Novo pacto federativo propõe ‘escolha de Sofia’: gastar mais em educação ou em saúde?
Proposta do Governo de unificar gastos das duas pastas deve elevar a temperatura das discussões entre Executivo, Congresso e governadores
A tensão permanente entre a presidência da República e o Congresso ganhou ares exponenciais nesta quarta (19) quando vieram a público as falas raivosas do general Augusto Heleno, vazadas de uma reunião privada, em que acusava a tentativa de “golpe de um parlamentarismo branco”. A relação tumultuada entre os dois poderes deve ganhar novos capítulos —e novos personagens— quando a proposta de emenda constitucional (PEC) do Governo para um novo Pacto Federativo chegar ao Parlamento. O projeto, que visa alterar o percentual de gastos constitucionais com saúde e educação, vai colocar também os governadores no meio de um debate incendiário. O ano começou com um clima pouco ameno entre o Palácio do Planalto e os Governos estaduais e deve azedar um pouco mais quando entrarem em debate medidas que mexem no caixa dos Estados.
O projeto do novo pacto do prevê unificar os gastos mínimos com saúde e educação para União, Estados e municípios. O que significa que, sem recursos carimbados, os gestores poderiam ter flexibilidade e compensar o gasto de uma área na outra. Para a maioria dos especialistas ouvidos pelo EL PAÍS, a proposta precisa ser avaliada com cautela já que deve causar uma disputa entre as duas pastas, em que o prejudicado pode ser o cidadão. “Estão pedindo para que sejam feitas várias escolhas de Sofia, não tem como escolher se educação é mais importante do que saúde”, explica Daniel Cara, coordenador geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.
De acordo com a Constituição, os Estados devem destinar 12% da receita à saúde e 25% à educação. Municípios, por sua vez, têm de gastar, respectivamente, 15% e 25%. Atualmente, os pisos de despesas com as duas áreas são corrigidos pela inflação do ano anterior, conforme a regra do teto de gastos. Com a nova proposta, essa divisão seria definida por cada município e Estado.
Na apresentação da PEC do Pacto Federativo, em novembro passado, o secretário de Fazenda do Ministério da Economia, Waldery Rodrigues, defendeu a unificação dos limites argumentando que os gestores teriam mais flexibilidade para alocação da verba.“Isso é bom. Se tem uma área que demande mais recursos do que outra, é natural que destine mais recursos. Estamos tendo cada vez menos crianças na faixa fundamental, e a população está envelhecendo”, afirmou ele.
A economista Esther Dweck, professora de Economia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) discorda. Na avaliação dela, caso não haja uma definição acerca dos percentuais, uma das áreas pode sair prejudicada e, para ela, será a educação. “Os custos de saúde têm uma inflação muito alta. E a maior parte dos municípios gasta bastante acima do mínimo com saúde. Eles vão usar o mínimo da educação para cobrir a saúde e vão deixar de lado a educação”, opina Dweck, que é ex-secretária de orçamento do Planejamento.
No modelo atual já existe sobrecarga nas duas áreas, já que os recursos são menores do que as responsabilidades assumidas. Segundo dados da Confederação Nacional de Municípios de 2018, ao menos 92,69% dos municípios gastam mais do que 25% com educação. Na área de saúde, 99,28% investem acima dos 15%. Em 2018, os municípios brasileiros investiram, em média, 21,68% do orçamento em saúde, ou seja, cerca de 7% a mais do que o mínimo constitucional; e 28,98% em educação, quase 4% acima do estabelecido.
Na avaliação de Daniel Cara, ao juntar os recursos numa vinculação única, que para os municípios será de 40% do orçamento, quem tiver mais poder de barganha com o gestor e os parlamentares vai cumprir melhor com a suas demandas. “Se a corporação médica for mais organizada, os médicos vão receber mais. Se for a corporação educacional, será a educação. E, nessa disputa, quem tem o prejuízo concreto vai ser o cidadão”, explica. “Agora vai ter que se decidir se vai expandir matrícula ou construir hospital. Uma decisão absurda”.
Erika Aragão, presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde (Abres), concorda que o grande risco de descarimbar os gastos de educação e saúde é de criar uma disputa entre os dois seguimentos. “Ao invés de se aliarem, vão ser setores antagônicos na briga por orçamento, duas áreas que são consideradas direito na constituição de 1988”, explica. Aragão ressalta que o contexto é ainda mais preocupante porque a PEC ainda cria gatilhos a serem adotados no caso de descumprimento dos limites paras as contas públicas, como a redução de trabalho de servidores públicos com diminuição proporcional de salários. “Essa proposta não protege o setor de saúde e de educação. Só juízes, procuradores, diplomatas e policiais não entrarão nessa regra. E nessa situação de menos dinheiro será criada uma demanda ainda maior de saúde”, explica. “Ao dizer que dá flexibilidade, parece bom, mas na verdade vai causar uma disputa interna num contexto de redução drástica de recurso”, completa.
Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) apontou que a vinculação orçamentária do gasto em saúde continua sendo imprescindível ainda que não resolva o problema de financiamento do sistema, já que os gastos com saúde ainda são muito baixos comparados com os de países de renda semelhante e que não possuem sistema universal de saúde. “Contudo, constitui importante mecanismo de proteção contra retrocesso na oferta de bens e serviços de saúde”, diz o relatório, publicado em outubro.
Sandro Cabral, professor de estratégia no setor público do Insper, acredita que as PECs apresentadas pelo Governo têm pouca chance de passarem no Congresso, mas avalia que a proposta de desvincular os gastos é uma opção financeira interessante para o gestor alocar os recursos no que as cidades realmente precisam. “É difícil deixar tudo muito carimbado, você tem estimulo a gastar mal. Em uma cidade que está envelhecendo muito, talvez seja melhor alocar mais recursos em saúde”, diz. Ele pondera, no entanto, o temor de que essa liberdade faça com que o dinheiro não vá para quem precise. “As amarras existem para que de alguma forma os recursos atendam o interesse coletivo”, diz.