O alto risco de defender direitos humanos no Brasil

Antes mesmo da morte da vereadora carioca Marielle Franco (PSOL), o Brasil já era considerado há anos um dos países mais perigosos para ativistas que defendem direitos humanos ou causas ambientais, ao lado de países como Colômbia, Filipinas e México, Honduras.

De acordo com um relatório da Anistia Internacional divulgado em fevereiro, que cita números da Comissão Pastoral da Terra (CPT), ao menos 62 ativistas foram assassinados no Brasil em 2017. A maioria atuava em questões envolvendo conflitos de terras e defesa do meio ambiente. Em 2016, a ONG havia apontado que conflitos e crimes resultaram na morte de 66 ativistas.

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Já a ONG Front Line Defenders contabilizou 68 assassinatos em 2017, um a cada cinco dias. O total representa 22% de todos os ativistas mortos registrados pela organização em todo o mundo no ano passado. Apenas a Colômbia, que há décadas atravessa um conflito envolvendo guerrilhas marxistas, gangues, traficantes de drogas e grupos paramilitares, registrou mais mortes.

Quando se trata apenas de causas ligadas ao meio ambiente, a organização Global Witness aponta o Brasil de longe como o país mais perigoso do mundo para defensores ligados ao tema. Em 2016, foram 49 ativistas mortos – número muito à frente de países como Colômbia, Índia e Guatemala. O Brasil vem liderando esse ranking há cinco anos.

Muitos dos países do ranking enfrentam problemas crônicos de violência, inclusive o Brasil, que registrou mais de 60 mil homicídios em 2016. Mas o assassinato de defensores de direitos humanos tem um componente especial.

“O defensor de direitos humanos não é alguém que atua para si mesmo. Ele representa uma comunidade. Por isso, o seu assassinato é um processo de tentativa de desmobilizar, de silenciamento. O crime tem o objetivo de desestimular que outros continuem atuando”, aponta Renata Neder, coordenadora de pesquisas da Anistia Internacional.

“Estado omisso”

Ainda segundo Neder, outra característica une quase todos esses crimes: “eles poderiam na maioria ser evitados”. “Os padrões se repetem no Brasil. Os crimes são precedidos de ameaças, mas o Estado é omisso, não investiga, não garante proteção ou vê o problema como menor. Então, a responsabilidade do Estado começa muito antes”, disse.

O caso de Marielle, por enquanto, segue um tanto atípico em relação a outros crimes, já que membros do círculo da vereadora relataram que ela não sofreu ameaças. Ainda não está claro se a motivação do crime tinha mesmo relação com sua atuação na questão dos direitos humanos, mas o tema era um componente central da sua atuação política.

Dois dias antes do assassinato de Marielle, o líder comunitário Paulo Sérgio Almeida Nascimento, de 47 anos, foi assassinado em sua casa no município de Barcarena, no Pará. Diretor da Associação dos Caboclos, Indígenas e Quilombolas da Amazônia (Cainquiama), Nascimento vinha recebendo ameaças. Segundo relatou seu advogado à imprensa local, o líder solicitou meses atrás proteção à Secretária de Segurança Pública do Pará, mas teve o pedido negado.

Em vez de cuidar do caso, a pasta informou que a responsabilidade em tais casos era da Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos do Pará (Sejudh). O pedido acabou então sendo repassado. Só chegou à Sejudh um dia após a morte do líder comunitário.

Programa de proteção limitado

Em 2004, o governo brasileiro criou um programa de proteção para ativistas. Batizado como Programa Nacional de Proteção às Defensores de Direitos Humanos (PPDDH), que atende hoje 342 pessoas que sofreram ameaças – 162 delas ligadas a causas de povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e defesa de causas ambientais.

Entre as medidas que podem ser tomadas pelo programa estão o monitoramento do local de atuação do ativista, retirada provisória e até mesmo a concessão de proteção policial. O plano original era oferecer assistência federal, por meio de verbas e diretrizes, aos estados, que seriam responsáveis pela execução.

O programa foi expandido a partir de 2005, após a morte da missionária Dorothy Stang, mas, segundo o Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos (CBDDH), a iniciativa sofre com a falta de verbas e o desinteresse do Estado brasileiro.

Em abril de 2016, um decreto assinado pela então presidente, Dilma Rousseff, excluiu a participação de membros da sociedade civil no conselho deliberativo e reduziu os critérios para conceder a proteção.

No governo Michel Temer, o tema vem recebendo pouquíssimo destaque, com o agravante que aliados do Planalto vem concentrando suas forças em denunciar causas de direitos humanos, como ocorreu durante a CPI da Funai e do Incra, que foi dominada por deputados ligados ao agronegócio e que terminou com o pedido de indiciamento de 67 pessoas, entre elas integrantes de ONGs.

Em 2016, apenas 3,7 milhões de reais foram direcionados para o PPDDH. Em 2017, a previsão é que fossem gastos 4,6 milhões de reais.

Até hoje o alcance do programa ainda é extremamente limitado. O Rio de Janeiro, palco da morte da vereadora Marielle, por exemplo, é um dos 22 estados que não têm uma versão local, ainda dependendo da atuação direta do governo federal. Hoje, apenas Minas Gerais, Maranhão, Pernambuco e Ceará contam com convênios. Outros, como o Espirito Santo, encerraram suas versões do programa nos últimos anos.

Mesmo nos estados que contam com o instrumento, a estrutura é limitada. Em Minas Gerais, que tem 853 municípios, só quatro pessoas trabalham na equipe do programa.

Segundo o CBDDH, existe “uma falta de interesse político em implementar o PPDDH, talvez por seu caráter de questionamento das próprias estruturas em que se baseia a sociedade brasileira”.

Neder, da Anistia Internacional, lembra que o programa segue sem um marco legal, tendo sido criado por decreto, o que o deixa extremamente vulnerável ao sabor do governo da ocasião. Um projeto de legislação especifica, pronto para ser votado, está parado no Congresso desde 2011. “Não há uma política de Estado nesse sentido”, disse.

Neder ainda aponta que a atual versão do programa também tem erros de execução. “A maior parte das ações consiste em retirar temporariamente a pessoa ameaçada, mas muitas vezes a atuação da pessoa como defensora está ligada ao local”, afirma. “Esse não deveria ser o papel do programa, mas está se tornando um mecanismo permanente. Dessa forma, há uma desmobilização. É preciso atacar as causas da ameaça e garantir a atuação do defensor.”

Deutsche Welle

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