Na nova lei antiterrorismo, seus likes podem levar você para a cadeia
O SEU LIKE DESCOMPROMISSADO ou o seu compartilhamento engajado podem lhe render uma pesada pena por apoio ou apologia ao terrorismo se uma mudança na Lei Antiterrorismo for aprovada. O projeto está em debate no Congresso e pode ser aprovado nas próximas semanas.
A lei que pode transformar meras curtidas nas redes sociais em crimes contra a pátria nasceu após uma reportagem da revista Veja sobre um recrutador de brasileiros para o Estado Islâmico. Com medo de brasileiros “radicalizarem” e passarem a cometer atos terroristas como os extremistas do Islã, o senador gaúcho Lasier Martins, do PSD, apresentou em julho de 2016 um projeto para endurecer a Lei Antiterrorismo, que havia sido aprovada por Dilma Rousseff três meses antes, pouco antes do impeachment. Para Martins, a proposta sancionada por Rousseff – com muitos vetos – era “inócua”. Era preciso, segundo ele, endurecer a caçada aos terroristas.
Dois anos depois, a proposta, o PLS 272/2016, voltou à pauta – mas o contexto é bem diferente. Seu projeto ganhou novos contornos e, às vésperas do governo de Jair Bolsonaro, é o instrumento que faltava para o governo perseguir e prender opositores – ou “terroristas”, seja lá o que for classificado desta maneira. A lei, na prática, já poderia criminalizar movimentos sociais e manifestações de qualquer tipo, mas, se a nova proposta for aprovada, o cerco ficaria ainda pior.
Apoiado por Bolsonaro, o novo projeto caiu no colo do senador ultraconservador Magno Malta, do PR, aquele mesmo que conduziu a reza da vitória depois do resultado do segundo turno. Sem conseguir se reeleger para o Senado e já buscando preparar o terreno para o novo governo (do qual possivelmente fará parte como ministro), Malta aproveita o período de transição, em que as atenções ainda estão dispersas, para articular a aprovação do projeto às pressas na Comissão de Constituição e Justiça do Senado.
“A gente sabia que uma hora ele [o projeto de lei] ia efetivamente entrar em votação, esperando um momento favorável”, diz Camila Marques, advogada da Artigo 19, ONG que apoia o acesso à informação. “A eleição de Bolsonaro, que defendeu abertamente a inclusão de movimentos de luta pela moradia, por exemplo, na lista de grupos terroristas, criou exatamente esse momento favorável.”
Lasier Martins e Magno Malta miraram no Estado Islâmico – mas, na prática, podem afetar qualquer pessoa que se opõe ao governo. Entre as mudanças, está definido como terrorismo o ato de “incendiar, depredar, saquear, destruir ou explodir meios de transporte ou qualquer bem público ou privado, com o objetivo de forçar a autoridade pública a praticar ato, abster-se de o praticar”. Este trecho estava no projeto original aprovado em 2016, mas foi vetado por Dilma Rousseff. Outra mudança é a tipificação do ato de “louvar outra pessoa, grupo, organização ou associação pela prática dos crimes previstos” na lei – inclusive na internet. Uma moldura na sua foto de perfil do Facebook, por exemplo, em uma interpretação ampla – mas possível – da lei.
Cuidado com os eventos no Facebook
Como relator, Magno Malta não apenas deu seu parecer favorável ao projeto, como ainda buscou torná-lo pior e mais perigoso a movimentos sociais, com o acréscimo de duas emendas.
A primeira altera o artigo que define o que seria terrorismo. O projeto original dizia que terrorismo é a “prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos nesse artigo por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia ou religião”. Malta acrescentou ao texto “ou por outra motivação política, ideológica ou social”. A manobra mira políticos e que pregam transformação social como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), alvos preferenciais dos ataques do presidente eleito Jair Bolsonaro. Sabe a camiseta ou boné do MST? Então: pode ficar complicado desfilar com ela por aí.
A segunda alteração acrescenta a tipificação de “atos preparatórios” de um suposto ato terrorista. A redação proposta por Malta acrescentaria que “nas mesmas penas incorre aquele que, pessoalmente ou por interposta pessoa, presta auxílio ou abriga pessoa de quem saiba estar praticando atos preparatórios de terrorismo”. Como seria provada a intenção? Seriam usados posts na internet? Escrever, mesmo que de brincadeira, sobre a intenção de matar uma autoridade, incendiar o Congresso ou algo parecido, valeria uma condenação?
Se as sugestões de Malta forem aprovadas, barricadas com fogo, muito comuns em manifestações, poderiam ser consideradas parte de um plano terrorista, e qualquer manifestação popular poderia ser automaticamente enquadrada por suas motivações “política, ideológica ou social” – em especial se a polícia agredisse os manifestantes e os acusasse de reagir ou incitar.
Mas piora: pode ser que você compartilhe um evento no Facebook, convocando para um protesto, e a manifestação tenha conflito, barricadas e vidraças quebradas. É o suficiente. Não apenas quem estava na manifestação pode ser acusado de participar de um ato terrorista, como quem compartilhou o evento, convocou ou incentivou a participação pode ser enquadrado na Lei Antiterrorismo por prática de “atos preparatórios”. Se você ainda comemorar posteriormente ou celebrar os que conseguiram sair ilesos ou desafiaram a polícia durante o protesto, estará em situação ainda pior – terá praticado “atos preparatórios” e ainda terá louvado “pessoa, grupo, organização ou associação pela prática” do terrorismo.
Um passo para a criminalização dos movimentos sociais
Durante os debates, o senador Randolfe Rodrigues, da Rede, alertou que o objetivo de Martins e Malta seria o de estender qualquer tipo de crime para os movimento sociais. “É um ato de censura, de combate ao direito de ir e vir e à liberdade de manifestação, conceituado na Constituição”, disse Rodrigues. O senador petista Lindbergh Farias classificou o projeto como um violento atentado à democracia. “Em cima desse texto, podem prender militantes de movimentos estudantis, movimentos sindicais, estamos criminalizando o MST”, afirmou.
A oposição pediu uma audiência pública e conseguiu travar, no dia 31 de outubro, a votação na Comissão de Constituição e Justiça no Senado. A intenção é tentar impedir que o projeto seja votado em 2018 – mas Bolsonaro já sinalizou, inúmeras vezes, suas intenções ao lidar com opositores e movimentos sociais, especialmente os que taxa como “esquerdistas”. “Vamos botar um ponto final em todos os ativismos do Brasil”, chegou a dizer, durante um ato na Avenida Paulista uma semana antes de ser eleito presidente.
Em entrevista para a Folha de S.Paulo, a historiadora Maud Chirio, pesquisadora sobre a direita brasileira, deu voz às preocupações dos movimentos: “Para mim, no dia 3 de janeiro de 2019 [dois dias após a posse de Bolsonaro], o MST e o MTST serão declarados organizações terroristas“. Com as modificações, este não seria um cenário difícil de se concretizar. De olho em um espaço no futuro governo, Malta faz o que pode para garantir um emprego em 2019.
Herança do PT
Embora nunca tenha sido usada para criminalizar movimentos sociais, a Lei Antiterrorismo é um legado da gestão de Dilma Rousseff, na época preocupada com os protestos que ocorriam no Brasil em junho de 2013 e em possíveis manifestações que poderiam bagunçar a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016.
O Brasil mal havia tido tempo de respirar após os grandes protestos de junho de 2013 quando, em novembro daquele mesmo ano, a comissão mista da Consolidação das Leis e Regulamentação da Constituição do Senado, presidida pelo senador Romero Jucá, do MDB, e pelo deputado federal petista Candido Vaccarezza, apresentou o Projeto de Lei do Senado 499/2013.
Nascia ali o embrião do projeto da Lei Antiterrorismo. O PL tipificava, já em seu primeiro artigo, o terrorismo como “o ato de provocar ou infundir terror ou pânico generalizado mediante ofensa à vida, à integridade física, à saúde ou à previsão de liberdade de pessoa”. O objetivo da lei era atualizar a antiga Lei de Segurança Nacional, aprovada durante a ditadura, e que seria insuficiente para lidar com o tema específico e cada vez mais discutido do terrorismo (como consta na justificativa do próprio projeto).
O país ainda tentava entender o que havia acontecido nos últimos meses de revolta social, mas os poderes da república estavam mais preocupados em garantir que junho nunca mais acontecesse – e, se acontecesse, que fosse ainda mais duramente criminalizado e reprimido. E 2014 era ano de Copa e logo depois, em 2016, viriam os Jogos Olímpicos – era importante, naquele contexto, impedir protestos que pudessem se tornar violentos.
A proposta foi criticada pela OAB, que considerava não haver “justificativa para que se promova a tipificação da conduta em lei específica” e contra movimentos sociais. Mas a nova lei foi desde o princípio apoiada por políticos da oposição e do governo. Se por um lado o então ministro dos esportes, Aldo Rebelo, do PCdoB, comentava que o que mais preocupava às vésperas da Copa de 2014 eram os crimes comuns e não o terrorismo, por outro, senadores do PT como Jorge Viana e Paulo Paim, defendiam a votação urgente do projeto.
O deputado petista Humberto Costa fazia uma oposição solitária à proposta. Declarou, na época, que “tem que ficar absolutamente claro que terrorismo é aquilo que representa, de fato, uma ameaça ao Estado, e ao regime democrático que leve a uma risco de ruptura. Não podemos pegar as manifestações sociais e classificar como o terrorismo”.
Passou a Copa do Mundo, e o texto seguia parado na Comissão de Constituição e Justiça do Senado em 2015. Quase ao mesmo tempo, no entanto, o governo apresentou na Câmara dos Deputados outro projeto, que alterou a Lei das Organizações Criminosas, e tipificou o crime de terrorismo, prevendo as penas mais pesadas de 15 até 30 anos em regime fechado.
O governo dizia que levou adiante a lei atendendo às cobranças do Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo, uma organização intergovernamental formada por 36 países, incluindo o Brasil, que exigiu uma tipificação para o crime de terrorismo. Especialistas, no entanto, viram a proposta como uma forma do governo federal ampliar o estado policial, que já estava em curso com a criação da Força Nacional de Segurança (pelo então presidente Lula em 2004) e a ocupação de favelas (como Maré e Alemão) pelo Exército.
O projeto passou como um relâmpago pela Câmara e Senado e se tornou lei em março de 2016, quando foi sancionado por Dilma Rousseff – a tempo das Olimpíadas do Rio de Janeiro. Rousseff vetou alguns dos artigos mais polêmicos, como o que considerava como atos de terror “incendiar, depredar, saquear, destruir ou explodir meios de transporte ou qualquer bem público ou privado” ou ações de “interferir, sabotar ou danificar sistemas de informática ou bancos de dados”, além da “apologia ao terrorismo”.
‘As disposições do projeto por si só não garantem que essa lei não seja usada contra manifestantes e defensores de direitos humanos.’
Apesar disso, ativistas e especialist
Imediatamente após a aprovação da lei, em 21 de julho, 15 suspeitos foram presos no Rio de Janeiro acusados de planejar um atentado terrorista durante as Olimpíadas em uma operação até hoje envolta em dúvidas e controvérsia. Oito foram condenados.
Na tentativa de obter total controle sobre as ruas após 2013 com a emergência de novos movimentos autônomos e descentralizados apostando no uso pesado de redes sociais, o PT de Dilma e Lula buscou formas de garantir sua segurança institucional com a certeza de que se perpetuaria no poder. O apoio de partidos aliados à direita (e mesmo opositores) não foi uma surpresa – era do interesse de diversas esferas do poder a aprovação de uma lei que limitasse protestos.
Mas a manobra poderá custar muito caro à esquerda e mesmo à população em geral, que passou a tomar gosto por sair às ruas em protestos independentemente do espectro político. “Somente uma resistência articulada é capaz de barrar os retrocessos e esses instrumentos de repressão e criminalização”, diz Camila Marques.