No segundo trimestre, a economia estava em um patamar 15,1% abaixo do nível do início de 2014
As mais recentes estatísticas do IBGE sobre o PIB indicam que a economia brasileira retrocedeu 16 anos. A pandemia acelerou o recuo, mas a crise começou antes e foi impulsionada pelo golpe de Estado de 2016, que levou Michel Temer à Presidência e depois resultou na eleição de Jair Bolsonaro.
Desde então está em curso uma agenda de radical restauração neoliberal, hostil ao povo e à nação brasileira. Uma agenda fundada numa política fiscal que inviabiliza a recuperação da produção e condena o Brasil à estagnação. A classe trabalhadora paga a conta, amargando o desemprego em massa, a redução dos salários e a destruição e flexibilização dos direitos.
Leia abaixo a análise do Dieese:
Desafios complicados
A queda histórica de -9,7% do PIB brasileiro no segundo trimestre deste ano mostra que, a despeito dos esperados efeitos das crises sanitária e econômica, a incapacidade do governo Bolsonaro para lidar com a situação potencializou o número de casos, mortes e a queda da atividade econômica.
As micro e pequenas empresas seguem com dificuldades de acessar recursos públicos que deveriam manter a produção e também garantiriam o emprego e a renda dos trabalhadores; a falta de investimentos públicos impossibilita uma saída ordenada e consistente desse cenário adverso; a inexistência de uma política externa pragmática, que vise à rearticulação das cadeias produtivas e dos fluxos de insumos, impõe mais obstáculos aos investimentos privados; a volatilidade do câmbio e a ausência de uma política econômica focada no mercado interno têm pressionado os preços de matérias-primas industriais e, sobretudo, os preços dos alimentos.
Os desafios para a superação da crise são enormes e as decisões tomadas pelo governo definem não apenas a velocidade da retomada, mas também as consequências na profunda desigualdade social do país. Para responder se o país sairá melhor da pandemia, é preciso saber o que (não) está sendo feito para resolver os problemas.
Os impactos da pandemia na economia brasileira
A economia brasileira encolheu -9,7% no segundo trimestre de 2020, na comparação com o trimestre anterior, o pior resultado desde o início da série histórica, iniciada em 1996. Houve redução intensa do consumo das famílias (-12,5%), da formação bruta de capital fixo (-15,4%) e do consumo do governo (-8,8%). Setorialmente, destacaram-se negativamente o segmento de Transporte, armazenagem e correio (-19,3%), a Indústria de transformação (-17,5%) e o Comércio (-13,0%).
Com isso, no segundo trimestre, a economia estava em um patamar 15,1% abaixo do nível do início de 2014.
O resultado poderia ser ainda pior se não fosse o impacto positivo do auxílio emergencial, fruto de pressão popular e sindical sobre o Congresso Nacional. As parcelas de R$ 600,00 foram importantes para a sobrevivência de boa parte da população e garantiram minimamente o consumo de itens básicos de alimentação.
Vale destacar, inclusive, que parte do gasto das famílias, proporcionado pelo auxílio, retorna aos governos em impostos, isto é, o impacto fiscal líquido é menor. Nesse sentido, a redução do valor das parcelas para R$ 300,00, até o final do ano, aprofundará os níveis de pobreza no país, diminuirá o montante de dinheiro em circulação e tornará ainda mais dramática a questão da fome no Brasil. O aumento da pobreza da população e a consequente redução do consumo, além disso, serão entrave para a retomada da atividade econômica e o fortalecimento do mercado interno.
A deterioração do mercado de trabalho
A taxa de desocupação no Brasil não refletiu totalmente os efeitos da pandemia, uma vez que parte da população teve dificuldades para procurar trabalho em virtude das necessárias restrições de atividades e circulação de pessoas.
O número de desocupados ficou em 12,8 milhões, no segundo trimestre, praticamente estável em relação ao trimestre anterior. Contudo, a quantidade de ocupados registrou queda de 8,9 milhões de trabalhadores. O contingente de pessoas fora da força de trabalho aumentou 10,5 milhões.
Ou seja, o fato de um número significativo de pessoas não ter buscado ocupação (por receio da covid-19, por acreditar não ser possível conseguir uma colocação, porque precisava auxiliar familiares ou conhecidos doentes ou por outro motivo) reduziu a pressão sobre o mercado de trabalho, momentaneamente. As maiores baixas na ocupação ocorreram entre os trabalhadores domésticos (-21,0%), empregados do setor privado (-12,1%), principalmente sem carteira assinada (-21,6%) e trabalhadores por conta própria (-10,3%), com destaque para aqueles sem CNPJ (-12,9%).
A massa de rendimentos do trabalho caiu 5,6% no segundo trimestre, em relação ao trimestre anterior, mas o rendimento médio aumentou 4,6%. Esses dados, de ocupação e renda, indicam que a redução no número de ocupados aconteceu em postos de trabalho em que os rendimentos são menores, razão pela qual a média subiu no segundo trimestre.
Alta nos preços dos alimentos e livre mercado
Outro desafio à retomada é a escalada de preços ao produtor e ao consumidor. O Índice de Preços ao Produtor (IPP-IBGE) da indústria de transformação acumula aumento de 6,5% em 2020 e a alta na fabricação de produtos alimentícios é de 12%.
Os preços da cesta básica, pesquisados pelo Dieese, também concentram elevações significativas este ano, atingindo 16,2% em Salvador, 13,2% em Aracaju, e 11,5% em Recife. Em São Paulo, onde o preço da cesta básica foi o maior em agosto, (R$ 540,00), o aumento em 2020 chegou a 6,6%.
Entre os itens da cesta básica, apenas na passagem de julho para agosto, o óleo de soja aumentou 31,8%, em Campo Grande, e 26,5%, em Aracaju. O arroz registrou alta de 17,9% em Porto Alegre e de 13,6% em Campo Grande.
As razões para o aumento são a desvalorização da moeda brasileira, com ampliação das exportações e queda nas importações de alimentos, o que fez diminuir a oferta interna e pressionou os preços. Mas há também problemas mais estruturais. O governo federal tem negligenciado a política de regulação de estoques de grãos, que poderia acomodar variações abruptas e significativas de preços em momentos como este.
O Banco Central, por sua vez, deveria minimizar a volatilidade do câmbio. A elevada concentração de terra e o avanço do agronegócio para exportação têm dificultado a situação do agricultor familiar. As áreas para plantio foram reduzidas e é difícil o acesso a créditos e subsídios para a produção voltada para o mercado interno.
Deixar a situação ser regulada pelas “leis do livre mercado” penalizará principalmente a parcela mais pobre da população, para a qual o gasto com alimentos é proporcionalmente mais alto do que nas demais camadas sociais. A redução do auxílio emergencial e a crescente pressão inflacionária, principalmente sobre os alimentos, tendem a agravar a distância entre pobres e ricos, de forma rápida. A fome e a miséria podem crescer mais e piorar a já precária situação da classe trabalhadora.
Reforma administrativa rebaixa servidores e serviços públicos
Diversas medidas adotadas pelo atual governo federal buscam redesenhar o Estado brasileiro, diminuindo investimentos e a oferta de bens e serviços públicos e negligenciando ou eliminando políticas de combate às desigualdades (entre mulheres e homens, negros e não negros, campo/cidade etc.) e de promoção de direitos sociais. Nessa perspectiva, o governo apresentou uma proposta de Reforma Administrativa (PEC 32/2020) que procura, entre outras medidas, acabar com o Regime Jurídico Único, regulador da relação dos servidores com a administração pública.
Resumidamente, a proposta visa precarizar a relação de trabalho do servidor público, em linha com as reformas trabalhistas do setor privado, que têm sido adotadas desde 2017. Ao se permitir a contratação de trabalhadores por meio de novos vínculos e regras, abre-se a possibilidade de rebaixamento de salários e dificulta-se a progressão funcional. A propositura do governo ainda prevê a adoção de critérios subjetivos para avaliação de desempenho dos servidores, o que abre margem para perseguições políticas e partidárias. Diversos pontos não estão esclarecidos, entre eles, como ficará a negociação coletiva.
A PEC da Reforma Administrativa também não apresenta a totalidade das alterações que o governo pretende, mas cria mecanismospara que muitas mudanças sejam feitas posteriormente, por meio de legislação infraconstitucional, que torna mais fácil impor prejuízos aos serviços e servidores públicos. Por exemplo, a PEC aumenta o poder do Executivo para extinguir cargos, funções, benefícios e instituições, além de facilitar as privatizações, reduzindo, portanto, o contrapeso do Legislativo.
Não há dúvidas de que a precarização das relações de trabalho do servidor público, aliada a ações que retiram obrigações do Estado para repassar à iniciativa privada, visando à geração de lucro de empresas das mais variadas áreas, leva inevitavelmente à piora na oferta de bens e serviços públicos de qualidade.
Alento para a redução das desigualdades: o novo Fundeb
Em relatório recentemente divulgado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), o Brasil aparece como 7º país mais desigual do mundo. De acordo com o Relatório Social Mundial 2020 das Nações Unidas, a crescente desigualdade em países desenvolvidos e em desenvolvimento pode exacerbar divisões e desacelerar o desenvolvimento econômico e social.
Os efeitos da desigualdade social brasileira podem ser observados na educação, de duas formas: a primeira está na dificuldade que as famílias têm para acessar uma educação básica de qualidade, com os mais pobres alcançando somente estruturas educacionais mais precárias, devido às grandes diferenças regionais e econômicas; a segunda diz respeito às diferentes capacidades dos entes públicos para oferecer estrutura educacional de qualidade. Quanto menos recurso um município ou estado tiver, menores serão as possibilidades de investimento na educação pública.
O Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação) visa reduzir essas desigualdades. Ele é formado por um percentual fixo da arrecadação de alguns impostos e transferências de cada ente federado e distribuído de acordo com as necessidades de municípios e estados, e medido pelo número de matrículas de cada rede educacional pública, até garantir um valor mínimo por estudante.
No Brasil, a ausência do Fundeb prejudicaria cerca de 99% dos estudantes de redes municipais no Norte e Nordeste. Dos municípios brasileiros que perderiam recursos, 29,7% deixariam de investir pelo menos 30% de todas as verbas em educação básica, o que afetaria quase 12 milhões de estudantes (ou 58% dos alunos de redes municipais).
O novo Fundeb, promulgado pelo Congresso em agosto deste ano, entra em vigor (de maneira progressiva) a partir de 2021 e melhora e amplia a atual política. Há previsão de que, em valores de hoje, a complementação da União passará de R$ 15,8 bilhões para R$ 36,3 bilhões. Mais do que isso, foram definidas novas formas de divisão dos recursos adicionais. Uma delas prevê que parte da verba será distribuída a partir da condição fiscal de cada município ou estado, ou seja, os entes federativos com menor capacidade de arrecadação terão mais recursos.
Também está previsto que parte dos recursos seja utilizada na educação infantil, o que será de extrema importância para que o Brasil se aproxime da universalização do ensino nessa etapa. De acordo com o Plano Nacional de Educação (PNE), 100% das crianças de 4 a 5 anos de idade deveriam frequentar a pré-escola. Atualmente, 93,8% delas estão matriculadas. Em relação às crianças de até 3 anos, a situação está ainda mais distante da ideal: ao menos 50% deveriam ter acesso às creches, mas, de acordo com dados de 2018, apenas 35,7% estavam matriculadas.
Em relação à remuneração dos profissionais da educação, além de ser impactada positivamente pelo aumento de recursos, há a ampliação do percentual a ser destinado a esse item: de 60% para 70%. Além dos profissionais do magistério, que já figuravam no modelo atual, foram beneficiados os demais trabalhadores da área, o que melhora as possibilidades de construção de uma carreira mais atrativa também para este grupo, de extrema importância para o desenvolvimento educacional.
Apesar de haver, no novo Fundeb, alguns itens que precisam de atenção e que ainda serão regulamentados, a aprovação do Fundo foi importante tanto para a manutenção de diversas redes educacionais públicas brasileiras quanto para o desenvolvimento econômico e social do país, pois contribui com a diminuição das desigualdades sociais entre estudantes das redes públicas e até na melhora da relação entre educação privada e pública.
O país poderia sair melhor da pandemia
Embora as ações de diversos governos locais e, principalmente, do governo Bolsonaro conduzam ao aumento das desigualdades sociais, há possibilidade de “redução de danos” para a construção de um país mais justo.
Para que a economia brasileira se recupere, são necessárias mudanças estruturais e de rota. A preocupação não deve ser apenas a velocidade da retomada, mas a forma como essa retomada vai ocorrer, para que o resgate do país ocorra de maneira inclusiva, envolvendo a maioria da população e indo além do ritmo anterior à pandemia. É preciso lembrar que a economia avançava meros 0,8% ao ano até o início de 2020, o que deixa claro que as reformas do atual e do governo anterior foram ineficazes para alavancar a economia e melhorar a vida da população. Muito se discute quando o país estará recuperado economicamente da pandemia, mas voltar ao nível anterior significa baixo crescimento e alto desemprego. É preciso ir além.
Algumas decisões importantes nesse momento devem moldar os próximos anos, como a PEC 32/2020, da Reforma Administrativa, e a regulamentação dos pontos que ficaram em aberto do novo Fundeb. Além disso, na pauta ainda estão as necessárias valorização do salário mínimo e prorrogação do auxílio emergencial. Nesse sentido, a proposta do governo de reajuste do salário mínimo de meros R$ 22 e de redução no valor do auxílio para R$ 300 apenas dificultam a redução das desigualdades. O Dieese, em publicações anteriores, mostra que há formas de financiamento das políticas de estímulo à economia no contexto atual e que é necessário emergir dessa situação de forma diferente para o que o Brasil possa sair melhor da pandemia.