Na contramão do discurso eleitoral, Bolsonaro sufoca estrutura de combate à corrupção
A percepção do cidadão brasileiro sobre o combate à corrupção no país ficou mais negativa, com um salto de 44% para 50% no índice de pessoas que consideram como ruim ou péssima a gestão Bolsonaro nesse quesito. O dado foi revelado em pesquisa Datafolha publicada no domingo (8) e estabelece um paralelo com o último resultado, obtido em agosto.
O resultado da pesquisa contrasta com o discurso adotado por Bolsonaro e aliados, que utilizaram o tema do combate à corrupção com arma durante a campanha de 2018.
A estratégia, que segue ao longo deste primeiro ano de mandato, traduz-se em diferentes iniciativas de caráter simbólico. É o caso, por exemplo, da nomeação do ex-juiz da Lava Jato Sérgio Moro para o cargo de ministro da Justiça.
Alçado ao título de “herói” pela ala punitivista da política, que tem a bancada da bala entre os principais entusiastas, o ministro foi homenageado em sessão solene nesta segunda (9), na Câmara dos Deputados.
A deferência, alusiva ao Dia Internacional de Combate à Corrupção, foi solicitada por pesselistas próximos ao presidente, que tentam elevar o ibope do governo, cercado de críticas e índices negativos.
O governo e a corrupção
No cenário deste primeiro ano de mandato, destacam-se diferentes episódios que ligam o governo ao tema da corrupção, com destaque para o escândalo apelidado de “laranjal do PSL”. Denunciado pela Folha de S. Paulo em fevereiro deste ano, o esquema trata de candidaturas de fachada para prática de caixa dois na campanha eleitoral de 2018, em Minas Gerais.
O caso atinge diretamente nomes ligados ao PSL, partido do qual Bolsonaro se desvinculou há menos de um mês, como o ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antonio. Ele e outras dez pessoas foram denunciados em outubro pelo Ministério Público Federal (MPF) por suposto envolvimento no caso. O grupo nega participação no esquema.
Outros escândalos estão na órbita do governo, como o possível envolvimento da família Bolsonaro com milícias cariocas. Um dos elementos da acusação envolve o atual senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), filho do presidente, que teria empregado milicianos e parentes de milicianos em seu gabinete quando autuou como deputado estadual no Rio de Janeiro.
Para o deputado Padre João (PT-MG), da Comissão de Fiscalização Financeira e Controle (CFFC) da Câmara, a avaliação negativa do governo em relação à corrupção se comunica diretamente com esses fatos.
“É um grupo que se colocou como [alguém] que iria combater a corrupção como se fosse uma coisa quase milagrosa. E a população vai percebendo que, no próprio seio do grupo, tem muita corrupção, ligação com milícias, então, aos poucos, a ficha vai caindo. Eles não conseguem segurar por todo o tempo uma farsa”, analisa.
O economista Rodrigo Ávila, do movimento Auditoria Cidadã da Dívida (ACD), destaca o comportamento do governo no processo que levou à aprovação da reforma da Previdência, a pauta mais impopular da gestão.
“Não é a gente que está falando. Foi a imprensa que mostrou a compra de votos pra reforma, R$ 40 milhões [em emendas] pra cada deputado, pra uma finalidade que é ruim pro povo. E é exatamente pra poder viabilizar mais dinheiro pro sistema da dívida. Isso tudo reflete na avaliação do governo, a nosso ver”, analisa Ávila.
Controle e participação social
O problema se expande também em outras direções, como é o caso do tratamento dispensado pela gestão Bolsonaro aos órgãos que lidam com atividades de fiscalização, controle, transparência pública e combate à corrupção.
Tem destaque, por exemplo, a tentativa de intervenção no Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) por parte de Flávio Bolsonaro. Alvo de uma investigação do órgão sobre suposto esquema de lavagem de dinheiro, o filho do presidente foi ao Supremo Tribunal Federal (STF), em julho, para pedir que a apuração fosse suspensa. O caso ajudou a esquentar as críticas à família, endossadas pela acusação de amordaçamento do conselho.
Entre outras coisas, o presidente da República chegou a transferir o órgão, no mês seguinte, do Ministério da Economia para o Banco Central (Bacen). Também alterou o nome para Unidade de Inteligência Financeira (UIF) por meio da Medida Provisória (MP) 893, ainda em análise no Congresso Nacional.
Anteriormente, o colegiado havia saído do Ministério da Fazenda, ao qual era vinculado desde sua criação, em 1998, para o Ministério da Justiça, ficando sob a batuta de Sérgio Moro.
Em agosto, a ONG Transparência Internacional Brasil manifestou preocupação com o caso e apontou que o Coaf estaria imerso em um clima de “instabilidade” desde o início do ano, com o troca-troca promovido pelo governo.
A entidade ressaltou que o órgão é considerado “fundamental para o combate à lavagem de dinheiro e à corrupção” tanto no Brasil quanto no exterior e lembrou que o Bacen “não detém autonomia formal”, o que suscita preocupação no tocante a possíveis ingerências políticas no trabalho do órgão.
Em meio à avalanche de críticas, Jair Bolsonaro disse confiar no trabalho do presidente do banco, Roberto Campos, para escolher os nomes da equipe recém-batizada UIF.
O cenário conta ainda com a revogação do Plano Nacional de Participação Social (PNPS) e a extinção de dezenas de conselhos e colegiados por parte da gestão Bolsonaro.
Conhecidos pela representatividade social, tais órgãos são apontados como essenciais para ajudar a mover a engrenagem da transparência pública e do combate a ilegalidades na gestão das políticas. É o que afirma Gilberto Ricardi, auditor federal de Finanças e Controle Gilberto Ricardi, da Corregedoria-Geral da União (CRG). Para ele, a democracia participativa está em xeque no novo cenário.
“Sem empoderamento do cidadão, sem ele poder fiscalizar e acompanhar tudo, é difícil a gente falar que só com técnicos especializados se vai conseguir grandes avanços, porque você acaba enxugando gelo. A gente vai nos municípios, fiscaliza, faz operações, prende gente, mas daqui a pouco aparece outro esquema por lá. Então, tem que ter acompanhamento por parte do cidadão. É preciso ter mais controle social, e não menos, como se observa com a extinção dos conselhos. Não existe combate efetivo à corrupção fora das práticas democráticas”, frisa.
CGU sufocada
Criada em 2003, a Controladoria-Geral da União (CGU) é outro ponto de realce.
Segundo Gilberto Ricardi, apesar de não ter vivido um desmonte acentuado como o observado no Coaf, o órgão mantém atualmente uma situação que diverge do discurso de combate à corrupção orquestrado por Bolsonaro.
“Não conheço nenhum caso de interferência política exatamente na CGU no sentido de impedir alguma auditoria, mas como é que se sufoca um órgão de controle, seja CGU, Abin [Agência Brasileira de Inteligência] ou PF [Polícia Federal]? Um órgão desse basicamente depende de pessoas capacitadas. A CGU, por exemplo, não tem concurso há bastante tempo, desde 2012”, ressalta o auditor federal.
A afirmação é reforçada também em um levantamento feito pelo Sindicato Nacional dos Auditores e Técnicos Federais de Finanças e Controle (Unacon-SN), segundo destaca o presidente da entidade, Rudinei Marques.
“A CGU tem um quadro ideal de 5 mil servidores, sendo 3 mil auditores e 2 mil técnicos, mas hoje estamos com a metade do número de auditores, cerca de 1.500. É impossível dar conta de tudo, considerando que a CGU tem deveres legais como a [aplicação] da Lei Anticorrupção, atividades de correição, transparência, fiscalização e cumprimento da LAI [Lei de Acesso à Informação] por parte dos órgãos”, destrincha.
O presidente da Unacon pontua que o contexto do órgão é de enxugamento progressivo do quadro de servidores.
“Nosso quadro nunca foi tão expressivo. Já chegamos a trabalhar com 60% [do ideal], mas hoje estamos com cerca de 40%. É o menor da história. Não dá pra atribuir isso exclusivamente ao governo Bolsonaro, mas sabemos que há uma política de enfraquecimento. Temos observado, desde o início da gestão, que o tema do combate à corrupção tem se prestado mais a uma retórica política do que a um combate mais efetivo, com aprimoramento de pessoal, novas tecnologias, etc. O que há é um sucateamento do Estado”, avalia.
Gilberto Ricardi assinala que o problema da precarização da estrutura não é novo, tendo se arrastado ao longo dos últimos anos, mas destaca que o governo não deu sinal de concursos e aporte de recursos para a CGU, apesar do recorrente mantra de combate à corrupção.
“A gente depende muito de diárias e passagens. A CGU tem escritório em todas as capitais, mas o dinheiro público não é gasto só nas capitais. As obras da creche, da ponte, etc. estão lá no interior, por isso precisamos ir a esses lugares. A gente percebe que reduziu o número de auditorias e fiscalizações por conta do contingenciamento, então, é preciso observar esse tipo de sufocamento também”, sublinha.
A controladoria tem um orçamento de cerca de R$ 100 milhões anuais para o custeio de despesas, o que envolve diárias, material de trabalho, entre outros gastos.
Outro lado
O Brasil de Fato tentou ouvir o governo federal a respeito das políticas de combate à corrupção e das críticas apontadas pelas fontes ouvidas nesta reportagem, mas não houve retorno até o fechamento da matéria.