Marco temporal: veto de Lula barrou principais retrocessos, mas pontos sancionados preocupam indígenas e indigenistas
Para Cimi, Lula perde chance de rechaçar forma como setores econômicos usam política institucional contra indígenas
Murilo Pajolla e Gabriela Moncau
Organizações indígenas e indigenistas manifestaram alívio com o veto parcial de Lula (PT) à lei 14.701/23, que ficou conhecida como PL do Marco Temporal, mas consideram que artigos sancionados pelo presidente representam retrocessos nos direitos dos povos indígenas.
Lula manteve dois artigos considerados “preocupantes” pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a maior organização indígena do país, que pedia o veto integral ao PL 2903, assim como fez o Ministério Público Federal (MPF), que considerava o texto inconstitucional.
Na última sexta-feira (20), o presidente seguiu o entendimento do MPF e do Supremo Tribunal Federal (STF) ao vetar o ponto principal da lei do marco temporal, que proíbe demarcações de terras não ocupadas por indígenas em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.
Lula vetou ainda outros pontos defendidos pelos parlamentares ruralistas: indenização a donos de fazendas sobrepostas a terras indígenas, permissão para invasores permanecerem no território durante o procedimento demarcatório e contato forçado com indígenas isolados.
A Apib destaca, porém, a sanção por Lula do artigo 20, que diz que o usufruto exclusivo dos indígenas sobre suas terras “não se sobrepõe” à “soberania nacional”, e do artigo 26, que permite a “cooperação” entre indígenas e não indígenas no “exercício de atividades econômicas”.
“Afirmamos que o artigo 20 é perigoso, pois pode, igualmente, abrir margem para mitigar o usufruto exclusivo, diante do conceito genérico de ‘interesse de política de defesa’, justificando intervenções militares nos territórios”, destacou a Apib.
A Articulação, que reúne sete organizações indígenas regionais distribuídas por todos os estados do Brasil, não se vê inteiramente representada pela declaração da ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, que definiu os vetos parciais do presidente como “grande vitória”.
Coordenador executivo da Apib (posto também ocupado por Sonia Guajajara antes das últimas eleições), Dinama Tuxá afirmou em entrevista à Pública que “pela perspectiva do governo, pode ter sido uma vitória”. “Mas, para o movimento indígena, acaba sendo frustrante, porque esperávamos o veto total e lutamos para isso. Então, não há que se falar em vitória [para o movimento indígena].”
Em live organizada pelo Observatório Indigenista, Kretã Kaingang, integrante da Articulação dos Povos Indígenas do Sul (Arpinsul), afirmou que em seu entendimento, “o presidente tinha que ter vetado total, independente do que fosse acontecer. Porque a gente sabe que os vetos serão derrubados no Congresso Nacional. Mas seria uma garantia para nós, povos indígenas”. Para Kretã, as demandas indígenas foram tratadas como “moeda de troca”.
Lula tem ilusão com o agronegócio, diz Cimi
O Conselho Indigenista Missionário (Cimi), que defende o povo Xokleng na ação do marco temporal no STF, avalia que o veto parcial barrou “absurdos” contidos no PL, mas diz que Lula “perdeu uma oportunidade” de reafirmar os direitos indígenas.
“Parece ter pesado para a decisão do presidente uma perspectiva tática e ilusória de manter algum canal aberto com o Congresso Nacional e o receio de abrir distância com o agronegócio e setores que integram seu próprio governo”, avaliou o Cimi, que atua há 50 anos na defesa dos povos originários.
O que acontece agora
Os vetos parciais de Lula ao PL do marco temporal serão validados ou derrubados por deputados e senadores em sessão conjunta, que tem prazo de 32 dias corridos para acontecer, a partir da mensagem enviada pelo Executivo ao Congresso.
Nessa terça-feira (24), o deputado federal Pedro Lupion (PP-PR), que preside a Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), declarou à imprensa que a bancada ruralista pretende derrubar todos os vetos e que tentará incluir a pauta na sessão do Congresso desta quinta-feira (26).
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), afirmou na sexta-feira (20) que o Congresso estaria disposto a manter alguns dos vetos, mas não abriria mão da fixação do marco temporal para demarcações.
“O cerne da questão, que é o marco temporal em si, é um tema um pouco mais polêmico, porque é uma tendência do Congresso Nacional em acreditar que ele deve ser incluído no ordenamento jurídico e, aí, o veto será apreciado em sessão oportuna do Congresso Nacional”, afirmou Pacheco.
Movimento indígena promete reagir
Em nota, a FPA disse que “não assistirá de braços cruzados a ineficiência do Estado brasileiro em políticas públicas e normas que garantam a segurança jurídica e a paz no campo”. Também afirmou ter 303 deputados federais e 50 senadores, votos suficientes para derrubar os vetos presidenciais.
Caso isso ocorra, a Apib pretende questionar a medida no STF por meio de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI). Até a decisão final, retrocessos contidos na lei podem continuar valendo, se não forem derrubados por medidas cautelares do Supremo.
“A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) reforça que a cobrança do movimento indígena era para Lula vetar totalmente o PL. Agora, alertamos sobre a necessidade dos vetos parciais serem mantidos pelos parlamentares”, declarou a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
Edição: Thalita Pires