O combate à violência de gênero se faz com educação, leis e respeito à diversidade humana
Por Marcos Aurélio Ruy
A violência de gênero vem crescendo no país nos últimos anos. Todas as pesquisas comprovam isso, principalmente a partir de 2016. O Brasil já é o quinto país que mais agride mulheres e o que mais mata LGBTs.
Essa violência “é fruto da cultura patriarcal e machista predominante no país”, explica Celina Arêas, professora e secretária da Mulher Trabalhadora da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB).
Ela lembra que quase cinco mil mulheres são assassinadas todos os anos no país e mais de 50 mil estupradas anualmente, nesse caso mais da metade das vítimas são meninas de até 13 anos. Esses dados alarmantes levaram a deputada estadual em São Paulo, Janaína Paschoal a cometer grave equívoco pedagógico e social.
A deputada do PSL tem o Projeto de Lei (PL) 643/2019, na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), para determinar o ensino de lutas marciais para as meninas nas escolas como forma de autodefesa à crescente violência de gênero no país. O deputado federal Alexandre Frota (PSDB-SP) apresenta o mesmo projeto na Câmara dos Deputados.
Os dois usam a crescente violência de gênero como justificativa para os projetos. “Com o fim de propiciar às mulheres condições para se defenderem de toda forma de violência, uma das aulas semanais de educação física será destinada ao ensino de alguma modalidade de luta corporal às alunas, tanto no ensino fundamental, como no ensino médio”, argumenta Janaína em seu PL.
“A deputada deve estar assistindo filmes hollywoodianos demais”, destaca Celina, mas “a vida não é filme”. Para a sindicalista e professora de Minas Gerais a realidade é bem diferente. Primeiro porque “o papel da escola é educar para a paz, para o respeito às diferenças e à vida”. E “todo mundo sabe que violência se combate com inteligência, não com mais violência”.
Além de criar mecanismos de defesa das mulheres, “a educação dos homens é fundamental para aprenderem que as mulheres não são objetos, suas posses, mas sim seres humanos com direitos tanto quanto eles”, afirma Isis Tavares, presidenta da CTB-AM e pedagoga.
O papel da escola, define Marilene Betros, secretária de Políticas Educacionais da CTB, é o de “educar para a cidadania, para a socialização do conhecimento, para o respeito a todas as pessoas e para a valorização da vida social”.
Para a sindicalista e professora baiana, jogar para as cidadãs e cidadãos “a solução da insegurança na qual vivemos significa fugir do problema. A segurança pública é uma responsabilidade do Estado” e “tentar criar mecanismos como armar a população ou ensinar lutas de autodefesa para as meninas são tentativas de tirar essa responsabilidade do Estado”.
Além disso, diz Francisca Pereira da Rocha Seixas, secretária de Assuntos Educacionais e Culturais da Apeoesp – Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo e de Saúde da Confederação Nacional de Trabalhadores em Educação (CNTE), “é importante lutarmos para ter uma política de segurança pública que dê efetiva segurança a todas as pessoas, principalmente às mais vulneráveis”.
Com duas aulas semanais de educação física, “como poderíamos ter aulas de defesa pessoal?”, questiona. Além do mais, “a escola não pode reforçar nenhum tipo de discriminação e privilégios” porque “à escola cabe desenvolver a vontade de estudar nos alunos e com a apropriação do conhecimento combater estereótipos e preconceitos”.
Para ela, “esse projeto parece feito para favorecer academias que ensinam artes marciais, o que significaria tirar dinheiro da escola pública para setores privados”.
De acordo com Vânia Marques Pinto, secretária de Políticas Sociais, Esporte e Lazer da CTB, “a prática esportiva nas escolas é essencial para as crianças e jovens aprenderem a respeitar as diferenças e as regras de convívio social, além de colaborar com o desenvolvimento motor, o conhecimento corporal e o convívio com o coletivo para aprenderem a lidar com resoluções de conflitos”.
Dessa forma, “as aulas de educação física devem ser tratadas como um instrumento pedagógico capaz de somar valor às demais disciplinas, aumentando a autoestima e a formação para a cidadania”, afirma.
Gicélia Bitencourt, secretária da Mulher Trabalhadora da CTB-SP convida a deputada do PSL a dialogar com “o movimento feminista para a efetivação das políticas públicas abandonadas pelo presidente Jair Bolsonaro e pelo governador João Doria pela defesa da vida e dos direitos das mulheres”. Segundo Gicélia, é importante “trabalhar a autoestima das mulheres e juntas fortalecermos o enfrentamento a todo tipo de violência dentro ou fora de casa”.
Porque “esse tipo de paliativo não resolve as causas da violência que são profundas em nossa sociedade machista, na qual a impunidade prevalece e as mulheres são objetificadas pelos meios de comunicação, nas novelas, nas publicidades e até em humorísticos”, denuncia Berenice Darc, secretária de Relações de Gênero da CNTE.
“A participação de todos os setores sociais é muito importante para mostrarmos à sociedade a necessidade de acabarmos com a cultura do estupro e ensinar os meninos a respeitarem as meninas” e “esse trabalho deve começar dentro de casa, principalmente porque a maior parte das violências ocorre nos lares e é praticada por pessoas conhecidas das vítimas”, acentua.
Como mostra o 13º Anuário de Segurança Pública, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) foram notificados 1.206 feminicídios no Brasil, em 2018, 88,8% dos crimes praticados por companheiros ou ex-companheiros e a maioria por arma de fogo.
Além disso, foram notificados 66.041 estupros, no mesmo ano, sendo 53,8% das vítimas meninas de até 13 anos, a maioria delas violentadas dentro de casa por pessoas conhecidas o que mostra a ineficácia de qualquer luta marcial para essas meninas.
Inclusive durante a pandemia, o número de feminicídios cresceu 22,2% entre março e abril deste ano, no período de isolamento social por causa do coronavírus. Sendo que boa parte dos crimes ocorreu por armas de fogo, o que dificulta qualquer prática de autodefesa por quem quer que seja.
“Esse projeto tem em seu bojo a mesma mentalidade de que armar a população resolve o problema da insegurança na qual vivemos”, alerta Kátia Branco, secretária da Mulher Trabalhadora da CTB-RJ. “Não soluciona e não combate as causas dessa prática cada vez mais comum no país”.
Mais importante do que ensinar autodefesa para as meninas, é levar o debate sobre as questões de gênero para as escolas. “É necessário acabar com a violência de gênero com um amplo projeto de educação que envolva toda a sociedade para ensinar as famílias o respeito à vida e à dignidade humana”, alerta Kátia.
“As práticas esportivas devem contribuir para o processo de integração social, onde cada criança ou jovem aprenda não ultrapassar os seus limites e respeite as diferenças” destaca Vânia. Já Marilene assinala que “a escola tem o papel fundamental de organizar e sistematizar o debate para acabar com a violência de gênero, cobrando do Estado as suas responsabilidades”.
Enquanto Celina destaca a necessidade de criação de uma Política Nacional de Segurança Pública que “valorize a cidadania, o respeito às pessoas e a vida, sem nenhum tipo de distinção”. Porque “a polícia mata cada vez mais, a violência aumenta diariamente e o Estado não pode fugir da responsabilidade de dar segurança e paz às cidadãs e aos cidadãos”.