Mulheres negras e o duplo preconceito na política

Com novas regras eleitorais em 2022, espera-se que a participação delas no Congresso aumente. As poucas que superaram falta de recursos e outros obstáculos e já conseguiram chegar lá relatam preconceito e ataques.

Em meio a falta de recursos e preconceito, entrar para a política é um desafio e tanto para mulheres e negros no Brasil, ainda mais para quem pertence a esses dois grupos. Graças a novas regras eleitorais, espera-se que haja um avanço na representatividade de mulheres negras no Congresso após as eleições de outubro deste ano.

Em 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF) confirmou mudanças que ampliaram os recursos e deram mais visibilidade a candidatos pretos e pardos. Após Consulta junto ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) feita pela deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ), ficou decidido que os recursos públicos do Fundo Partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) – também chamado de Fundo Eleitoral – e o tempo de rádio e TV destinados às candidaturas de mulheres deveriam ser repartidos entre mulheres negras e brancas na exata proporção das candidaturas apresentadas pelas agremiações.

Inicialmente, a mudança seria válida para as eleições de 2022. Em setembro de 2020, o PSOL acionou o STF para que a medida surtisse efeito a tempo de beneficiar candidatos do pleito nos municípios. O tribunal acolheu e a regra entrou em vigor já para as eleições de 2020.

“É um avanço muito importante, sobretudo se considerarmos a baixíssima sub-representação de mulheres pretas na política. São as que recebem menos investimento financeiro, têm menos tempo de campanha e que mais sofrem violência política de gênero”, comenta a coordenadora do Programa de Diversidade e Inclusão da FGV, Lígia Fabris.

E em 2021, uma emenda à Constituição (EC 11/2021) estabeleceu que os votos dados a candidatas mulheres e a pessoas negras serão contados em dobro para efeito da distribuição dos recursos do Fundo Partidário e do Fundo Eleitoral.

“A alteração é muito positiva, pois busca construir incentivos para que os partidos efetivamente invistam nessas candidaturas de mulheres e de pessoas negras”, considera Fabri. “Embora ainda não esteja claro o impacto, fico otimista de que essa determinação possa produzir um maior acesso aos recursos aos segmentos mais sub-representados e, assim, fortaleça nossa democracia.”

Barreiras estruturais

Na avaliação de parlamentares e pesquisadores ouvidos pela DW Brasil, o potencial das medidas depende de fatores que estão além das decisões judiciais. Deputadas e acadêmicos citam barreiras estruturais da sociedade e dos partidos que contribuíram para baixa representatividade feminina (17,66%) e negra (4,09% de pretos e 20,27% de pardos) na Casa em 2018.

Sílvia Cristina (PDT-RO), Vivi Reis (PSOL-PA) e Tia Eron (Republicano-BA) são hoje uma fração das deputadas autodeclaradas pretas e pardas. As três superaram preconceitos, ameaças e restrições orçamentárias, obstáculos possivelmente comuns à maioria das 2.767 mulheres e dos 3.586 pretos (937) e pardos (2.649) que concorreram ao mesmo cargo em 2018.

A vitória nas urnas, porém, não é um antídoto a males vivenciados no cotidiano de negros e negras. Eronildes Vasconcelos Carvalho, nome de batismo de Tia Eron, foi alvo de preconceito no Congresso. Seguranças da Casa tentaram impedir a política baiana de entrar no elevador exclusivo para deputados.

“Estou na sexta legislatura, e as pessoas ainda não me reconhecem na Câmara. E não facilito a identificação porque quero criar uma pedagogia”, afirmou.

No mesmo ambiente que Tia Eron sofre constrangimentos, Vivi Reis afirma se sentir ameaçada por “deputado matador”. Sentimento que, na opinião da parlamentar, ronda as pretas atuantes no Congresso e se manifesta diante de ataques verbais de parlamentares de perfil extremista e do espaço institucional oferecido à minoria racial e de gênero.

“Não priorizam a minha fala. Queremos discutir todos os temas. Ter um debate qualificado sobre a ótica da mulher negra”, diz Vivi.

Falta de recursos

Recursos financeiros também limitam a visibilidade de candidatas negras. A campanha de Silvia Cristina custou menos de R$ 80 mil, cerca de 7,5% do gasto médio de R$ 1.074.212,00 de deputados federais eleitos de Rondônia, segundo estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) baseado em dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

A pedetista compensou o orçamento restrito com contato direto com eleitores, a exposição de dois mandatos de vereadora em Ji-Paraná (RO) e uma campanha baseada na prevenção ao câncer de mama. “Há tantas desigualdades de gênero e de raça. Na política, todos deveriam ganhar o mesmo valor”, defende.

Silvia Cristina reconhece que o equilíbrio ainda é uma utopia e prevê que as eleições de 2022 serão um teste. “Se, em 2022, dobrarmos o número de mulheres negras eleitas, vamos fazer história em 2026”.

Para “fazer história”, as mulheres negras devem, na opinião de Tiago Prata, doutor em ciências políticas pela UERJ, bater com a mesma intensidade nas teclas de raça e de gênero. Autor da tese sobre representação racial no Legislativo, o pesquisador afirma que os recursos limitados são a maior barreira para pretos e pardos chegarem ao Congresso, ressalta que a mulher negra sofre duplo preconceito e sugere que as campanhas abordem as duas desigualdades.

A dissertação de Monique Paulla, mestre pelo programa PPGMC, de mídia e cotidiano da UFF, foi além do pleito de 2018 e analisou a atuação de deputadas negras nas redes sociais entre 2019 e 2021. Segundo a pesquisadora, o movimento identitário que ganhou força na cena política brasileira meses antes das últimas eleições pode ser visto como um levante de mulheres negras em resposta ao assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ), em março de 2018.

Nos estudos feitos em perfis do Instagram, Monique constatou que a mídia se tornou um canal de informação que serve de escudo contra ataques da extrema direita e de espaço para divulgação de ações das parlamentares e na construção de novos nomes na política.

“A atuação da deputada federal Talíria Petrone (PSOL –RJ) foi fundamental para eleição de Benny Briolly (PSOL), a primeira vereadora trans de Niterói (RJ)”, exemplificou.

Baixa representatividade feminina

Fabris, da FGV, chama a atenção para a posição do Brasil no ranking de representatividade feminina no Parlamento. De acordo com o Mapa das Mulheres na Política 2020 – relatório publicado pela ONU e pela União Interparlamentar (UIP) – o país ocupa a 142ª posição, dentre 193 nações.

Uma das autoras de estudos nos quais, em parte, o STF se baseou para decidir favoravelmente a mulheres e a negros candidatos a cargos políticos, Lígia afirma que o processo de renovação com diversidade no Parlamento brasileiro depende de vigilância para cumprimento das regras.

A professora de direito da FGV-Rio cita o descumprimento da obrigatoriedade de cada partido alocar 5% dos recursos do Fundo Partidário na criação de programas de promoção e de difusão da participação política das mulheres. Segundo dados do TSE, entre 2010 e 2015, o percentual de partidos que agiram conforme a lei não passou de 54%.

Dados conflitantes

Um pesquisador ou qualquer outro cidadão que buscar o número exato de deputadas negras na Câmara federal vai se deparar com conflitos de dados.

Se forem consideradas apenas as informações do site Tribunal Superior Eleitoral (TSE), são 13 as parlamentares autodeclaradas pretas e pardas eleitas em 2018. São elas: Áurea Carolina (PSOL-MG), Benedita da Silva (PT-RJ), Chris Tonietto (PSL-RJ), Flávia Arruda (PL-DF), Jessica Sales (MDB-AC), Leda Sadala (Avante-AP), Lídice da Mata (PSB-BA), Professora Marcivania (PCdoB-AP), Mariana Carvalho (PSDB-RO), Rosângela Gomes (Republicanos – RJ), Rosiane Modesto (PSDB-MS), Sílvia Cristina (PDT-RO) e Talíria Petrone (PSOL –RJ) .

Já a lista divulgada pela assessoria de imprensa da Câmara, a partir da autodeclaração das parlamentares, é menor, composta por 11 nomes: Áurea Carolina (PSOL-MG), Flávia Arruda (PL-DF; licenciada), Leda Sadala (Avante-AP), Mariana Carvalho (PSDB-RO), Perpétua Almeida (PC do B- AC), Rejane Dias (PT-PI), Rosângela Gomes (Republicanos – RJ), Professora Rosa Neide (PT-MT), Sílvia Cristina (PDT-RO), Talíria Petrone (PSOL-RJ) e Tia Eron (Republicanos-BA).

Um exemplo que chama a atenção é o da deputada, ex-governadora do Rio de Janeiro e ex-senadora Benedita da Silva que se lançou na política com o slogan “mulher preta e favelada” e não consta na lista da Câmara. A assessoria de imprensa da deputada não respondeu ao contato da DW para falar sobre o assunto.

Já Vivi Reis não está em nenhuma das listas, apesar de se autodeclarar negra. Surpresa, ela afirmou que vai recorrer: “A lista está desatualizada”. Vivi está ausente da lista das eleitas em 2018 do TSE porque assumiu o cargo em 2021 na vaga de Edmilson Rodrigues (PSOL-PA) eleito para prefeitura de Belém em 2020.

Pelo o mesmo motivo de Vivi, a página do tribunal não contabiliza o nome de Tia Eron, que ocupa a vaga de João Roma (Republicanos), ministro da Cidadania desde fevereiro de 2021.

A assessoria de imprensa da Câmara informou que a lista divulgada pela Casa tem apenas quem se autodeclara preta ou parda. A imprensa do TSE confirmou os nomes da lista de deputadas pretas e pardas eleitas em 2018, mas não fez referências às diferenças entre os dados do tribunal e o da Câmara.

Deutsche Welle

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