Nísia Trindade fala de críticas, machismo e desabafo com Lula: “Mulher pode ser firme sem falar grosso”
Ministra da Saúde diz ter apoio do presidente, reconhece crise em hospitais federais do Rio e promete mudanças: “A situação exige uma intervenção firme e profunda”
Na mira do Centrão e de alas do PT fluminense, a ministra da Saúde, Nísia Trindade, diz ser alvo de “críticas indevidas” e “comentários machistas” desde que assumiu o cargo. Ela confirma que se emocionou na reunião ministerial de segunda-feira, mas considera que o episódio foi relatado de forma a tachá-la de frágil. A ministra reconhece a crise na gestão dos hospitais federais do Rio e promete mudanças: “A situação exige uma intervenção firme e profunda”.
A senhora surpreendeu colegas ao fazer um desabafo emocionado na reunião ministerial de segunda-feira. O que aconteceu?
De fato, eu me emocionei. É uma pressão muito grande você fazer seu trabalho, ter uma história, e ser tachada de má gestora, de frágil. Depois ficou uma discussão sem sentido sobre se eu tinha chorado ou não. Se um homem bate na mesa, ninguém pergunta se ele foi grosseiro. Se uma mulher bate na mesa, é descontrolada.
Na reunião, eu falei: “Presidente, não queria dizer isso, mas tenho que fazer um desabafo diante das minhas colegas ministras. Muitas vezes, as pessoas falam que eu devo falar grosso. Não vou falar grosso. Sou mulher, e uma mulher pode ser firme sem falar grosso. Quero respeito ao meu modo de ser”.
A forma como o episódio foi tratado mostra que há uma questão de gênero. As pessoas têm muita dificuldade de ver uma mulher no Ministério da Saúde. Sou a primeira, embora 75% da força de trabalho do SUS seja de mulheres.
Temos um modelo agressivo e masculino de pensar a autoridade. Sou gestora há muitos anos. Desde o primeiro cargo que assumi, ouço comentários de natureza machista.
Isso ainda acontece?
Sim, como acontece com a maioria das mulheres que ocupa uma posição de destaque. O machismo é uma característica estrutural da nossa sociedade. Por isso estamos na luta por equidade salarial e paridade em posições de liderança. Há situações com as quais a gente não pode se conformar.
Como foi a reação do presidente?
Disseram que o presidente Lula me deu uma bronca. Ele sempre me tratou com o maior respeito. O que não quer dizer que não possa fazer cobranças, como faz a todos. Ele é claro ao dizer que confia e aposta no meu trabalho.
Há uma campanha em curso para derrubá-la?
Não posso falar em campanha, mas há várias manifestações que expressam esse desejo. Questionam a liberação de recursos do ministério, a distribuição para estados e municípios. O que aconteceu foi que reparamos distorções que vinham do governo passado. Existem regras para isso, são as regras do SUS. Toda gestão pode ser criticada, mas cabe ao presidente e à sociedade avaliar o nosso trabalho.
A sra. já estava na mira do Centrão, e agora é atacada por setores do PT. O deputado Washington Quaquá declarou que não teria ‘o tamanho que o governo Lula precisa’. Como lida com o fogo amigo?
O PT do Rio fez uma manifestação oficial a favor do meu trabalho. O deputado Quaquá tem peso no partido, mas refuto a crítica dele. Nem vou comentar se estou ou não à altura do cargo. Basta ver o que fiz no primeiro ano de gestão.
Há uma crise nos hospitais federais do Rio. Como o governo pretende resolvê-la?
Os hospitais estão numa situação muito precária de infraestrutura e pessoal. Exigem uma intervenção firme e profunda.
Antes de assumir o ministério, li o relatório da CPI da Covid, que descrevia um quadro de grande degradação no governo passado. Houve muita interferência política, com indicações do senador Flávio Bolsonaro. No ano passado, fizemos uma avaliação completa e conseguimos alguns avanços. Reabrimos 300 leitos, inauguramos o hospital-dia no Andaraí, retomamos os transplantes em Bonsucesso. Fizemos coisas necessárias e importantes, mas que ainda estão muito aquém do que é preciso.
O que mais será feito?
Já assinei uma portaria para centralizar compras e criei um comitê de gestão. Estamos fazendo avaliações diárias, com apoio da Prefeitura do Rio, e vamos anunciar novas medidas concretas em breve. Estou determinada a fazer as mudanças que forem necessárias.
Por que a sra. demitiu o diretor Alexandre Telles e o secretário Helvécio Magalhães?
Não há nada que desabone o Alexandre Telles, mas julguei que precisava de alguém com mais experiência. Helvécio Magalhães é um grande quadro, mas houve questões ligadas a desgastes e à falta de cuidado em certas práticas.
Aliados de Telles dizem que ele foi demitido após apontar irregularidades em hospitais.
Toda denúncia é apurada e encaminhada aos órgãos de controle. É falso afirmar que a saída dele se deveu a isso.
A nomeação da ex-deputada Cida Diogo para substituí-lo foi uma imposição do PT?
Foi um pedido meu. Ela já foi deputada, mas é a atual superintendente do ministério no Rio. É uma pessoa de reputação conhecida e de ótimas relações com o estado e o município. Só posso agradecer a ela e lamentar que seja alvo de críticas indevidas.
A sra. criticou a interferência política na gestão passada, mas hoje há diretores indicados por deputados do PT.
Não podemos nivelar as coisas como se fossem iguais. O que não se deve fazer nos hospitais é estabelecer cotas partidárias. Os deputados participaram das indicações, mas montei uma comissão para avaliar currículos. Não tenho filiação partidária, não fiz troca de favores. Já troquei três diretores por causa de condutas que considerei inadequadas.
Pretende fazer novas trocas?
Estou avaliando o conjunto das direções. Não quero prejulgar ninguém, mas estou fazendo uma avaliação.
Apesar das operações do governo para atender os ianomâmis, o número de mortes notificadas aumentou 6%. O que ocorreu?
Não há bases confiáveis para comparar as mortes, porque a subnotificação imperava na gestão anterior. A situação dos ianomâmis é um tema que preocupa todo o governo. Existem áreas em que ainda não estamos presentes por questões de segurança.
Que questões?
Existem territórios tomados pelo garimpo e por narcotraficantes. Mas há uma ação forte do Ministério da Justiça e da Polícia Federal para que possamos chegar lá.
Diante de tanta pressão, já pensou em entregar o cargo?
Jamais. Antes de assumir o ministério, presidi a principal instituição de saúde pública do país e enfrentei o negacionismo. Procuro manter o equilíbrio entre a autoestima e a autocrítica. Me sinto segura e sei o que estou fazendo. Estou feliz com o que fiz até agora, mesmo nesses momentos tão difíceis, que afetam a mim e à minha família.