MP 927 é tão letal quanto novo coronavírus
Por José Geraldo de Santana Oliveira*
A Medida Provisória (MP) 927, baixada ao dia 22 de março corrente (tecnicamente seria editada, mas, como se trata de imposição, deve-se usar baixada), a toda evidência caracteriza-se como o maior assalto aos direitos dos trabalhadores, dentre os muitos praticados ao longo dos anos.
Trata-se, por conseguinte, de crime hediondo, inafiançável e insuscetível de graça e anistia, nos termos do Art. 5º, XLIII, da Constituição Federal (CF), posto que, criminosamente, transfere aos trabalhadores todos os ônus da pandemia do Covid-19 (novo coronavírus), ao tempo em que isenta os empregadores de qualquer responsabilidade, inclusive quanto aos contratos de trabalho de seus empregados.
Ao contrário, dá aos empregadores poderes absolutos sobre os contratos de trabalho à revelia dos fundamentos e garantias constitucionais e legais. Como se tudo isso não bastasse, ainda os premia com a liberação do cumprimento de obrigações inafastáveis, como o pagamento da remuneração de férias acrescida de um terço com a antecedência mínima de dois dias de seu início, fazendo tábula rasa do Art. 145 da CLT.
Nos termos do Art. 8º da MP, o abono de férias, que deve ser pago com a antecedência mínima de dois dias de seu início, poderá ser pago até 30 de novembro, data-limite para o pagamento da primeira parcela do 13º salário.
Já o Art. 9º da MP transfere o pagamento da remuneração de férias para até o quinto dia útil do mês subsequente, quando o Art. 145 da CLT determina, como já dito, que tem de ser efetuado com a antecedência mínima de dois dias de seu início.
O Art. 135 da CLT determina que as férias individuais sejam comunicadas ao empregado com a antecedência de 30 dias; o Art. 6º da MP reduz esse prazo a 48 horas. Já as férias coletivas, por força do Art. 139 da CLT, devem ser participadas aos respectivos sindicatos com antecedência mínima de 15 dias; o Art. 12 da MP dispensa essa participação.
O Art. 134, § 3º, da CLT — ironicamente, com a redação dada pela Lei N. 13.467/2017 — estabelece: “§ 3° É vedado o início das férias no período de dois dias que antecede feriado ou dia de repouso semanal remunerado”; o Art. 6º da MP passa ao largo dessa garantia.
Os Arts. 15 e 16 da MP simplesmente dispensam as normas de segurança e saúde do trabalho durante o período de calamidade.
Os Arts. 19 e 20 da MP autorizam os empregadores a pagarem o FGTS relativo aos meses de março, abril e maio, a partir de julho, em seis parcelas, sem nenhum acréscimo.
O Art. 29 da MP, com a finalidade de afastar o direito de empregados que vierem a ser contaminados pelo coronavírus, mesmo que seja nas dependências das empresas, de gozarem da estabilidade de 12 meses após a alta médica, assegurada pelo Art. 118 da Lei N. 8213/1991, estabelece: “Art. 29. Os casos de contaminação pelo coronavírus (Covid-19) não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal”.
O Art. 30 da MP deixa ao arbítrio do empregador a prorrogação, pelo prazo de 90 dias, de convenções e acordos coletivos já vencidos e/ou que vencerem no período de seis meses, contados da data em que ela entrar em vigor. Se não forem prorrogados, perdem a eficácia, o que implicará a impossibilidade de se exigir o cumprimento de todas as garantias neles previstas.
De acordo com o Art. 31 da MP, durante 180 dias, os fiscais do trabalho somente podem lavrar auto de infração nos seguintes casos:
“Art. 31. Durante o período de cento e oitenta dias, contado da data de entrada em vigor desta Medida Provisória, os Auditores Fiscais do Trabalho do Ministério da Economia atuarão de maneira orientadora, exceto quanto às seguintes irregularidades:
I – falta de registro de empregado, a partir de denúncias;
II – situações de grave e iminente risco, somente para as irregularidades imediatamente relacionadas à configuração da situação;
III – ocorrência de acidente de trabalho fatal apurado por meio de procedimento fiscal de análise de acidente, somente para as irregularidades imediatamente relacionadas às causas do acidente; e
IV – trabalho em condições análogas às de escravo ou trabalho infantil”.
Consoante o Art. 32 da MP, os seus comandos aplicam-se, além dos trabalhadores regidos pela CLT, aos temporários, que se sujeitam à Lei N. 6019/1974; aos trabalhadores rurais, regulados pela Lei N. 5589/1973; e, no que couber, aos domésticos, que têm suas relações reguladas pela Lei Complementar N. 150.
Na campanha eleitoral, e mesmo após eleito, Bolsonaro dizia que os trabalhadores teriam de escolher se querem emprego ou direitos. Por essa MP, não terão direitos nem emprego, posto que os empregadores podem suspender arbitrariamente os contratos de trabalho pelo prazo de quatro meses, durante os quais os trabalhadores não terão sequer salários.
Em uma palavra: os trabalhadores que conseguirem livrar-se das consequências do coronavírus, com certeza sofrerão as da MP 927, sendo difícil aquilatar qual dos dois é mais letal.
A MP em questão, impiedosamente, rasga os fundamentos dos valores sociais do trabalho (Art. 1º, IV, da CF), da valorização do trabalho humano (Art. 170, caput, da CF), e do primado do trabalho (Art. 193 da CF); o reconhecimento de convenções e acordos coletivos (Art. 7º, inciso XXVI, da CF), que ao longo de 180 dias são preteridos pela MP. Em síntese: decreta a morte do trabalho e o reinado absoluto do capital.
Inverte a ordem da hierarquia das normas, ao fazer medida provisória — que equivale a lei ordinária — prevalecer sobre a CF e sobre todos os tratados e convenções da OIT, ratificados pelo Brasil.
Ao permitir que os empregadores decretem a suspensão dos contratos de trabalho de seus empregados, sem qualquer ônus para si, mediante simulacro de acordo individual, rasga, também, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) — que, convenha-se, não é dado favorável aos trabalhadores — firmada no Recurso Extraordinário (RE) 590415, que, dentre outros fundamentos, assenta:
“I. A JURISPRUDÊNCIA
3. No âmbito do direito coletivo do trabalho não se verifica a mesma situação de assimetria de poder presente nas relações individuais de trabalho. Como consequência, a autonomia coletiva da vontade não se encontra sujeita aos mesmos limites que a autonomia individual.
[…]
II. LIMITAÇÃO DA AUTONOMIA DA VONTADE DO EMPREGADO EM RAZÃO DA ASSIMETRIA DE PODER ENTRE OS SUJEITOS DA RELAÇÃO INDIVIDUAL DE TRABALHO
8. O direito individual do trabalho tem na relação de trabalho, estabelecida entre o empregador e a pessoa física do empregado, o elemento básico a partir do qual constrói os institutos e regras de interpretação. Justamente porque se reconhece, no âmbito das relações individuais, a desigualdade econômica e de poder entre as partes, as normas que regem tais relações são voltadas à tutela do trabalhador.
Entende-se que a situação de inferioridade do empregado compromete o livre exercício da autonomia individual da vontade e que, nesse contexto, regras de origem heterônoma – produzidas pelo Estado – desempenham um papel primordial de defesa da parte hipossuficiente.
Também por isso a aplicação do direito rege-se pelo princípio da proteção, optando-se pela norma mais favorável ao trabalhador na interpretação e na solução de antinomias.
9. Essa lógica protetiva está presente na Constituição, que consagrou um grande número de dispositivos à garantia de direitos trabalhistas no âmbito das relações individuais. Essa mesma lógica encontra-se presente no art. 477, §2º, da CLT e na Súmula 330 do TST, quando se determina que a quitação tem eficácia liberatória exclusivamente quanto às parcelas consignadas no recibo, independentemente de ter sido concedida em termos mais amplos.
10. Não se espera que o empregado, no momento da rescisão de seu contrato, tenha condições de avaliar se as parcelas e valores indicados no termo de rescisão correspondem efetivamente a todas as verbas a que faria jus. Considera-se que a condição de subordinação, a desinformação ou a necessidade podem levá-lo a agir em prejuízo próprio. Por isso, a quitação, no âmbito das relações individuais, produz efeitos limitados. Entretanto, tal assimetria entre empregador e empregados não se coloca – ao menos não com a mesma força – nas relações coletivas”.
Não obstante o Item 10, retrotranscrito, aludir apenas ao momento de rescisão de contrato, que representa a ruptura da relação empregatícia, as assertivas nele contidas aplicam-se também, e com muito mais força assimétrica, na sua celebração e na sua execução, posto que o empregado se defronta com o seguinte dilema: ou aceita as condições ditadas pela empresa, ou fica sem o emprego.
Nesse momento de calamidade, a aplicação da MP em questão, indiscutivelmente, implicará vício de vontade, porquanto se os trabalhadores não aceitarem as cruéis condições de seus empregadores serão sumariamente demitidos.
Rasga, ainda, a jurisprudência do TST, que já decidiu que o Art. 503 da CLT foi revogado pela Lei N. 4923/1965, e que acordo de redução salarial sem contrapartida em benefícios para os trabalhadores é nulo de pleno direito, haja vista restringir-se à renúncia de direito indisponível.
“[…]
O art. 503 da CLT, que previa a redução dos salários em caso de força maior, sem contrapartida, foi REVOGADO pela Lei nº 4.923/1965, porque posterior à sua edição, que para a mesma situação descrita exige a redução salarial, proporcional à redução da jornada, mediante prévio acordo com a entidade sindical representativa dos seus empregados (art. 2º). E que a manutenção do emprego não é contrapartida exigida pela lei. A manutenção do emprego é a finalidade da lei, obtenível, no entanto, pelo expediente específico nele previsto, que é a redução proporcional da jornada […] Recurso de revista conhecido por violação do art. 7º, VI, da Constituição Federal e provido. (RR-1156-96.2011.5.04.0811, Relator Ministro: Alexandre de Souza Agra Belmonte, Data de Julgamento: 22/04/2015, 3ª Turma, Data de Publicação: DEJT 24/04/2015)”.
“A jurisprudência pacífica desta Corte caminha no sentido de que a redução salarial prevista no art. 503, da CLT, e no art. 7º, VI, da Constituição Federal, só é lícita se corresponder a uma compensação em benefício do empregado, sob pena de caracterizar-se renúncia de direito indisponível” (RR-1001658-51.2013.5.02.0472 Data de Julgamento: 16/12/2015, Relator Desembargador Convocado: Cláudio Armando Couce de Menezes, 2ª Turma, Data de Publicação: DEJT 18/12/2015)”.
Há de se registrar que a MP 927 é muito mais danosa do que o Art. 503 da CLT, que o TST entende revogado.
Ante esses fundamentos, os sindicatos precisam, imediatamente, orientar os seus representados a não assinarem nenhum documento, sem antes os consultarem; bem assim a expedir notificação extrajudicial a todas empresas para que se abstenham de aplicar essa MP, fazendo-a com base no Art. 7º, VI, e 8º, III e VI, da CF, e 726 do Código de Processo Civil (CPC), bem como na Orientação Jurisprudencial (OJ) 392, do TST.
Frise-se que, no tocante às escolas, a aplicação das medidas autorizadas pela MP sob enfoque se reveste de muito maior gravidade e ilegalidade, por, pelo menos, duas boas razões, a saber:
– primeiro, porque, por se tratar do primeiro dos direitos fundamentais sociais, dentre os elencados pelo Art. 6º da CF, ou os dias de suspensão de aulas serão considerados letivos, com a prontidão de professores e alunos, realizados a partir de casa, ou serão repostos, ao longo do ano, de acordo com a readequação do calendário escolar. Em qualquer dos casos, os profissionais da educação estão à disposição do empregador, o que, por óbvio, tem de ser remunerado, sob pena de violação do Art. 884 do Código Civil (CC);
– segundo, porque as mensalidades escolares serão regularmente cobradas, inclusive durante o período de paralisação das aulas. Por isso, não há razão nenhuma de natureza econômica capaz de justificar a suspensão do contrato e/ou a concessão de férias emergenciais, ainda que tais medidas fossem constitucionalmente agasalhadas, o que, como sobejamente demonstrado, não o são.
Uma última palavra aos sindicatos: a prudência indica que, nesse momento, devam evitar ao máximo adoção de qualquer medida judicial, especialmente perante o STF, que, nos últimos anos, tem se empenhado na desconstrução dos direitos fundamentais sociais.
*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee