comandam os principais canais globais de comunicação dos nossos dias, para o bem e para o mal.

Diante desse complexo cenário, o artigo 19 do MCI vem sendo alvo de novos questionamentos. O dispositivo estabelece que “com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura”, o provedor somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial, não tomar as providências para retirar o conteúdo infringente.

O assunto é objeto de ação que deve entrar em pauta ainda neste semestre no Supremo Tribunal Federal (STF). Se Corte decidir pela constitucionalidade do artigo, as empresas donas das redes sociais poderão ser responsabilizadas pela circulação de conteúdos mentirosos ou relativos a crimes previstos na legislação brasileira, como também estabelecia o PL 2630.

Regulação das redes

Apesar da urgência do tema, o Projeto de Lei 2630/2020, fundamental para a criação de uma legislação afinada às necessidades desses novos tempos, foi engavetado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PL-AL), que também decidiu criar um grupo de trabalho para reiniciar o debate sobre o tema.

“Não está muito claro qual o caminho o que vai ser objeto de trabalho desse GT que será criado”, pondera Renata. Ela lembra que, conforme nota recém-publicada pelo CGI, “o debate acumulado ao longo dos últimos anos — e que resultou na última versão substitutiva do deputado Orlando Silva (PCdoB-SP) — é a síntese de um conjunto de audiências públicas, reuniões, seminários e de um amplo processo de negociação com vários setores”.

Ela pontuou que, neste sentido, o Comitê “foi muito enfático ao dizer que o parlamento brasileiro não pode abandonar esse legado de discussão e que qualquer debate que seja feito no âmbito do Congresso Nacional precisa partir do texto que está colocado”.

A matéria, explicou, “pode passar por ajustes e melhorias — isso sempre é possível. Agora, esse texto é resultado de uma ampla discussão social e ele não pode ser desconsiderado nesse processo”.

Vale destacar que, no caso específico da desinformação, um dos principais tópicos do PL, estudo feito pela Coalizão Direitos na Rede (CDR) identificou que apenas dois países e um bloco regional (Paquistão, França e União Europeia), de um total de 71 e de 104 leis analisadas, as legislações não criminalizam a disseminação de desinformação no ambiente digital.

Liberdade de expressão não é direito absoluto

Um dos argumentos falaciosos comumente usados, sobretudo pela extrema direita, para desqualificar e barrar a regulação das redes é o do suposto cerceamento à liberdade de expressão e da censura.

Ao longo de sua tramitação e perto de ir a votação, o PL 2630 sofreu uma saraivada de ataques de bolsonaristas e bancadas vinculadas, como a evangélica, além de ataques antiéticos vindos das próprias big techs, que usaram seus canais para disseminar mentiras e, assim, inviabilizar a proposta usando esse tipo de argumentação.

Diante disso e da decorrente dificuldade de aprovação em plenário, a matéria foi retirada da pauta e desde então, dormitava na Câmara, até o anúncio recente feito por Lira como resposta enviesada do parlamento aos recentes ataques de Elon Musk ao Brasil.

“O setor privado e determinados segmentos da sociedade brasileira historicamente usam o argumento da censura ou do cerceamento da liberdade de expressão para impedir qualquer discussão sobre a regulação do ambiente comunicacional”, critica Renata.

Ela enfatiza que “regulação não é censura; regulação é o estabelecimento de regras acordadas publicamente pelos setores envolvidos num amplo processo de discussão”.

No caso específico do PL 2630, explica, “nenhuma parte trata de cerceamento à liberdade de expressão, muito pelo contrário: ele é um projeto que está focado numa visão sistêmica, ele não olha conteúdos individuais, não define critérios e características de conteúdos que podem ou não circular, ele define, sim, um rol de temas que são sensíveis para a democracia e para a vida em sociedade”.

Em torno desse rol de temas, acrescenta, “fica estabelecida a necessidade de que haja um dever de cuidado das plataformas para impedir que o seu uso indevido possa gerar riscos tanto para a democracia, como para a integridade dos processos eleitorais e para a vida das pessoas”.

Diante desse quadro, a coordenadora do CGI defende que o país precisa “avançar, inclusive, na qualificação do debate público sobre liberdade de expressão, porque ele não é um direito absoluto e nem está acima de outros direitos, há muitas expressões e discursos que já não são permitidos pelo estatuto legal brasileiro. Racismo, por exemplo, é algo que não está protegido pela liberdade de expressão”.

Ela conclui salientando que “essa ideia de que existe um direito absoluto sobre outros direitos é algo bastante equivocado e que é trabalhado de forma mal intencionada pelos setores de extrema direita”.

Do Vermelho

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