MP 1.045 pode levar jovens brasileiros a desistir dos estudos
Aspectos da Medida Provisória 1.045/2021, prestes a virar lei, podem aumentar a quantidade de jovens que desistem dos estudos, segundo especialistas consultados por CartaCapital. O texto foi lançado pelo governo de Jair Bolsonaro e aprovado com a relatoria do deputado Christino Aureo (PP-RJ) na terça-feira 10, com a promessa de estimular a geração de empregos entre jovens de 18 a 29 anos.
Constam na MP 1.045 dois programas voltados para os jovens: o Programa Primeira Oportunidade e Reinserção no Emprego – o Priore – e o Regime Especial de Trabalho Incentivado, Qualificação e Inclusão Produtiva – o Requip.
O Priore atende a pessoas com 18 a 29 anos sem registro de primeiro emprego em carteira de trabalho, com as seguintes condições:
- até dois salários mínimos;
- benefício de 275 reais pago pelo governo;
- prazo máximo de dois anos de contrato;
- jornada de trabalho de 44 horas semanais;
- permissão de até duas horas extras diárias, com remuneração de no mínimo 50% superior à remuneração da hora normal;
- Fundo de Garantia reduzido (cai de 8% para 2% em microempresas, 4% em empresas de pequeno porte e 6% nas demais);
- Possibilidade de antecipação do pagamento de indenização sobre o saldo do FGTS;
- Recebimento mensal de uma parcela dos valores referentes ao 13º salário e às férias;
- 180 horas anuais de ações de qualificação profissional, computadas na duração da jornada de trabalho.
Já o Requip é voltado para os jovens que estão desempregados há dois anos. E oferece condições como:
- sem vínculo formal por contrato de trabalho e, portanto, sem direitos garantidos, como férias e FGTS;
- bolsa de 550 reais pago pelo governo e pela empresa;
- prazo máximo de dois anos;
- jornada de trabalho de até 22 horas semanais;
- e oferta de qualificação profissional pela empresa, com horário de trabalho compatível à frequência da qualificação.
Para Ana Maria Villa Real, procuradora no Ministério Público do Trabalho, os dois programas oferecem maior desproteção em relação aos direitos trabalhistas e faltam com atenção para a formação educacional.
Os maiores problemas do Priore, observa, estão nas mudanças do pagamento do FGTS e na antecipação do recebimento do 13º e férias, porque são medidas que diluem garantias para dar a impressão de que o salário é maior. O Requip, porém, tem condições piores, porque é um modelo sem vínculo formal que formalizada a remuneração menor que o salário mínimo.
Especificamente em relação à formação do jovem, ambas iniciativas oferecem uma qualificação profissional de fachada, a serviço do que a empresa escolher, sem previsão de planejamento metódico. A falta de garantia de um conteúdo programático e de um acompanhamento responsável é diferente do que se vê em programas de jovens aprendizes, com matérias mínimas e formações prioritárias, analisa a procuradora.
Ana Maria também destaca a falta de incentivo para que o jovem conclua a sua escolarização. Para ela, não há estímulos, nem no Priore, nem no Requip, para que o trabalhador finalize sequer o ensino médio.
No caso do Priore, ela afirma que a larga jornada, de oito horas com possibilidade de acréscimos extraordinários, dificulta a conciliação da atividade com o estudo. Já no Requip, a carga horária é menor, mas o programa é voltado para jovens muito vulneráveis, e a precariedade das condições aparece como desestímulo à escolarização.
“No Requip, o jovem que vai ganhar 550 reais vive um contexto de vulnerabilidade, violência e abandono”, sublinha. “O programa coloca um jovem desses em um trabalho qualquer, com menos direitos, sem nenhuma formação técnica e profissional metódica e nenhuma obrigação para que ele volte à escola.”
Na mesma toada, o Conselho Nacional de Procuradores-Gerais do Ministério Público dos Estados e da União divulgou uma nota em 29 de julho “em defesa da aprendizagem profissional e do trabalho decente para jovens”. A crítica recai, sobretudo, ao Requip. No texto, a entidade chama atenção para “uma pretensa qualificação profissional desvinculada da prática, sem nenhuma sistematização ou conteúdo programático” e para um possível “cenário de exclusão e evasão escolar”.
Humberto Casagrande, CEO do Centro de Integração Empresa-Escola, o CIEE, afirma que tentou dialogar com o governo sobre a necessidade de vincular as iniciativas de geração de empregos entre jovens aos programas de estágios e de jovens aprendizes, mas a demanda foi rejeitada. Além de esses programas terem ligação com a necessidade de escolarização, também oferecem uma estrutura mais sólida de qualificação profissional.
O CIEE assinou um manifesto em parceria com mais entidades, em 3 de agosto, no qual afirma que obter isoladamente um emprego é a principal maneira de incentivar a evasão escolar entre jovens. Pressionados por necessidades familiares, esses jovens possivelmente não retornam. O resultado é um trabalhador com menor salário, menos direitos e má formação.
“A evasão escolar no Brasil é enorme. Não adianta o governo desrespeitar a formação escolar do jovem, ainda que num programa emergencial”, diz Casagrande.
Um estudo da Fundação Roberto Marinho em parceria com o Insper divulgado em abril mostrou que, a cada ano, mais de meio milhão de pessoas no Brasil passam à fase adulta da vida, aos 18 anos, sem concluir a educação básica. Pelo menos 17% dos jovens que tinham 16 anos em 2018 não devem terminar o ensino básico, ao menos até completarem 25 anos.
Em 2019, das 50 milhões de pessoas de 14 a 29 anos do país, 20,2% (10,1 milhões) não haviam completado alguma das etapas da educação básica, seja por terem deixado a escola ou por nunca a terem frequentado, mostrou o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, no seu primeiro levantamento sobre abandono escolar, publicado em julho do ano passado. No mesmo ano, 51,2% dos brasileiros com 25 anos ou mais (69,5 milhões de pessoas) não haviam concluído o ensino médio. Entre os motivos mais apontados para a evasão, estiveram a necessidade de trabalhar (39,1%) e a falta de interesse (29,2%). A gravidez também é uma justificativa frequente entre mulheres (23,8%).
Bruna Brelaz, presidente da União Nacional dos Estudantes, lembra que 70% dos quase 15 milhões de desempregados são jovens de até 24 anos. Apesar da necessidade laboral, esses desempregados querem retornar à escolarização, mas não veem saídas.
“Esses desempregados querem trabalhar e querem estudar, terminar o ensino médio e fazer faculdade, mas não têm nenhuma perspectiva. E a perspectiva do Congresso é péssima: beira a uma escravização do trabalho da juventude”, declarou.
Em nota técnica de 5 de agosto, mais de 60 entidades argumentam que, no Requip, a carga de 180 horas de aprendizagem é inferior às 400 horas exigidas em programas de aprendizagem. Segundo os signatários, boa parte de juristas, a falta de compromisso efetivo com a formação de jovens trabalhadores representa uma afronta a artigos sobre o tema na Constituição Federal, no Estatuto da Criança e do Adolescente, no Estatuto da Juventude e na Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Em um cenário geral, o estudo também diz que o Requip prejudica a organização sindical do trabalhador, já que não há designação de categoria profissional. No caso do Priore, os especialistas destacam a redução no custo da demissão, a falta de garantias para a criação de novos postos na empresa e falhas na possibilidade de conversão para um contrato convencional. Nos dois casos, os estudiosos creem que há renúncias fiscais sem contrapartidas e criação de embaraços para a fiscalização com possível transgressões à legislação que combate o trabalho escravo.
Na quarta-feira 11, centrais sindicais manisfestaram repúdio à matéria e reivindicaram participação na elaboração das novas normas. As organizações preparam uma paralisação geral no dia 18 de agosto com a temática trabalhista.
“As novas medidas de flexibilização laboral e afastamento dos sindicatos das negociações mais uma vez seguem a linha da precarização e aumentarão a vulnerabilidade dos trabalhadores e das trabalhadoras”, escreveram.