Não foi “prejudicado em nada”, mas prejudica a educação
Por Gilson Reis*
“Não fui prejudicado em nada.” Foi com essa declaração, à guisa de testemunho, que o presidente Jair Bolsonaro defendeu o trabalho infantil. Trabalhou na roça, segundo ele, quebrando milho (embora entrevista concedida cinco anos atrás por um irmão conte uma versão diferente).
“Quando algum moleque de nove, dez anos, vai trabalhar em algum lugar, está cheio de gente falando que é trabalho escravo, não sei o quê, trabalho infantil… Agora quando está fumando um paralelepípedo de crack, ninguém fala nada. Então o trabalho não atrapalha a vida de ninguém.”
Se sua história de vida explicaria sua truculência e sua patente ignorância, só alguém que tenha acompanhado sua trajetória mais de perto poderia afirmar. No entanto, sua visão distorcida da realidade e das necessidades de uma criança e/ou de um adolescente para garantir seu desenvolvimento pleno e saudável assusta. Na colocação, ele deixa explícito algo que sua política avessa à educação pública, gratuita e de qualidade já deixava antever: que, para ele, lugar de criança não é na escola.
“Fique tranquilo que não vou apresentar aqui nenhum projeto para descriminalizar o trabalho infantil porque eu seria massacrado”, continuou ele, no mesmo vídeo. Na atual conjuntura, nem precisaria. A política educacional de seu governo — ou, talvez fosse melhor dizer, a falta dela — já faz isso, empurrando crianças e adolescentes para fora das instituições de ensino. Isso acontece de diversas formas.
Contrariando seu próprio discurso de dar prioridade à base do ensino público — o que foi usado como justificativa para o corte de verbas das universidades federais —, o Ministério da Educação bloqueou cerca de R$ 2,4 bilhões que estavam previstos para investimentos em programas da educação infantil ao ensino médio.
Outro exemplo é o fato de que, em março, o MEC, endossado pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) — que lavou as mãos de sua atribuição de definir o valor financeiro e precificação do Custo Aluno Qualidade Inicial (CAQi) —, decidiu enterrar esse parâmetro de cálculo, que havia sido uma das grandes conquistas do Plano Nacional de Educação (PNE).
O CAQi, assim como o Custo Aluno Qualidade (CAQ), definiria o investimento mínimo anual do país por estudante, nos níveis de ensino infantil, fundamental e médio da rede pública. A eles estão relacionados o número de estudantes por sala, as condições de infraestrutura, o plano de carreira dos trabalhadores em educação, a existência ou não de bibliotecas e de acesso à internet, entre outras questões atreladas à qualidade e ao financiamento. Ou seja, por eles seriam destinadas mais verbas para aquelas escolas que precisam aumentar a qualidade, auxiliando na melhora dos índices. Mas MEC e CNE colocaram fim à conquista sem sequer implementá-la, em mais um ataque grave rumo à destruição do PNE e da educação pública.
É claro que o desmonte do Plano Nacional não é prerrogativa destes seis meses de governo Bolsonaro. Sancionado em junho de 2014 pela presidenta Dilma Rousseff e previsto para vigorar até 2024, o PNE chegou, no último dia 25, à metade de seu prazo de vigência, conforme levantado pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação — uma das maiores defensoras do CAQi e do CAQ —, com nada menos do que 16 de suas 20 metas completamente estagnadas.
Isso é consequência do próprio golpe e de toda articulação que levou a ele, bem como dos destroços que sobraram depois. Vale lembrar que, ao longo de 2015, primeiro ano de seu segundo mandato, a presidenta Dilma foi impossibilitada de governar, um impedimento prático à sua gestão que resultaria no impedimento real concretizado com sua destituição de 2016. Dali em diante, o governo ilegítimo de Michel Temer, com a Emenda Constitucional 95, que congelou por 20 anos os investimentos em políticas públicas, inviabilizou o cumprimento daquela que era considerada a meta mais importante: o aumento progressivo da destinação do Produto Interno Bruto (PIB) para a educação pública, até atingir 7% agora, no quinquênio do Plano, e 10% até seu decênio. Isso sem contar a reforma do ensino médio, nitidamente excludente — afastando, por exemplo, o jovem trabalhador da escola —, com rebaixamento da formação, ataque ao magistério e atendimento dos interesses privatistas.
Esses interesses são os que o governo Bolsonaro busca atender ainda mais. Pelo Artigo 13 da Lei 13.005/2014, que instituiu o PNE, o poder público tinha prazo até 2016 para instituir o Sistema Nacional de Educação (SNE), responsável pela articulação entre os sistemas de ensino, em regime de colaboração, para efetivação das diretrizes, metas e estratégias do PNE. Essa foi, durante a luta pela aprovação do Plano Nacional, a principal bandeira da Confederação Nacional de Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino — Contee, uma vez que o SNE seria o articulador, normatizador, coordenador e regulamentador tanto do ensino público quanto do privado, sendo que as instituições privadas, por fazerem parte do Sistema, subordinam-se ao conjunto de normas gerais de educação, como já determinado pela Constituição. Ora, subordinar-se às regras aplicadas à educação pública é tudo o que não querem as empresas e empresários que transformam educação em mercadoria.
O melancólico aniversário de cinco anos deste Plano pelo qual tanto lutamos, e que tem sido sistematicamente ignorado, desmontado e destruído, é o símbolo da gravidade da crise educacional à qual estamos submetidos e que precisamos, unidos, enfrentar.
Gilson Reis é Coordenador-geral da Confederação Nacional de Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino — Contee