Negativa das Forças Armadas sobre tortura ‘briga com a história’, diz Dallari
São Paulo – A partir desta semana, e até o fim de julho, a Comissão Nacional da Verdade estará envolvida em dois mutirões, em Brasília e no Rio de Janeiro, para ouvir aproximadamente 40 agentes da ditadura, entre eles o general reformado José Antônio Nogueira Belham, envolvido no caso Rubens Paiva. Ao mesmo tempo, a CNV já começa a sistematizar as informações para o relatório final, que será divulgado em 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos.
O coordenador do colegiado, Pedro Dallari, destaca entre os avanços obtidos a aceitação, pelas Forças Armadas, de investigar casos de tortura em algumas de suas unidades, embora os relatórios das comissões de sindicância tenham sido “decepcionantes”, segundo ele. “O fato que as Forças Armadas alegam que não houve desvio de finalidade em centros que comprovadamente foram usados como centros de tortura é decepcionante, é negar uma história óbvia”, afirma.
Dallari adianta que a CNV, inclusive, está preparando um questionário suplementar que será encaminhado aos militares. “Por coincidência, no mesmo período em que as Forças Armadas divulgaram os relatórios, houve a divulgação de documentos do governo norte-americano, da embaixada norte-americana, que descrevem com minúcias os procedimentos de tortura que ocorriam. Documentos dos anos 1970. Então, a negativa das Forças Armadas é completamente desprovida de credibilidade, briga com a história comprovada”, diz o coordenador, lamentando a resistência do setor em admitir violações de direitos humanos no período. “Não tem sentido que os jovens oficiais, que não têm nenhuma relação com o que houve no passado, fiquem carregando esse peso, esse ônus, de sustentar uma história insustentável.”
Em fevereiro, a CNV encaminhou pedido ao Ministério da Defesa para que as Forças Armadas fizessem sindicâncias para apurar desvios de finalidade em sete instalações militares – locais que, segundo a comissão, foram usados como centros de tortura no período da ditadura (1964-1985). Em junho, Aeronáutica, Exército e Marinha mandaram seus relatórios, com teor semelhante, afirmando não haver registro de anormalidades naqueles locais.
Mutirão
Para esta semana, a Comissão da Verdade convocou 16 agentes do Estado, com atuação no período da ditadura, para prestar depoimento em Brasília. Não se trata propriamente de um direito de defesa, diz Dallari, mas de dar voz a todos os citados em documentos relacionados a graves violações de direitos humanos, para que estes apresentem suas versões. Um dos convocados é o general reformado José Antônio Nogueira Belham, que comandava o Destacamento de Operações e Informações (DOI) do I Exército, no Rio, quando o ex-deputado federal Rubens Paiva desapareceu, em janeiro de 1971.
O episódio Paiva, por sinal, é citado por Dallari como um dos avanços obtidos pela CNV, nesse caso em parceira com a comissão fluminense. “O caso foi desvendado”, diz. “A única informação que falta é o destino que foi dado ao corpo.”
Sobre o relatório final a ser tornado público em dezembro, o coordenador da CNV afirma que será um “depoimento de referência muito abrangente e consistente”, mas trata-se de um tema que não se esgota. “Eu tenho dito o seguinte: as investigações sobre as graves violações aos direitos humanos não começaram e não vão acabar com a Comissão Nacional da Verdade.” E se agentes do Estado serão, no futuro, responsabilizados ou punidos por sua participação, essa é uma questão externa, que caberá ao Judiciário.
“Temos tido essa preocupação de fazer com que essa hipótese da responsabilização não seja um fator de dificuldade para os trabalhos da comissão”, diz Dallari. “Queremos que os depoimentos ocorram, que as pessoas falem. Portanto, não tratamos desse assunto no âmbito da comissão. Agora, é inevitável que o relatório e as atividades da comissão acabem tendo um impacto a favor da tese de uma responsabilização. Não porque a gente queira, mas por decorrência natural do trabalho da comissão.”
Ele identifica duas missões para a CNV. “Uma é o relatório em si. Outra é procurar desenvolver iniciativas que ajudem a reconstituir o período investigado, sensibilizar a sociedade para os temas investigados. Entendo que as duas serão cumpridas de maneira satisfatória. O relatório vai consolidar do que já se sabia e vai agregar informações.”
Evolução
Para Dallari, a percepção da sociedade em relação ao assunto já está mudando. E isso começa a acontecer no Judiciário. Se, por exemplo, é verdade que o Tribunal Regional Federal (TRF) da 2ª Região não levou adiante uma ação penal proposta pelo Ministério Público contra seis acusados no caso Riocentro, ele observa que desta vez a decisão não foi unânime (2 a 1). “Já começa a haver uma divergência nessa matéria. Mesmo nos tribunais superiores, essa é uma discussão que ainda vai ter muita evolução no Brasil”, acredita.
Outra consequência das atividades da comissão, como a divulgação de relatórios de pesquisa, acrescenta o coordenador, foi ajudar no “completo esvaziamento dos atos que objetivavam celebrar os 50 anos do golpe militar”. Segundo ele, há uma “evidente” insatisfação da sociedade com a política. “Mas essa insatisfação não foi canalizada para uma onda nostálgica em relação à ditadura ou a governos autoritários.”
Dos 16 convocados para o mutirão de Brasília, que vai desta segunda (21) até sexta (25), sete atuaram durante a chamada Guerrilha do Araguaia. A Comissão da Verdade agendou uma audiência pública específica sobre o tema, em 12 de agosto, quando deverá ser ouvido o coronel da reserva Sebastião Curió.
Do dia 28 até 1º de agosto, os depoimentos serão prestados no Rio, colhidos por Dallari e mais três integrantes da comissão (José Carlos Dias, Paulo Sérgio Pinheiro e Rosa Cardoso). A princípio, as duas sessões serão reservadas.
Da Rede Brasil Atual