O desolador cenário revelado pela Pnad contínua
Por José Geraldo de Santana Oliveira*
O livro “Invasores de corpos” — The Body Snatchers —, de Jack Finney, lançado em 1955 e adaptado para o cinema em quatro oportunidades (sendo a 1978, dirigida por Phillip Kaufman, a adaptação de maior sucesso, com Donald Sutherland, Leonard Nimoy e Brooke Adams), retrata a silenciosa e invisível invasão alienígena à Terra, começando por um cidade dos EUA.
Centenas de pessoas são mortas durante o sono e substituídas por clones, que de humanos só têm a figura, posto que são desprovidos de emoções e de apreço pela vida e pela humanidade.
Passados 70 anos do lançamento do referenciado livro e 47 do segundo filme baseado nele, como que imitando a ficção, a Pnad contínua do trimestre de setembro, outubro e novembro de 2024, divulgada aos 27 de dezembro, confirma o que já é patente há pelo menos uma década: a visível e nada silenciosa invasão nos direitos trabalhistas consagrados no Art. 7º da Constituição Federal (CF) e no que restou da CLT.
Tal como no livro e no filme sob destaque, os invasores, representados pela informalidade, que abrange trabalhadores/as sem CTPS assinada e por conta própria, são impiedosos e não deixam remanescer direitos, convertendo-os em cinzas.
Segundo os dados constantes da citada Pnad, catalogados, processados e divulgados pelo IBGE, não pairando dúvidas quanto à sua veracidade, o mundo do trabalho brasileiro apresenta a seguinte configuração:
- Força de trabalho: 110,7 milhões
- População ocupada: 103,9 milhões
- População fora da força de trabalho: 66 milhões
- Taxa de desocupação: 6,1%
- População desocupada: 6,8 milhões de pessoas
- População desalentada: 3 milhões
- Empregados com carteira assinada: 39,1 milhões
- Empregados sem carteira assinada: 14,4 milhões
- Trabalhadores por conta própria: 25,9 milhões
- Trabalhadores domésticos: 6 milhões
- Trabalhadores informais: 40,3 milhões
- Taxa de informalidade: 38,7%
- Total de empregados no serviço público: 12,8 milhões, neles incluídos servidores efetivos, temporários e regidos pela CLT (empresas públicas), dos quais 7,5 milhões acham-se lotados nos municípios, sendo que, em centenas deles, o número de temporários chega a ser superior a quatro vezes o de efetivos.
Esses números da Pnad mostram que a realidade social é absolutamente antagônica, entre duas forças irreconciliáveis: a que assegura direitos trabalhistas e a que os nega de forma absoluta, constituindo-se, por assim dizer, em seu buraco negro, para usar um conceito da física, que o arrasta para o abismo, impiedosamente.
Do total da população ocupada, compõem o mercado formal os contratados pela iniciativa privada, com carteira assinada; os domésticos, igualmente com carteira assinada; os servidores públicos — efetivos, celetistas e temporários —; e os autônomos registrados formalmente com CNPJ, nas diversas modalidades — PJs, MEIs etc.
No mercado formal, os contratados pela iniciativa privada e os domésticos com carteira assinada — estes com aproximadamente 1,5 milhão e aqueles com 39,1 milhões —, bem como os servidores públicos, efetivos e celetistas, possuem direitos trabalhistas e previdenciários (proteção social); os temporários, a rigor, só possuem direito ao FGTS e à previdência social, dependendo os demais direitos trabalhistas de expressa previsão legal (Tema 551 do STF); os autônomos com CNPJ só usufruem do direito previdenciário e de nenhum outro.
Faz-se necessário ressaltar que os MEIs e os demais empresários individuais não são propriamente pessoas jurídicas. São assim considerados apenas para efeito tributário, continuando, para os demais fins, como pessoas físicas. No entanto, têm negados vínculos empregatícios e direitos trabalhistas. Importa dizer: não são pessoas jurídicas, em sentido estrito, nem físicas, para efeito de usufruto de direitos. Em uma palavra: estão no limbo, muito mais próximo das profundezas do inferno que do paraíso.
Os assalariados sem carteira no serviço público e no setor privado, incluindo os domésticos, e ainda os autônomos sem registro formal não gozam de nenhum direito trabalhista ou previdenciário, estando, portanto, à mercê da sorte ou ao deus dará.
Segundo o Anuário Estatístico da Previdência Social, divulgado aos 11 de dezembro de 2024, no ano de 2023, 77,8 milhões de pessoas contribuíram para ela. Ou seja, da população ocupada de 103,9 milhões, 26,5 milhões estão fora de sua cobertura, o que representa colossal tragédia social.
O Portal Redação Focus Brasil publicou desafiadora matéria, aos 27 de agosto de 2024, a partir de dados pesquisados e divulgados pelo Instituto Brasileiro de Economia da FGV (FGV-Ibre), com o instigante título, que, por si só, já diz o quanto basta: “Sem saudades: após sete anos da Reforma Trabalhista, 70% dos trabalhadores informais querem carteira assinada”.
Vale a pena trazer ao debate excertos da realçada matéria:
“A ‘flexibilização do contrato de trabalho’, sancionada e apoiada pelo ex-presidente Michel Temer em 2017, não entregou o que prometia — ou melhor, só entregou o que prometia: arrocho para o povo e benefícios para o empresariado. Após sete anos da Reforma Trabalhista, 70% dos trabalhadores informais querem a segurança da carteira assinada.
Estudo divulgado pelo Instituto Brasileiro de Economia da FGV (FGV-Ibre) revelou que entre os trabalhadores informais que ganham até um salário-mínimo (R$ 1.412), 75,6% preferem ter um emprego formal. Para aqueles que recebem entre um e três salários-mínimos, esse índice chega a 70,8%, enquanto diminui para 54,6% entre os informais com rendimentos superiores a três salários-mínimos.
As mudanças trouxeram insegurança financeira para os trabalhadores informais. Apenas 45% conseguem prever sua renda para os próximos seis meses, enquanto essa capacidade de previsão sobe para 67,5% entre os empregados com carteira assinada. Com cerca de 44% dos trabalhadores ganhando até um salário-mínimo, a pesquisa apontou que os salários dos autônomos também não ficaram melhores.
A pesquisa foi realizada com 5.321 pessoas com margem de erro de 2%”.
Igualmente, há de se trazer ao debate a matéria abaixo, publicada pela Rede Lado, aos 29 de outubro último:
“A informalidade no trabalho doméstico é uma questão persistente no Brasil, onde há mais de 6 milhões de empregados nesta função, a maior parte deles mulheres (91,1%) e negras (67%). Ainda segundo dados de 2023 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apenas 23,3% dos trabalhadores domésticos têm carteira assinada, recebendo em média um salário-mínimo (1.412 reais). Essa situação reflete a marginalização da categoria, que frequentemente não desfruta de direitos trabalhistas básicos”.
Insta acrescentar que, segundo a Nota Técnica 281, do Dieese, de janeiro de 2024, 4,174 milhões de domésticos recebem o salário-mínimo.
No tocante ao contrato intermitente, que o STF acaba de declarar constitucional (ADI 5826) e que nada mais é do que contrato zero hora e zero salário, nas sábias palavras no ministro Edson Fachin relator vencido dessa ADI, merecem destaque os dados do Caderno de Negociação N. 83, do Dieese, e do Boletim de Emprego em Pauta N. 28, publicados em novembro de 2024. Segundo esses dados, dos 417 mil contratos intermitentes, ao final de 2023, 41% não geraram trabalho ou renda; e, para 76% dos que tiveram remuneração mensal, essa foi inferior ao salário-mínimo ou não houve remuneração. A remuneração média dos intermitentes foi de apenas R$ 762, ou 58% do salário-mínimo de 2023 (R$ 1.300).
“A remuneração mensal média dos vínculos intermitentes que estavam ativos no final do ano foi de R$ 762, valor 42% inferior ao salário-mínimo (R$ 1.320, em 2023). Entre as mulheres e os jovens de até 24 anos, a remuneração média foi equivalente à metade do salário-mínino (cerca de R$ 661). Apenas um quarto (24%) dos vínculos intermitentes ativos em dezembro de 2023 registrou remuneração média de pelo menos um salário-mínimo. E somente 6% receberam, em média, dois salários-mínimos ou mais.
Se incluídos na média os meses em que esses contratos intermitentes estavam vigentes, mas não registraram atividade, a remuneração média mensal recebida pelos trabalhadores cai para R$ 542. Entre as mulheres, é reduzida para R$ 483. Em média, apenas 37% dos meses trabalhados resultaram em remunerações de pelo menos um salário-mínimo. Entre as mulheres, essa proporção foi de 28%. Em outras palavras, em média, de cada quatro meses de trabalho executado por mulheres com contrato de trabalho intermitente, em apenas um, o pagamento no fim do mês atingiu o mínimo de R$ 1.320”.
Tomando-se por base o Art. 195, § 14, da CF — com a redação pela EC 103/2019 —, que não computa, para nenhum efeito, as contribuições previdenciárias calculadas sobre valor inferior ao salário-mínimo, 76% dos/as trabalhadores/as submetidos a contrato intermitente não tiveram computada nenhuma contribuição no ano de 2023. A isso, a maioria dos ministros do STF chama de proteção.
Segundo dados do Sebrae, divulgados pela Fenacon em outubro de 2024, há 11,5 milhões de MEIs com registros ativos, dos quais mais de 90% (10,3 milhões) estão em atividades. E mais: somente no ano de 2024, foram criadas 3,9 milhões de MEIs, microempresas (ME) e empresas de pequeno porte (EPP), sendo que 75,57% (2,9 milhões) foram MEIs.
Qualquer análise superficial ou açodada de tão expressivos números pode induzir o analista à conclusão de que pejota (MEIs e ME) é ótimo negócio para os/as trabalhadores/as, representando o futuro do trabalho.
Quem assim concluir, por certo, não relevou os prós e contras — muito mais contras, se é que há algum pró — que decorrem dessa tão decantada nova modalidade de relação de trabalho.
Corrobora essa assertiva a recente declaração do ministro Flávio Dino, do STF, no julgamento da Reclamação 67348, aos 22 de outubro de 2024:
“Acho que nós tínhamos que revisitar o tema, não para rever a jurisprudência, mas para delimitar até onde ela vai, porque hoje nós vamos virar uma nação de pejotizados.
O pejotizado vai envelhecer e ele não terá aposentadoria. Esse pejotizado vai sofrer um acidente de trabalho e ele não terá benefício previdenciário. Se for uma mulher, ela vai engravidar e não terá licença gestante”, (matéria publicada no portal Migalhas).
No mesmo julgamento e conforme a referida matéria, o ministro Alexandre de Moraes, em sua declaração, em tom de admoestação, para além de criticar os/as trabalhadores/as que “aceitam” a pejotização, sintetizou o que essa mania do momento significa:
“Houve uma terceirização do trabalho. Quando há pejotização, terceirização, naquele momento todos concordam em assinar [o contrato], até porque se paga muito menos imposto do que pessoa física.
Se, talvez, a jurisprudência começasse a exigir isso [recolhimento de tributos], nós não teríamos tantas reclamações.
Aquele que aceitou a terceirização e assinou contrato, quando é rescindido o contrato e entra com a reclamação, ele deveria também recolher todos os tributos como pessoa física. Aí talvez não tivéssemos mais o primeiro problema, de aceitar a terceirização, ou o segundo, de entrar com a reclamação.
É algo que não bate no final. Porque na Justiça do Trabalho, acaba ganhando [a ação]. Só que ele recolheu todos os tributos lá atrás como pessoa jurídica. E depois ganha todas as verbas como pessoa física. Ou é pessoa jurídica, ou pessoa física. Ou terceirizou ou não terceirizou”.
Esse estado de calamidade social bem pode ser enquadrado no estado de coisas inconstitucional, definido pelo STF na ADPF 347, quando há flagrantes e múltiplas violações a direitos fundamentais. Isso porque o quadro revelado pela Pnad sob comentários esvazia, por inteiro, os direitos assegurados pelo Art. 7º da CF, que, como se colhe de sua literalidade, não os restringe aos empregados em sentido estrito:
“Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social”.
Ao reverso, assegura-os a todos/as trabalhadores/as, inclusive aos avulsos, regulamentados pela Lei 12.023/2009, que são os que contam com vínculo empregatício, como é o caso dos contratados como autônomos e pejotas, sejam MEIs, microempresa, empresa de pequeno porte (EPP).
Esse cenário desolador, exponencialmente agravado pelas leis da terceirização — Lei 13.429/2017 — e da de/reforma trabalhista — Lei 13.467/2017, já em 2017, quando de sua aprovação, era crônica de tragédia anunciada, parafraseando Gabriel García Márquez, como atestam o manifesto de 17 ministros do TST aos presidentes do Senado Federal, em maio de 2017, e a Nota Técnica do Dieese 179, também de maio de 2017.
Eis alguns excertos dos dois citados documentos:
I manifesto dos ministros do TST:
“Os MINISTROS do TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO, assinados a seguir, vêm, respeitosamente, à presença de Vossa Excelência e de todos os Excelentíssimos SENADORES, trazer este documento de considerações jurídicas acerca do Projeto de Lei da Câmara n. 8/2017, que trata da ‘Reforma Trabalhista’, e que ora se encontra em análise no SENADO FEDERAL.
A grande preocupação dos MINISTROS do TST que subscrevem este documento, os quais contam, todos, com várias décadas de experiência diária no segmento jurídico trabalhista -, e com o fato de o PLC n. 38/2017 eliminar ou restringir, de imediato ou a médio prazo, várias dezenas de direitos individuais e sociais trabalhistas que estão assegurados no País às pessoas humanas que vivem do trabalho empregatício e similares (relações de emprego e avulsas, ilustrativamente).
A título de contribuição à análise do PLC/38 pelo SENADO FEDERAL, este documento aponta, especificamente, as várias dezenas de regras prejudiciais que foram instituídas pelo referido Projeto de Lei.
I – Em primeiro lugar — e com forte destaque —, cabe se indicar a ampla autorização que o PLC n. 28 traz para a terceirização de serviços em benefício das empresas tomadoras de serviços – regra que, por si somente, produz uma significativa redução do patamar civilizatório mínimo fixado pela ordem jurídica trabalhista vigorante no Brasil (novo art. 4-A, caput, da Lei n. 6.019/74, segundo alteração proposta pelo art. 2º do PLC n. 38/2017).
A par dessa larga autorização, a nova regra legal também elimina a isonomia obrigatória entre o trabalhador terceirizado e o empregado da empresa tomadora de serviços, tornando tal isonomia mera faculdade empresarial (art. 4º-C, caput e § 1º, da Lei n. 6.019/74, segundo alteração promovida pelo art. 2º do PLC n. 38/2017).
II – Em segundo lugar, há que se pôr em destaque a eliminação de direitos que recai sobre diversas parcelas, as quais alcançam cerca de 25 (vinte e cinco) direitos trabalhistas — alguns deles, na verdade, de caráter múltiplo.
[…]
Trata-se de 23 (vinte e três) regras de desproteção ou periclitação de diferentes dimensões e facetas, sem contar a desproteção e periclitação provocadas pela regra da terceirização ampla de serviços na economia e na sociedade.
[…]
IV – Em quarto lugar, cabe se aduzir que o PLC n. 38, de 2017, não projeta os seus efeitos restritivos somente sobre o Direito Individual do Trabalho e o Direito Coletivo do Trabalho. Como indicado, o PLC, nestes dois campos jurídicos, ostenta nada menos do que 49 (quarenta e nove) regras jurídicas desfavoráveis às pessoas humanas trabalhadoras brasileiras, em comparação com o padrão jurídico existente nas últimas décadas”.
II Nota Técnica 179:
“[…]
Mesmo assim, a Câmara dos Deputados resgatou, em novembro de 2016, e aprovou, em março de 2017, o PL 4.302, que havia sido aprovado, em versão substitutiva, pelo Senado em 2002, mas já tinha tido o arquivamento solicitado pelo ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva em 2003. Ao ser sancionado em 31 de março, o PL 4.302/1998 se transformou na Lei 13.429/2017, que altera a Lei 6.019/1974, cujo objeto original era o trabalho temporário nas empresas urbanas.
Ainda permite a prestação de serviço à contratante por empresa composta por uma só pessoa, ou seja, libera a chamada ‘pejotização’ de trabalhador(a). A lei também autoriza a formação de cadeia de subcontratação, permitindo, inclusive, que pessoa física terceirize os serviços que presta.
[…]
O que esperar do futuro? Pode se entender o sistema de relações de trabalho de um país como o conjunto de instituições e de regras que normatizam as formas de contratação, uso, remuneração e demissão da força de trabalho; regulam as relações entre capital e trabalho (tais como a representação de interesses, de definição de atribuições, de apoio à atuação e de resolução de conflitos); e instituem a rede de proteção social associada ao trabalho (como a da previdência e do seguro-desemprego).
Todo o sistema das relações de trabalho no Brasil passa, nesse momento, por profundas transformações. Pode-se até mesmo dizer que os direitos individuais e coletivos do trabalho estão sob ataque feroz.
[…]
Depois da Lei, as convenções coletivas e, em seguida, os acordos coletivos impõem pisos adicionais aos direitos trabalhistas; e, por fim, os acordos individuais de trabalho podem prever normas, desde que acima dos patamares anteriores. O PLC 38 tenta inverter essa hierarquia, pelo menos no que diz respeito a alguns temas cruciais das relações de trabalho. O projeto dá prioridade ao acordo individual em alguns temas e no caso de trabalhadores de escolaridade e renda superiores.
A ampliação de modalidades precárias de ocupação, a instituição da prevalência do negociado sobre o legislado, a terceirização sem limites, inclusive com a transformação de trabalhadores individuais em ‘pessoa jurídica’ (pejotização), significam o desmonte da CLT. Essa corrosão dos direitos trabalhistas é aprofundada pelo desestímulo ao recurso individual à Justiça do Trabalho decorrente da limitação do acesso gratuito a ela e do risco de multas e de pagamentos de custas processuais.
Quem acompanha de perto as negociações coletivas sabe que é muito difícil estabelecer avanços em convenções e acordos coletivos, o que significa que as perdas sofridas em momentos de crise econômica dificilmente serão revertidas ou apenas com grande e prolongado esforço.
Na verdade, as mudanças propostas apontam para um retrocesso gigantesco nas condições sociais, políticas e econômicas. As propostas sinalizam para aumento das desigualdades sociais e a fragilização da democracia, com a perda de voz da classe trabalhadora. Também na dimensão mais estritamente econômica, as mudanças propostas trarão impactos negativos.
[…]
É preciso modernizar as relações de trabalho no Brasil, com novas modalidades de contratação que incluam novas formas de trabalho atuais […]. Entretanto, uma real modernização das relações de trabalho deveria ter como pressuposto a eliminação das formas precárias e arcaicas de trabalho ainda persistentes no Brasil, em pleno século XXI, e não a ampliação dessas práticas.
Com o argumento de que ‘os direitos estão restritos a um grupo de trabalhadores privilegiados, e, com a reforma, os trabalhadores informais e em subempregos — cuja realidade de vida não se encaixa na forma rígida que é a atual CLT — também serão cobertos pela CLT’, o relator ampliou e criou formas precárias de trabalho, garantindo suposta segurança jurídica para as empresas, em detrimento da proteção ao trabalhador.
Libera o uso de contrato de trabalho autônomo. Desde que cumpridas todas as formalidades legais, a contratação de autônomo com ou sem exclusividade, de forma contínua ou não, não configura relação de emprego. O trabalhador autônomo é aquele que exerce a atividade profissional sem vínculo empregatício, por conta própria, sem habitualidade e subordinação e que assume todos os riscos pela própria atuação.
[…]
O PLC 38/2017 legaliza o que atualmente é considerado fraude no uso desse tipo de contrato, já que garante a possibilidade de relação de exclusividade e continuidade entre o autônomo e a contratante, sem que isso configure relação de emprego”.
O sociólogo português Boaventura Souza Santos, em artigo publicado pelo jornal Folha de São Paulo, aos 30 de janeiro de 2013, ao comentar o contexto sócio-político de Portugal daquele contexto, dentre outros, assentou:
“Se o Estado do Bem-Estar Social se desmantelar, Portugal ficará politicamente democrático, mas socialmente fascista.
[…]
Esperar sem esperança é a pior maldição que pode cair sobre um povo. A esperança não se inventa, constrói-se com alternativas à situação presente, a partir de diagnósticos que habilitem os agentes sociais e políticos a ser convincentes no seu inconformismo e realistas nas alternativas que propõem.
Se o desmantelamento do Estado do Bem-Estar Social e certas privatizações (a da água) ocorrerem, estaremos a entrar numa sociedade politicamente democrática, mas socialmente fascista, na medida em que as classes sociais mais vulneráveis verão as suas expectativas de vida dependerem da benevolência e, portanto, do direito de veto de grupos sociais minoritários, mas poderosos”.
Em que pesem as significativas conquistas pontuais, no campo dos direitos sociais, obtidas nos dois anos do atual governo Lula, que começaram a ser solapada pelo ajuste fiscal, que nada mais é do que corte de direitos sociais, ao cenário social revelado pela Pnad sob comentários, que vem se sedimentando desde o golpe do impeachment de 2016, pode-se aplicar, sem exagero algum, as assertivas do sociólogo português, acima transcritas; as diferenças entre as duas realidades resumem-se ao tempo e ao lugar; em tudo mais são quase siamesas.
Como bem alerta o referenciado e reverenciado sociólogo, não é hora de esperar sem esperança. Ao contrário, é hora de construir esperanças. Esperanças de reversão desse cenário de desolação e fascistização.
O portal eletrônico Consultor Jurídico, ao dia 23 de dezembro de 2024, publicou o resumo da entrevista com o renomado professor Nelson Mannrich, com o título “‘Direito do Trabalho não pode se voltar só a empregado típico’, diz professor”:
“O Direito do Trabalho continua com sua vocação protecionista, mas tem de se adaptar a novas realidades para incluir não só aqueles profissionais elencados pela Constituição, chamados de ‘empregados típicos’, mas também outras formas de relação laboral, como os autônomos.
Essa é a percepção do professor aposentado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo Nelson Mannrich, que concedeu entrevista à série Grandes Temas, Grandes Nomes do Direito, em que a revista eletrônica Consultor Jurídico conversa com os principais nomes da área sobre os temas contemporâneos mais relevantes.
‘O Direito do Trabalho continua com sua vocação protecionista. Só que agora está alargando suas fronteiras. Não pode apenas se voltar ao empregado típico. Temos que estender essas garantias de valor do trabalho humano, o princípio da dignidade, não só para este grupo privilegiado de trabalhadores que foi inicialmente objeto da regulação’, diz Mannrich.
O professor alega que o Direito do Trabalho permanece, na sua essência, como aquele que foi criado para proteger os profissionais, mas que o tempo tem transformado este escopo substancialmente. Ele cita que as mudanças vêm do modo de operar e no modo de fazer valer os direitos na Justiça.
‘A Constituição, quando se fala em direitos dos trabalhadores, se volta a todos”, diz ele, questionando que determinadas garantias também devem ser atribuídas aos autônomos. ‘Trabalhador é um gênero que envolve empregado e autônomo’, argumenta.
Os próprios constituintes, diz o professor, de certa forma, antevendo o futuro do Direito do Trabalho, deixaram isso claro na Carta ao estipular determinados fundamentos. Para o professor, é preciso construir um modelo de democracia no Brasil com respeito aos direitos fundamentais, mas sem esquecer que os autônomos também são trabalhadores.
‘A própria Constituição espelhou isso. É inacreditável como o Direito do Trabalho tem essa capacidade de não só enfrentar crises, mas se reinventar’”.
Somente o movimento sindical tem vocação e capacidade de liderar essa construção, como bem pontua o também sociólogo Clemente Ganz, em artigo publicado pelo Portal Vermelho, aos 16 de dezembro de 2024, com título “Sindicatos & democracia: Entidades defendem os direitos coletivos, promovem a igualdade e a democracia no trabalho, enfrentando ataques que visam enfraquecer as liberdades e precarizar os trabalhadores”, o qual traz os seguintes lampejos:
“Os sindicatos são organizações fundamentais para sustentar e proteger as democracias e o fazem com sua atuação desde os locais de trabalho, nos espaços setoriais, regionais, nas cadeias produtivas, no âmbito nacional ou internacional.
[…]
Os sindicatos ao longo da história expandiram sua atuação para tratar da regulação de todas as formas de emprego no setor privado e no setor público, o fazem por meio da negociação e da contratação coletiva.
As mudanças no mundo do trabalho desafiam os sindicatos a criar capacidade de representação coletiva de trabalhadores e trabalhadoras com diferentes formas de inserção ocupacional e de relações de trabalho que ultrapassam o clássico assalariamento ou de vínculo com o setor público.
[…]
Mais de 40% do contingente de trabalhadores no Brasil está sem proteção sindical (autônomo, conta-própria, doméstico, cooperado, terceirizados, plataformizados, entre outros), a maioria em situação de alta precarização e vulnerabilidade, dispersos, atomizados e com pouca experiência associativa no mundo do trabalho. […]”.
Salvo um outro, uma dezena se tanto, os sindicatos laborais representam tão-somente os/as trabalhadores/as com carteira assinada, e, ainda assim, quando se acham empregados/as; sendo que os/as terceirizados/as, com vínculos reconhecidos, organizam-se em sindicatos próprios, ou seja, que só os representam.
Isso em decorrência das reiteradas decisões do STF que nega a esses os direitos convencionais assegurados aos que são diretamente contratados/as pelas empresas tomadoras. Importa dizer: quem é terceirizado não se beneficia das garantias convencionais asseguradas a quem é contratado diretamente por empresas contratantes.
Eis o que diz STF:
“A equiparação de remuneração de remuneração entre empregados da empresa tomadora de serviços e empregados da empresa contratada (terceirizada) fere o princípio da livre iniciativa, por se tratarem de agentes econômicos distintos, que não podem estar sujeitos a decisões empresariais que não são suas” (Tema 383) — ministro Roberto Barroso, RE 635546”.
O ministro Luís Roberto Barroso ainda assentou:
“Exigir que os valores de remuneração sejam os mesmos entre empregados da tomadora de serviço e empregados da contratada significa, por via transversa, retirar do agente econômico a opção pela terceirização para fins de redução de custos”.
Todos os demais integrantes da população ocupada, que superam o estrondoso total de 50 milhões, estão órfãos de qualquer proteção, inclusive sindical.
Assim sendo, ou o movimento sindical laboral abraça, com todo vigor, as oportunas, pertinentes e urgentes sugestões do sociólogo Clemente Ganz — revolucionando sua forma de organização, de modo a incluir todos quantos integram a força de trabalho, não importando o modo como a integram, se com ou sem carteira assinada, pejotas, autônomos, com ou sem CNPJ, desempregados, desalentados e quanto mais se fizerem presentes —, ou, em breve, irá para o museu da história, juntamente com os direitos trabalhistas e a proteção previdenciária, realizando o grande sonho do capital e de seus asseclas, dentre eles, muitos juízes de todas as instâncias do Poder Judiciário.
A hora é esta!
Pelo correr dos acontecimentos, tudo indica que não haverá outra!
À luta e à ação!
*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee