O golpe de Estado no Paraguai e a América do Sul | Carlos Eduardo Martins
O golpe desferido contra o governo de Fernando Lugo, no Paraguai, é um importante sinal de alerta para as democracias e governos populares do Cone Sul.
Por Carlos Eduardo Martins*
Quais as razões para a sua imposição a nove meses do término do mandato popular do Presidente eleito, em plena realização da Rio+20, momento de forte liderança internacional brasileira, ignorando solenemente o apelo e a presença dos chanceleres da Unasul e do Mercosul em território paraguaio, bloco este com quem o Paraguai possuía, em 2007, 45% do seu comércio exterior, sujeitando-se ainda à punição pela violação de suas cláusulas democráticas, que vão da expulsão do Mercosul ao fechamento de fronteiras e interrupção do fornecimento de energia, se tomarmos em consideração o Protocolo de Ushuaia II, ratificado pelos poderes executivos de todos os seus Estados?
Questão da terra
O governo do presidente Lugo se elegeu com precária base parlamentar, em razão da tardia adesão dos movimentos sociais ao processo eleitoral, apoiando-se numa coalização anti-partido Colorado – partido este que governou o Paraguai de 1947-2008 – onde destacou-se a presença do conservador Partido Liberal. Durante sua gestão, incapaz de obter maioria parlamentar, Lugo não pode avançar em promessas chaves de campanha que confrontavam a oligarquia paraguaia, como a realização de uma reforma agrária, por exemplo. Formulou para isto um plano modesto que se estenderia até 2023 – baseado na eventual disponibilidade de créditos multilaterais e dotações orçamentárias governamentais – muito insuficiente para enfrentar a forte concentração da propriedade da terra e sua conexão com a grilagem.
Segundo Idilio Mendez Grimaldi, 85% das terras paraguaias estão nas mãos de 2% da população, a tributação corresponde a apenas 13% do PIB e a contribuição da propriedade imobiliária é de 0,04% contra rendas do agronegócio equivalentes a 30% do produto do país. A incipiente implementação da reforma agrária foi ainda parcialmente boicotada pela corrupção no Indert, órgão encarregado de realizá-la.
Lugo ampliou recursos com a revisão do tratado de Itaipú e no contexto do limitado orçamento, propiciou conquistas para a população paraguaia como a garantia de saúde pública gratuita e o estabelecimento do Tekoporá, programa de renda mínima que alcançou aproximadamente 93 mil famílias, gerando tensões com o congresso, que quis lhe cortar os recursos, e respostas na mobilização popular para aprová-los.
Monsanto e Estados Unidos
O governo estabeleceu certa confrontação com a Monsanto no que tange a questão da liberação de sementes transgênicas, não autorizando o plantio dessas variações de sementes algodão, ainda que a plantação de soja transgênica, principal cultivo de grãos do país, tenha permanecido amplamente liberada.
Quanto à relação com os Estados Unidos, ganhou destaque a questão militar. Em setembro de 2009, Lugo não renovou o programa de cooperação estabelecido na presidência de Nicanor Duarte que permitiria o ingresso, em solo paraguaio, de 500 militares estadunidenses com imunidade diplomática para treinamento operacional. Questionado sobre o episódio, o então comandante das forças armadas Cíbar Benitez o minimizou e relatou haver programas de cooperação militar permanentes com os Estados Unidos no Paraguai para assuntos internos, como colaboração com atividades policiais.
Cerca de um mês após esta recusa, Lugo trocou todo o comando militar do Estado, em função de tentativa de golpe que havia sido detectada. O governo foi ainda assediado pela reunião de 21 generais estadunidenses com a Comissão de Defesa da Câmara, em meados de agosto de 2011, para a construção de uma base militar, que foi reivindicada pelo líder da Unace – União Nacional de Cidadãos Éticos, dissidência do Partido Colorado e terceira força parlamentar –, como necessária para conter as ameaças representadas pela Bolívia e Venezuela bolivarianas. Rechaçou-se esta alternativa, por outro lado, Lugo havia aceitado programas como a Iniciativa Zona Norte – que permitia a ampla presença militar estadunidense em programas para combater o crime organizado e de ajuda social sob o controle da Usaid – e substituiu o Ministro da Defesa Luis Bareiro Spaini, que se opôs ao programa, a pedido da Embaixadora dos Estados Unidos, Liliana Ayalde.
As razões do golpe
Este pequeno histórico do processo paraguaio demonstra a limitação da presença do governo Lugo no aparato de Estado paraguaio, sua forte penetração pelo grande capital local e pelos interesses norte-americanos. Por que então o golpe de Estado quando praticamente se encerra a experiência de um tímido governo popular, arriscando as relações do país com seus vizinhos regionais de quem depende tanto comercialmente e no plano energético?
Duas hipóteses complementares despontam com força:
a) O golpe tem a função de criar o ambiente de terror para impedir que as organizações populares e a Frente Guazu (Frente Ampla em guarani) possam eleger um novo presidente com forte base parlamentar capaz de respaldar mobilizações populares e programas muito mais amplos. Para isso é fundamental destruir a TV Pública – oásis de informação num ambiente midiático dirigido pelos grandes proprietários donos de jornais e cadeias televisivas – fraudar ou adiar as novas eleições;
b) O golpe tem ainda o papel de modificar o tabuleiro geopolítico da região criando no Paraguai – em razão de sua localização territorial estratégica, disponibilidade de reservatórios de água doce e de fontes energéticas que afetam principalmente ao Brasil, Argentina, ou proximidade das reservas de gás da Bolívia – uma fonte de contenção e desestabilização dos governos de esquerda e centro-esquerda da região. Tal projeto se articula fortemente com o imperialismo estadunidense e se consolida com a instalação de bases militares no país. Só este vínculo, combinado com o desespero da direita paraguaia poderia dar-lhe imaginariamente a força suficiente para confrontar vizinhos regionais muito mais poderosos.
O golpe de Estado se estabelece no elo mais fraco da cadeia de governos progressistas da região e sinaliza que as velhas estruturas da dependência, que combinam as oligarquias locais com o imperialismo, estão vivas. Elas querem condenar nossos povos ao subdesenvolvimento, à pobreza e à extrema desigualdade de renda e riqueza, lançando-se contra qualquer processo democrático que não seja simulacro ou teatro de fantoches e proporcione avanços reais aos trabalhadores e às grandes maiorias. Será tarefa das lideranças políticas e do pensamento social ultrapassar estas barreiras na década que se inicia.
*Carlos Eduardo Martins é professor Adjunto e Chefe do Departamento de Ciência Política da UFRJ, Doutor em Sociologia (USP), Autor de globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina (Boitempo 2011)
Fonte: Vermelho