No Chile, Paulo Freire estruturou educação camponesa e acelerou processo de politização dos trabalhadores

Em exílio no país entre 64 e 69, o pedagogo formou mais de 10 mil educadores para atuar no campo sob seu método

Thalita Pires

Após o golpe militar de 1964, o Chile tornou-se um destino comum para exilados brasileiros. Naquele momento, o governo de Eduardo Frei (Democracia Cristã), de viés reformista, representava uma reserva democrática no continente. Entre os expatriados que buscaram o país estava o pedagogo Paulo Freire, que coordenava o Plano Nacional de Alfabetização do governo João Goulart. Ele foi preso pela ditadura e passou 73 dias encarcerado. Depois disso, apenas com o RG no bolso, ele rumou para a Bolívia e, posteriormente, para o Chile.Graças a relações com outros exilados em território chileno, como Paulo de Tarso (ministro da Educação do presidente destituído João Goulart), Plínio de Arruda Sampaio (também integrante do governo Jango, na área de reforma agrária) e Thiago de Mello (adido cultural do Brasil no Chile), Freire foi convidado a, como consultor da Unesco, trabalhar no Instituto Nacional de Desenvolvimento Agropecuário (Indap). O instituto, que lidava com pequenos agricultores, passou a incorporar programas educacionais.

O Chile da década de 60 compartilhava alguns dos mesmos desafios sociais que os vizinhos sul-americanos: os índices de analfabetismo do país oscilavam entre 25% e 30%; no campo, esse número chegava a 60%. O país contou com algumas conquistas sociais importantes, como o código laboral de 1931, que previa direitos como férias, remuneração mínima e licença maternidade.

O avanço, tal qual como no Brasil, jamais atingiu os trabalhadores do campo. “Os trabalhadores rurais foram deliberadamente excluídos do direito de sindicalização e dos direitos sociais e laborais de modo geral até 1967, quando é aprovada a lei de sindicalização campesina”, conta a historiadora Joana Salém, que estudou a passagem de Freire pelo Chile. Em sua tese, ela detalha a relação entre a educação dos camponeses e a reforma agrária no país.

É nesse cenário de desigualdades sociais profundas, contradições de classe e, ainda, estabilidade democrática, que as ideias de Paulo Freire encontram terreno fértil. Foi lá, inclusive, que ele finalizou duas de suas obras mais conhecidas, Educação como prática da liberdade (1967) e Pedagogia do oprimido (1968).

Defensor da valorização dos saberes do povo, Freire influenciou de maneira decisiva o processo de alfabetização e educação dos camponeses chilenos. De acordo com a pesquisa de Joana Salém, o país teve 10 mil educadores treinados para aplicar as técnicas desenvolvidas pelo pedagogo em todo o país.

O alcance da pedagogia freiriana no Chile foi maior do que no Brasil. “Ao conduzir pedagogias na reforma agrária chilena, o brasileiro encontrou terreno fértil para sua proposta conscientizadora, em um contexto favorável às mudanças estruturais”, escreveu Joana em seu artigo Pedagogia do oprimido: documento da reforma agrária no Chile.

Freire entrou em embate com técnicos advindos de fora do campesinato, que inferiorizavam os saberes camponeses relacionados à produção agrícola. Para o educador, eles praticavam o que chamou de “invasão cultural”, ou seja, traziam técnicas para aumentar a produtividade, mas buscavam implantá-las sem diálogo. Freire, por sua vez, defendia a “autodeterminação da subjetividade camponesa na criação de uma nova estrutura produtiva”, como escreveu Joana.

Em um documento intitulado Alfabetización Funcional en Chile, produzido para o Icira, o educador argumentou que “o aumento da produção no processo de reforma agrária é eminentemente cultural. O aumento indispensável da produção não pode ser visto como algo separado do universo cultural em que ocorre”. Foi nesse contexto que ele desenvolveu alguns de seus principais conceitos, como “alienação da ignorância”, “cultura do silêncio” e “ação antidialógica”, além da já citada “invasão cultural”.

Avanços trabalhistas

O trabalho de Freire no Chile ocorreu em diálogo com uma crescente politização da classe trabalhadora, especialmente do campo. Em 1967, com a pressão dos trabalhadores rurais e apoio de uma ampla aliança reformista, o país aprovou as leis da reforma agrária e da sindicalização camponesa.

As leis previam ações de Estado para a capacitação camponesa em três frentes: alfabetização, formação sindical e técnica produtiva. Entre 1967 e 1969, mais de 225 mil camponeses passaram a integrar sindicatos comunais e frequentar cursos inspirados na pedagogia freiriana.

O trabalho de Freire no Chile pode ser entendido como uma continuidade do seu trabalho no Brasil, interrompido pelo golpe de 1964. “No Chile ele encontrou condições políticas para desenvolver de fato seu método em larga escala. É um processo de politização que é fomentado, acelerado e ativado por esse método”, diz Joana.

A historiadora argumenta, entretanto, que não se pode entender a passagem do pedagogo pelo Chile como uma espécie de salvação dos camponeses. “Seria uma espécie de mitificação acreditar que se não fosse o Paulo Freire ou seu método o campesinato chileno não teria se politizado. Seria uma forma individualista e personalista de pensar o processo”, explica. “O que se pode dizer é que ele ofereceu ferramentas pedagógicas e políticas para esses educadores, no sentido de ampliar e acelerar o processo de politização camponesa”, diz.

Paulo Freire trabalhou até 1968 para o governo chileno. Como explica Joana, “em razão das nuances do processo político chileno, Freire se tornou um incômodo para ala direita da DC [Democracia Cristã], alinhada com Eduardo Frei, até o fim do contrato do brasileiro, que não foi renovado, em fins de 1968”. Ainda assim, seu método seguiu influenciando a educação camponesa no país.

Reforma agrária

Com a ascensão de Salvador Allende à presidência, em 1970, o processo de politização do campesinato prosseguiu. O número de trabalhadores do campo sindicalizados atingiu seu pico – mais de 300 mil – em 1973. Entre 65 e 72 o país passou pelo processo de expropriação de terras por vias legais. Foram 4,6 mil propriedades expropriadas, num total de 8,8 milhões de hectares.

Conforme a reforma agrária avançava, o processo de expropriação de latifúndios seguiu em debate. “Em 1973, estava em debate a necessidade de uma nova lei de reforma agrária, que pudesse ampliar o território expropriado, reduzindo ainda mais o poder dos proprietários rurais privados e ampliando o poder das cooperativas camponesas, dos assentamentos e dos sindicatos camponeses”, explica Joana.

Essa nova lei nunca foi aprovada. O processo emancipatório dos camponeses chilenos foi interrompido em 11 de setembro de 1973, com o golpe contra Salvador Allende. A violência da ditadura instalada por Augusto Pinochet reverteu drasticamente a sindicalização camponesa. Em 1977, o número de sindicalizados era de cerca de 100 mil. Em 1981, eram apenas 31 mil trabalhadores organizados em sindicatos.

Em um processo de contrarreforma agrária, o governo Pinochet reverteu as conquistas do período anterior. Das terras que passaram pelo processo de reforma agrária, 28% delas foram devolvidas aos antigos donos e 39% foram consideradas inadequadas para a atividade camponesa. Foram então confiscadas e vendidas a grupos financeiros ou aos antigos expropriados. Apenas 33% das terras expropriadas se mantiveram nas mãos dos camponeses beneficiados com a reforma agrária.

Além disso, a produção em cooperativas foi substituída pelo incentivo ao trabalho individual, e os incentivos governamentais para pequenos produtores cessaram. Isso criou um cenário de queda de produção e forçou os pequenos proprietários a venderem suas terras, fazendo com que o país voltasse a ter uma estrutura fundiária baseada em grandes propriedades, cenário que perdura até hoje.

Edição: Thales Schmidt

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