Não há juízes nem justiça no Supremo Tribunal Federal
Por José Geraldo de Santana Oliveira*
O escritor francês François Andriex, no conto “O Moleiro de Sans-Souci”, revela a sua fé cega nas supostas independência e imparcialidade do Poder Judiciário, fazendo-o pela boca do personagem que deu título ao conto, que, ante a ameaça do imperador prussiano, Frederico II, de lhe tomar o moinho, após a sua recusa em o vender, desafiou-o com a contundente frase: “Como se não houvesse juízes em Berlim”.
Ao contrário do confiante moleiro — porta-voz do escritor —, os trabalhadores brasileiros têm absoluta certeza de que não há juízes no Supremo Tribunal Federal (STF) em número necessário para formar maioria. Se alguma dúvida havia sobre essa triste constatação — o que é de se questionar —, esta foi dissipada no recente julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) N. 324, proposta pela Associação Brasileira do Agronegócio (Abag) e relatada pelo ministro Roberto Barroso contra a Súmula 331, do Tribunal Superior do Trabalho (TST), que proíbe a terceirização da atividade-fim, e do recurso extraordinário (RE) N. 958252, proposto pela Celulose Nipo Brasileira (Cenibra) e relatado pelo ministro Luiz Fux contra a mesma Súmula, concluído ao dia 30 de agosto de 2018.
No referido julgamento, os sete ministros que votaram pelo acolhimento das pretensões dos autores dos citados processos desvestiram-se da condição de magistrados, para assumir a condição de embaixadores do capital, para eles, o senhor absoluto do universo. Nunca se viram tanta desfaçatez, hipocrisia e reverências ao capital.
Após a decisão tomada nos citados processos, não há mais limites e/ou barreiras para a terceirização no âmbito do direito brasileiro, que pode abranger, sem nenhum empecilho, todas as atividades econômicas, após ter sido aprovada a seguinte tese vinculante:
“É licita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante”.
Os argumentos dos embaixadores do capital, portadores de togas de ministros, segundo os quais a proibição de terceirização da atividade-fim viola a livre iniciativa, retira das empresas a necessária competitividade, inibe o investimento e a criação de empregos (empregabilidade), além de lhes gerar total insegurança jurídica, são de uma desfaçatez colossal e repletos de hipocrisia, não resistindo ao menor sopro de cotejo com a realidade brasileira.
Para comprovar essa assertiva, basta que se faça um breve histórico da Súmula 331 do TST, satanizada por eles, pelas empresas e seus arautos. A precursora dessa foi a Súmula N. 256, aprovada pela Resolução N. 4/1986 de 1986 — publicada no Diário de Justiça de 30.9.1986 —, com a seguinte redação:
“Súmula nº 256 do TST CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. LEGALIDADE (cancelada) – Res. 121/2003, DJ 19, 20 e 21.11.2003:
Salvo os casos de trabalho temporário e de serviço de vigilância, previstos nas Leis nºs 6.019, de 03.01.1974, e 7.102, de 20.06.1983, é ilegal a contratação de trabalhadores por empresa interposta, formando-se o vínculo empregatício diretamente com o tomador dos serviços”.
A Súmula satanizada (331), que reviu a 256/1986, foi aprovada pela Resolução N. 23/1993, publicada no DJ de 21.12.1993 e 04.01.1994.
Como se constata por esse singelo histórico, os empresários e os seus embaixadores (ministros) conviveram com a vedação de terceirização da atividade-fim, ditada, inicialmente pela Súmula 256 e, a partir de 1993, pela 331, ambas do TST, por nada menos que 31 anos e 11 meses, sem se dar conta de que isto era inconstitucional e fato gerador de todos os descalabros, citados na profissão de fé dos ministros que assim votaram. Isto é crível? Quanta hipocrisia! Quanta desfaçatez! Aliás, esta pergunta foi formulada pelo ministro Marco Aurélio, em seu voto, sem que nenhum dos seus pares — melhor seria dizer ímpares — cuidasse de respondê-la.
Vale ressaltar, como mais um fato a desautorizar os falaciosos argumentos dos ministros que votaram pela liberação desabrida da terceirização, que, dentre os precedentes da Súmula 331, encontra-se registrado, nos anais do TST, o voto da lavra do ministro classista Roberto Della Mana, que representava a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) no Processo RR
45956-68.1992.5.09.5555, favorável à sua aprovação, sem qualquer ressalva.
Os ministros que se tornaram avalistas incondicionais da terceirização ilimitada, ao que parece, nunca leram “O Anel de Giges”, história inserta no livro “A República”, de Platão, que narra o diálogo entre Glauco e Sócrates, sobre justiça e injustiça. Para Glauco, “O homem injusto deve ser hábil tão qual é um artista, e deve agir cautelosamente, sempre passando despercebido. Não deva
errar, mas se o fizer, precisa contornar o fato. Há de ser corajoso e persuasivo em suas ações. Se alguém, por ventura, o desmascarar, então o injusto estará sendo medíocre, pois o cúmulo da injustiça seria parecer justo sem de fato o ser”.
Em que pese a pomposa verborragia que despenderam para afirmar que não há limite para os interesses do capital, invocando, para isso, o que preconiza o Art. 1º, inciso IV, da CF, não conseguiram seguir a orientação de Glauco quanto à habilidade, à cautela e ao passar despercebidos. Ao contrário, foram ostensivos e enfáticos na defesa do injusto, querendo, a todo custo, fazer este passar por justo sem o ser.
Primeiro porque o dispositivo constitucional invocado, e que se constitui no quarto fundamento da República Federativa do Brasil, dispõe que, antes da livre iniciativa, ungida à condição de Deus absoluto por tais ministros, vêm os valores sociais do trabalho, aos quais não dedicaram nem sequer uma palavra de consolo, limitando-se a perorar que a terceirização não gera precariedade das condições de trabalho — afirmação não avalizada por nenhuma voz que, com sinceridade, defenda o Estado Democrático de Direito, pois, corre o risco de ser desmoralizada pelos números do IBGE.
Segundo porque, igualmente, antes da valorização da livre iniciativa como fundamento da ordem econômica, determinada pelo Art. 170 da CF, vem a valorização do trabalho humano.
Terceiro porque a propriedade, que é o cajado que dá à livre iniciativa os poderes de que ela dispõe, não é um fim em si mesma, acima de tudo e de todos, como afirmam os realçados ministros. Consoante o que estipula o Art. 170, inciso III, da CF, a propriedade tem, como premissa maior, cumprir a sua função social, negada por esses, como mais ênfase do que o apóstolo Pedro negou Jesus, segundo ensinamentos bíblicos.
Quarto porque o primado do trabalho, e não a livre iniciativa, é base da ordem social, que tem como objetivos o bem-estar e a justiça sociais, que são valores maiores das sociedades efetivamente democráticas, desprovidos de qualquer significado para comentados ministros.
Quinto porque a tese por eles esposada afronta a não mais poder o Art. 23 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário desde a sua aprovação, em 1948.
Esse Art. preconiza: “1.Toda a pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho, a condições equitativas e satisfatórias de trabalho e à protecção contra o desemprego. 2.Todos têm direito, sem discriminação alguma, a salário igual por trabalho igual. 3.Quem trabalha tem direito a uma remuneração equitativa e satisfatória, que lhe permita e à sua família uma existência conforme com a dignidade humana, e completada, se possível, por todos os outros meios de protecção social. 4.Toda a pessoa tem o direito de fundar com outras pessoas sindicatos e de se filiar em sindicatos para defesa dos seus interesses.” Quem conhece os deletérios efeitos da terceirização, peremptoriamente negados pelos ministros arautos dela, sabe que nenhuma dessas garantias se faz presente no cotidiano dos trabalhadores terceirizados. A título de ilustração, tomam-se as convenções e/os acordos coletivos que regulam as condições de trabalho dos trabalhadores das empresas tomadoras, sumariamente negados aos terceirizados, sem o quê nem porquê.
Colhem-se dos nauseabundos votos de subserviência aos interesses do capital que eram proféticas as jocosas e teratológicas palavras do deputado federal José Carlos Aleluia (DEM-BA), pronunciadas por ocasião da votação do Projeto de Lei (PL) N. 4330, que deu origem à Lei N. 13429/2017, ainda ungida pelo STF, que abriu largos à terceirização e à intermediação de mão de obra.
Tais palavras foram as seguintes: “O PT está desesperado porque sabe que, após a conversão desse PL em lei, não haverá mais categorias profissionais; haverá apenas terceirizados”.
A cruenta e repugnante decisão do STF, sob comentários, rasga impiedosamente o Art. 511 da CLT, que dita as normas reguladoras do enquadramento sindical das categorias profissionais, assim dispondo:
“Art. 511. É lícita a associação para fins de estudo, defesa e coordenação dos seus interesses econômicos ou profissionais de todos os que, como empregadores, empregados, agentes ou trabalhadores autônomos ou profissionais liberais exerçam, respectivamente, a mesma atividade ou profissão ou atividades ou profissões similares ou conexas.
§ 1º A solidariedade de interesses econômicos dos que empreendem atividades idênticas, similares ou conexas, constitui o vínculo social básico que se denomina categoria econômica.
§ 2º A similitude de condições de vida oriunda da profissão ou trabalho em comum, em situação de emprego na mesma atividade econômica ou em atividades econômicas similares ou conexas, compõe a expressão social elementar compreendida como categoria profissional.
§ 3º Categoria profissional diferenciada é a que se forma dos empregados que exerçam profissões ou funções diferenciadas por força de estatuto profissional especial ou em consequência de condições de vida singulares.
§ 4º Os limites de identidade, similaridade ou conexidade fixam as dimensões dentro das quais a categoria econômica ou profissional é homogênea e a associação é natural.”
A primeira das incontáveis catastróficas consequências dessa monstruosa decisão é a da derrogação (anulação, supressão) do Art. sob destaque, o que implica o caos no tocante a enquadramento sindical, que, em conformidade com o Art. 8º, incisos II, III e IV, da CF, obrigatoriamente, deva ser por categoria.
Se o movimento sindical não reagir de imediato, enfrentando e negando, com os meios que se fizerem necessários — os institucionais parecem esgotados —, a aberração jurídica, de fundo político, contida na nefasta decisão do STF, em breve as palavras do citado deputado federal representarão a realidade.
Devem reagir aos verdugos do STF, enfeitados de juízes, como Giordano Bruno reagiu aos juízes que o condenaram à fogueira, dizendo-lhes, com desprezo, as seguintes palavras:
“Vocês pronunciam esta sentença contra mim com um medo maior do que eu sinto ao recebê-la”.
*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee