O “Escola sem Partido” visa mais a sexualidade do que o marxismo

Às voltas no Congresso Nacional, o projeto Escola sem Partido, que pretende limitar a atuação de professores nas salas de aula, em especial nos assuntos ligados aos Direitos Humanos, sexualidade e no ensino da filosofia, se transformou na potência que é hoje – capaz de influir na eleição presidencial – menos por “combater o marxismo cultural”, mas por colocar a discussão de gênero como epicentro de uma disputa de narrativas.

Em 2014, ano que o deputado Flávio Bolsonaro, filho mais velho do presidente eleito Jair Bolsonaro, propôs pela primeira vez um Projeto de Lei (PL) com nome Escola sem Partido, a pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Fernanda Moura estava com um estudo no forno sobre a representação da mulher nos livros didáticos.

Moura notou, então, que a discussão envolvendo censura nas escolas ganhava proeminência com o PL, e que o fator gênero era a lenha na fogueira. “Não fazia sentindo estudar como gênero é debatido nas escolas se havia um projeto em curso para acabar com o pouco que se tinha. Fundamentei minha pesquisa no Escola sem Partido para começarmos a ter esse campo de conhecimento.”

A gênese desse movimento é de 2004, quando o advogado Miguel Nagib propôs o Programa Escola sem Partido para combater o que chamava de “doutrinação ideológica” nas escolas, momento em que a investida contra os professores estava ainda muito mais associada ao que a extrema-direita convenciona agora chamar de marxismo cultural.

“Quando o Escola sem Partido era um movimento social calcado na ideia de que os professores têm tendências esquerdista – e com isso estariam fazendo a cabeça dos estudantes -, ficou no ostracismo. O País vivia um momento de desenvolvimento social importante naquele período, então era uma ideia sem força”, explica Moura.

O que liga a ideia de Nagib a repercussão dos projetos de leis criados entre 2014 e 2015 em municípios, estados e no Congresso Nacional, é a aderência de políticos ligados aos evangélicos neopentecostais e aos católicos da renovação carismática à ideia.

Os religiosos atuavam desde 2011 nas discussões dos Planos Municipais de Educação e do Plano Nacional de Educação (PNE) em forte ataque ao que chamam de ideologia de gênero.

Também em 2011, Fernando Haddad, ministro da Educação na época, determinou a distribuição de materiais didáticos de combate à homofobia nas escolas, chamado desde então como kit gay por Jair Bolsonaro. A polêmica foi oportunamente ressuscitada na campanha eleitoral este ano.

“Nesse período, até por questões legais, burocráticas e dos arranjos políticos, o Escola sem Partido não avança como PL ou diretriz educacional, mas ganha muita força como pauta moral na sociedade. É um pânico contra os gays, lésbicas, um medo das minorias. Isso só foi possível com a atuação de grupos religiosos insistindo na questão do gênero.”

Para esses grupos, os filhos são uma propriedade privada dos pais, e a educação moral deles tem de estar de acordo com as convicções da família. O discurso contra questões de gênero e o anticomunista se alinham na medida em que são abordados como ameaça. “A direita não tem respostas para os problemas da população, especialmente em momentos de crise econômica, então ela resgata a moralidade como uma forma de representação”, destaca a pesquisadora.

“A linha de argumentação quando esses dois pontos se encontram é a de que os professores com a ideologia de gênero querem transformar os alunos em gays e lésbicas, e isso seria o fim das famílias como organização social, o que por consequência representaria o fim do capitalismo, transformando o Brasil em um país comunista”, explica Fernanda.

A ideia vai de encontro às declarações mais recentes do futuro ministro da Educação, o colombiano Ricardo Vélez Rodríguez, e do futuro chanceler Ernesto Araújo, adeptos a teoria de conspiração do globalismo e marxismo cultural.

“Nesse contexto as crianças e adolescentes não são sujeitos de direitos; elas têm de ser uma cópia dos pais e aprender apenas aquilo que os pais querem. Então, se o pais querem que elas sejam racistas e homofóbicas as escolas não podem mais ensinar Diretos Humanos.”

Para os grupos ligados ao Escola sem Partido aprovar o projeto importa, mas os efeitos criados pelo pânico moral – o que leva a estratégias diversas de perseguição nas escolas, como os vídeos ensinando a denunciar professores -, são a expressão mais relevante dessa disputa.

“O mais grave é que tratar gênero e sexualidade nas escolas é abrir um canal para as crianças denunciarem situações de abuso cometidas nos ambientes familiares, que antes elas sequer sabiam que é um abuso, um crime”, diz ela. Se o projeto for implementado a tendência é esse frágil canal se fechar ainda mais.

A pesquisadora lembra ainda que os índices apontam que o estupro é cometido em maioria contra menores de idade por parentes ou amigos próximos da família.

Carta Capital

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