O cabo de guerra da Saúde na transição de governo

A disputa entre o setor público e o privado será incontornável no reerguimento do SUS, após quatro anos de desmonte bolsonarista. Sanitaristas e pesquisadores especulam sobre os desafios na Saúde – mas também sobre sua potência em reerguer o país em novas bases

Geraldo Alckmin já desembarcou em Brasília para debater com os representantes do governo Bolsonaro a transição administrativa. Ao olhar o Orçamento 2023 enviado ao Congresso pelo presidente derrotado, constata-se o desmantelamento do Estado brasileiro e sua capacidade de ofertar políticas públicas concretas. É a conta da campanha eleitoral mais anabolizada por gastos públicos na história, somado aos quatro anos de esvaziamento e sabotagem do Estado. Os desafios são muitos e no campo da saúde não é diferente.

“O processo de transição deve dialogar com a sociedade para formar um sentimento de que se está construindo em conjunto um projeto de saúde para o país. É necessário que a sociedade tenha um sentimento de pertencimento ao SUS – de que ela pertence ao SUS e o SUS pertence a ela”, explicou Túlio Baptista Franco, da articulação Frente Pela Vida, ao Outra Saúde.

Nesse sentido, a escolha do futuro ministro será importante indicador. Mas, independentemente do nome, não há espaço para hesitações. O fortalecimento do SUS é condição sine qua non para contornar a crise geral e começar a oferecer respostas perceptíveis à população, que, como já destacado em diversas matérias, demandará ainda mais do sistema público em 2023.

“Nós do movimento sanitário defendemos firmemente que seja alguém com conhecimento técnico e sem conflitos de interesses com as mega indústrias farmacêuticas e/ou seguros privados. O governo será um governo de coalizão, mas há margem para o Lula indicar um bom quadro, considerando que destacou muito o SUS na sua campanha”, afirma Rosana Onocko Campos, presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).

Sua fala acende o sinal amarelo para as novas formas de disputa do orçamento público em Saúde. Se antes o desmonte puro e simples do SUS era a bandeira de certo fundamentalismo de mercado, hoje sua utilização em favor do setor privado se torna a nova estratégia. A batalha em torno do rol taxativo entre usuários e planos privados em setembro foi ilustrativa da questão.

Há meios concretos para reduzir a privatização interna do sistema, aponta José Sestelo Junior, especialista em saúde coletiva e autor de Planos de saúde e dominância financeira.  “Em primeiro lugar deve-se atuar na esfera da macrorregulação e estabelecer limites claros à expansão da intermediação comercial de serviços de saúde, de modo a fazer prevalecer o interesse público”, diz ele. Significa “zelar para que os custos assistenciais sejam racionalizados, diminuindo a ação de intermediários que auferem lucro e atuam para favorecer a concentração da oferta aos segmentos com maior capacidade de pagamento”.

Para além da euforia com a vitória eleitoral de Lula, é crucial compreender a urgência dos desafios. Para o próprio Sestelo, isso começa pela retomada do Plano Nacional de Imunização, uma vez que o país enfrenta sua pior taxa de vacinação em 30 anos. Colocar os pobres de volta no orçamento, como dito por Lula, exigirá conhecimento real dos padecimentos da população. Não basta alocar o dinheiro. “Um risco a evitar é o aumento dos gastos totais em saúde como porcentagem do PIB sem uma melhora correspondente nos principais indicadores de saúde/doença. Preocupa especialmente o aumento nos gastos privados e o grande espaço reservado para atividades de intermediação assistencial, o que aumenta os custos de transação e drena recursos para a esfera financeira. Nesse sentido, não vejo disposição do novo governo para enfrentar esta questão”, completou Sestelo.

Objetivamente, aumentar o investimento público em saúde é caminho para que se comece a inverter a relação entre gastos públicos e privados no setor, o que chega a ser uma aberração se considerarmos que quase 80% da população depende exclusivamente do SUS. “Hoje, 60% dos gastos em saúde do país são privados e 40% públicos. Precisamos inverter esses números. Para isso nós propomos que haja um investimento na saúde de 6% do PIB, sendo que o federal, hoje 1,6% do PIB, passe a 3% nesses quatro anos de governo”, afirmou Túlio Franco.

Tal posição é reforçada por Carlos Gadelha, especialista em economia da saúde, que enxerga o setor como um vasto campo de desenvolvimento econômico, muito além de ser “apenas” a garantia de um direito cidadão básico. “Deve-se garantir o financiamento público à saúde, ao longo dos quatro anos, para o patamar de 7% do PIB e a produção nacional do Complexo Econômico Industrial da Saúde para garantir a redução da dependência e um novo vetor de desenvolvimento para o país, que alia a dimensão econômica com a social e o acesso universal”, diz ele, sinalizando o uso do SUS como um ativador de emprego e renda, com uma capilaridade que nenhuma outra política pública pode atingir.

Isso porque o SUS é um sistema que emprega 2,9 milhões de trabalhadores e atinge todas as cidades, de todos os graus de desenvolvimento. Alia cuidados primários em saúde com emprego e renda no chão social de uma forma imediata. “Devemos dar prioridade para serviços de base territorial, sendo atenção primária um dos serviços importantes, mas vários outros serviços, como cuidados paliativos, atenção domiciliar, cuidados intermediários, para tornar a atenção básica bastante robusta, além do investimento estatal no complexo médico industrial, inclusive como uma das alavancas de desenvolvimento do país”, reforçou Túlio Franco.

Como resumido pelo ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão, chegou a hora de um governo de salvação nacional após uma administração baseada em morte e destruição. E para justificar um mantra de tal envergadura parece essencial absorver a elaboração de Lucia Souto e entender a saúde pública como arma de neutralização da ameaça civilizatória representada pelo bolsonarismo. Saúde pública para radicalizar a democracia.

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