“Medidas sobre demarcações indígenas são racistas”, diz relatora da ONU
A transferência da responsabilidade pela demarcação de terras indígenas e quilombolas da Fundação Nacional do Índio (Funai) para o Ministério da Agricultura é vista como um retrocesso pela relatora especial da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas, Victoria Tauli-Corpuz.
A decisão do presidente Jair Bolsonaro é parte de uma medida provisória publicada na quarta-feira (02/01), dia seguinte à posse. Pelo Twitter, o chefe de Estado defendeu que é preciso “integrar” os povos indígenas à sociedade brasileira e que “menos de um milhão de pessoas vivem nesses lugares isolados do Brasil, exploradas e manipuladas por ONGs”.
Em entrevista à DW, Tauli-Corpuz classificou as declarações do presidente de “racistas e discriminatórias” e alertou: “Entrar em territórios onde indígenas vivem em isolamento voluntário pode levar ao desaparecimento ou ao genocídio desses povos.”
Para a ativista filipina, tais ações representam um descumprimento de compromissos internacionais por parte do Brasil, o que pode comprometer inclusive o futuro da Floresta Amazônica. “A demarcação de terras indígenas que incluem florestas é uma das formas mais efetivas de salvar essas florestas e a biodiversidade remanescentes do planeta”, observou.
DW Brasil: Em 1º de janeiro, o presidente Jair Bolsonaro assinou uma medida provisória que transfere a responsabilidade pela demarcação de terras indígenas da Funai para o Ministério da Agricultura. Qual é a sua opinião sobre essa medida?
Victoria Tauli-Corpuz: Eu considero isso um retrocesso, já que o Ministério da Agricultura é a pasta que apoia a expansão de áreas de produção de safras agrícolas para exportação e para criação de gado. A transferência de competências anteriormente da Funai para um órgão que tem a função de expandir a agricultura, inclusive para territórios indígenas, terá o potencial de minar o mandato da Funai, que é o de proteger os direitos dos povos indígenas às suas terras e territórios. O que pode acontecer é que o mandato da Funai seja mudado e seus recursos e poderes sejam reduzidos de forma significativa, o que a tornará muita fraca em relação ao desempenho do seu papel de proteger os direitos dos povos indígenas.
Qual deve ser o impacto dessa medida para o futuro da Floresta Amazônica?
Como a Amazônia está entre as áreas com potencial para a expansão agrícola, essa medida significará um aumento não só do desmatamento, mas também do deslocamento dos povos indígenas da Amazônia e das violações dos seus direitos. Isso também vai significar uma redução da capacidade de mitigação da Amazônia contra as mudanças climáticas.
Pelo Twitter, Jair Bolsonaro defendeu que é necessário “integrar” os povos indígenas à sociedade brasileira para permitir a exploração dos recursos naturais de territórios isolados por razões econômicas. O que pensa sobre essa declaração?
Essa é uma declaração discriminatória e racista que não está em conformidade com as obrigações legais do Brasil segundo leis e padrões internacionais de direitos humanos. A Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil, e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas afirmam categoricamente que os povos indígenas têm o direito de decidir se desejam ser integrados à sociedade dominante ou manter suas próprias culturas e identidades. O Brasil também aprovou as Diretrizes do Alto Comissariado da ONU para Povos Indígenas em Isolamento Voluntário, que estipulam o direito desses povos de permanecer isolados e não serem contatados. Entrar nos territórios onde os povos indígenas vivem em isolamento voluntário pode levar ao desaparecimento ou ao genocídio desses povos.
Durante a campanha presidencial, Bolsonaro afirmou que, se assumisse o poder, “índio não terá mais um centímetro de terra”. Como você vê a deterioração crescente dos direitos dos povos indígenas no Brasil?
Novamente, pronunciamentos como esse violam os direitos dos povos indígenas. Eu seguramente espero que o presidente não faça isso.
Isso demonstra uma atitude discriminatória contra os indígenas?
Os povos indígenas não têm direitos especiais. São direitos garantidos, precisamente, devido à história de marginalização, discriminação e colonização que eles sofreram. Não é nada especial. Estamos apenas fazendo o que é socialmente justo. Eu não compro o argumento de que os indígenas têm direitos especiais, afinal eles são os que sempre estiveram no território brasileiro. Portanto, eles devem ter a possibilidade de continuar a viver nas terras demarcadas e praticar suas culturas.
A tentativa é sempre colocar os indígenas numa posição inferior, e fazê-los esquecer quem eles são. Isso é moralmente inaceitável. Todas as pessoas devem ter seus direitos humanos respeitados. Por que indígenas deveriam ser privados de viver em suas tribos? A raiz da tentativa de ruralistas de tomar as terras indígenas é o racismo e a discriminação. Pensar que indígenas não merecem continuar vivendo da forma que vivem e que devem ser incorporados na cultura dominante é negar reconhecer que esses povos sempre estiveram nesses territórios, têm suas próprias comunidades e deveriam continuar a existir lado a lado com o restante da população. A raiz do problema é o interesse das elites políticas no Brasil de tomar os recursos econômicos que ainda existem nos territórios indígenas. Isso tem gerado muita violência, é inaceitável e deve ser condenado.
Seu estudo publicado em julho do ano passado, “Encurralados por áreas protegidas”, mostra que os povos indígenas têm um papel fundamental na proteção das florestas e da biodiversidade no mundo. Qual é a importância da demarcação legal de terras indígenas?
As pesquisas feitas nos últimos anos mostram que, quando as terras dos povos indígenas são demarcadas e os direitos deles a esses territórios são respeitados, a integridade das florestas e da biodiversidade é mantida com mais eficácia. A demarcação de terras indígenas que incluem florestas é uma das formas mais efetivas de salvar as florestas e a biodiversidade remanescentes do planeta. Respeitar e proteger o direito à terra, ao território e aos seus recursos é fundamental para atingir os objetivos das convenções globais em biodiversidade e mudança climática.