“Não querem que o povo leia, porque não querem que o povo possa”
A política de alfabetização do governo Bolsonaro representa um retrocesso ao pautar o letramento como método principal
José de Ribamar Virgolino Barroso*
Há poucos meses, em função do Dia Mundial da Alfabetização, instituídos pela Unesco e comemorado no início de setembro, circulou nas redes sociais um trecho de “Os Filhos dos dias”, do escritor uruguaio Eduardo Galeano a respeito de Paulo Freire e seu trabalho com um grupo de camponeses no Sergipe. O texto foi inclusive citado em um artigo da Contee sobre a data, que fez contraponto ao retrocesso representado pela política de alfabetização do novo governo brasileiro.
Na obra, Galeano narra a experiência do camponês João, que, num assombro entremeado de silêncios, conta ter passado a noite inteira sem pregar os olhos depois da emoção de ter, na véspera, escrito seu nome pela primeira vez. O texto volta à mente numa pesquisa sobre a erradicação do analfabetismo na Bolívia, ao encontrar a reportagem de Fellipe Abreu e Luiz Felipe Silva escrita em 2016 para a revista Calle2.
Na matéria, os repórteres acompanham um grupo de 40 idosos camponeses numa aula de alfabetização, na região rural da cidade periférica de El Alto, vizinha de La Paz. “Ler e escrever era proibido! Eu morava no sítio em que meus pais trabalhavam e o patrão dizia que se eu fosse à escola cortaria minha língua”, é o relato do líder comunitário Dom Quintin Pulma, então com 83 anos. “(…) agora lemos e escrevemos. Vão e contem para todos que somos capazes.”
O método de alfabetização implementado na Bolívia desde 2006 — e que tornou o país sul-americano um país livre do analfabetismo, conforme reconhecimento da Unesco dado em 2016 — é o Yo Sí Puedo cubano, usado em outros países latino-americanos, como a Venezuela, com resultados semelhantes. Pesquisadores da área de educação apontam nele influências de Vigotski e do próprio Paulo Freire. “Sim, eu posso” não é apenas um nome, mas um manifesto. Porque ser capaz de ler é um ato de empoderamento; é ter acesso a uma gama de signos — e a todo um universo por trás deles — impedidos a não “iniciados”, interditados pela desigualdade. E não se trata apenas de letramento, que se tornou inclusive uma exigência do capital para moldar a mão de obra para o mercado. Está-se falando aqui de mais do que isso: da democratização da leitura, sem a qual não é possível uma democratização da própria sociedade.
Uma das notícias mais impactantes do recente golpe de Estado na Bolívia (se é que possível classificar o grau de impacto de tantas tristes consequências que dele advêm) foi a ameaça de incêndio à biblioteca de Álvaro García Linera. Há algo de profundamente simbólico nessa intimidação, assim como o há, por aqui, em todos os ataques a Paulo Freire, sua memória e seu legado.
O golpe de 2016 no Brasil, mesmo que considerado um golpe branco perto do que acaba de acontecer com o povo boliviano, também foi um golpe contra a cultura, contra o ensino público, contra a educação como direito e sua democratização em busca da superação de desigualdades. Nem aqui nem lá querem que o povo leia, porque não querem que o povo possa.
*José de Ribamar Virgolino Barroso é Coordenador da Secretaria de Finanças da Contee