O desmonte da ciência brasileira

Anos de cortes no Ministério da Ciência e Tecnologia atingem em cheio pesquisas em todas as áreas e já afetam parcerias com agências europeias. Governo Bolsonaro acelera processo com redução drástica no orçamento.

Cientistas desenvolvem pesquisa sobre o vírus zika em laboratório da Fiocruz
Cientistas desenvolvem pesquisa sobre o zika em laboratório da Fiocruz: saúde é uma das áreas ameaçadas

A ciência brasileira se encontra num momento crítico. O último corte de recursos anunciado pelo governo de Jair Bolsonaro agravou drasticamente uma situação que, há anos, já era tida como crítica. A medida mais recente atingiu em cheio o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), subordinado ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC).

O contingenciamento de 42,27% das despesas do MCTIC coloca em risco o financiamento de cerca de 11 mil projetos e 80 mil bolsas financiadas pela principal agência de fomento à pesquisa do país.

“Nunca vi cortes da magnitude dos que foram decretados recentemente. São cortes extremamente pesados e, se não forem revertidos, destruirão a ciência brasileira. Esses cortes representam um ataque sério ao desenvolvimento e à própria soberania nacional”, afirma Luiz Davidovich, presidente da Academia Brasileira de Ciências.

A avaliação de especialistas do setor é de que pesquisas em todas as áreas, inclusive de humanas, estão em risco. As primeiras afetadas são as pesquisas dependentes de laboratórios, que já estão ficando sem manutenção, sem materiais e com uma infraestrutura defasada.

Os cortes também prejudicam cooperações internacionais e são observados com atenção na Europa. Segundo a diretora do escritório regional do Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD) no Brasil, Martina Schulze, no ano passado, em programas conjuntos da agência alemã com instituições brasileiras, não foi possível conceder bolsas de doutorado na Alemanha pelo CNPq, pois não havia garantias de que elas seriam pagas.

“A incerteza quanto às possibilidades de financiamento para as instituições de ensino superior brasileiras e a pesquisa no país provocou um comedimento das universidades alemãs, que ainda persiste. O DAAD pode notar isso devido ao menor fluxo de recursos para o trabalho conjunto no ensino superior e na pesquisa com o Brasil”, diz Schulze.

De acordo com a diretora da agência alemã, em 2016, o DAAD destinou cerca de 11 milhões de euros para bolsas e projetos com parceiros brasileiros. Em 2018, esse valor foi de apenas 8,7 milhões de euros.

Esse cenário, descrito por pessoas da área como trágico, não surgiu de uma hora para outra, mas é fruto de uma série de cortes que está em curso há algum tempo.

Processo contínuo de cortes

Há cerca de 20 anos, as ciências no Brasil viviam tempos áureos. A partir dos anos 2000, mais recursos já começavam a ser investidos no setor, conta Ildeu de Castro Moreira, presidente da presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Mas foi durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, a partir de 2006, que o MCTIC viveu um período de real prosperidade, com o aumento progressivo nas verbas destinadas à pasta. Em 2010, os investimentos no ministério atingiram o ápice, chegando a aproximadamente 8,6 bilhões de reais (em valores atualizados, quase 10 bilhões de reais).

Marca semelhante foi alcançada em 2103. Na época, a cultura de investimentos em ciência parecia estar se consolidando. Porém, a partir de 2014, teve início a crise que se estende até os dias de hoje. O orçamento da pasta passou a sofrer cortes constantes durante os anos seguintes do último governo Dilma Rousseff.

Sob Michel Temer, o Ministério da Ciência e Tecnologia incorporou o das Comunicações e sofreu um contingenciamento de 44% das despensas previstas para 2017. Naquele ano, foram investidos apenas 3,77 bilhões de reais, o menor orçamento dos últimos 12 anos.

O impacto foi tanto que levou entidades de pesquisa a se articularem no movimento “Conhecimento sem cortes”, que denunciou a morte lenta da ciência no país devido à redução constante dos investimentos.

No início de 2018, a situação parecia um pouco melhor com o anúncio de um investimento de 4,7 bilhões na pasta, porém, houve novamente cortes, o que chegou a atrasar o pagamentos de bolsas em dezembro do ano passado. Esse atraso levou o CNPq a entrar em 2019 com um rombo de 300 milhões de reais no orçamento.

Para este ano, o Congresso havia aprovado um orçamento de 5,1 bilhões de reais para o MCTIC, porém, há cerca de uma semana, o governo decretou o contingenciamento de 42% das despesas da pasta, reduzindo para cerca de 2,9 bilhões de reais os recursos disponíveis para o ministério.

O presidente do CNPq, João Luiz Filgueiras, afirmou ao portal G1 que a agência deve ter verbas para pagar bolsistas apenas até setembro deste ano. A previsão, porém, ainda não incluía o novo corte. Especialistas estimam que esse valor cubra os pagamentos somente até julho.

Desde 2016, os repasses para o pagamento de bolsas concedidas pelo CNPq vem caindo, passando de pouco mais de 1,1 bilhão para 784,7 mil reais neste ano. Metade dos 80 mil bolsistas da agência fazem iniciação científica e recebem apenas entre 100 e 400 reais por mês.

Além de correrem o risco de ficarem sem receber, os mestrandos e doutorandos possuem ainda bolsas com valores muito baixos, defasados pela inflação. Os valores de 1,5 mil reais mensais para mestrado e 2,2 mil reais mensais para doutorado não são reajustados desde 2013.

Pesquisas de saúde em risco

Entidades ligadas à ciência também afirmam que os cortes anunciados pelo governo Bolsonaro atingem o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, que financia a infraestrutura de instituições científicas. O fundo teve 80% de seus recursos contingenciados.

“Está ocorrendo um desmonte do sistema nacional de ciência e tecnologia, colocando em risco grupos de pesquisa constituídos nos últimos anos. O atual corte pode afetar grandes projetos como o Sirius e o Laboratório Nacional de Luz Síncotron, que o Brasil construiu a duras penas, ou o Laboratório de Ciência e Computação (LCC), que podem não ter condições de operar sem manutenção”, afirma Moreira, da SBPC.

O físico diz que, no futuro, o país pode ter dificuldades também para desenvolver pesquisas essenciais na área de saúde. Segundo ele, o Brasil só foi pioneiro nos estudos sobre o zika porque na época havia condições para a realização de pesquisas. Cientistas brasileiros foram os primeiros a descobrir a conexão entre o vírus e os casos de microcefalia.

Com a falta de manutenção de laboratórios, que se deterioram com o tempo, a redução dos investimentos também representa uma perda dos recursos já aplicados no setor. Além disso, impulsiona a fuga de cérebros, com pesquisadores deixando o Brasil para realizar seus trabalhos em países que ofereçam melhores condições.

“Atualmente, o protagonismo das nações está baseado muito mais no poder do conhecimento do que no das armas. A pergunta é o que vai acontecer no Brasil num mundo que valoriza cada vez mais o conhecimento. A resposta é óbvia: o país vai se atrasar cada vez mais em relação a outros países”, afirma Davidovich.

O Brasil investe menos de 1% do Produto Interno Bruto (PIB) na área de ciência, tecnologia e inovação. Em alguns países europeus, o percentual gira em torno de 3%, e nos Estados Unidos, é de cerca de 2%.

Deutsche Welle

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