O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são, das coisas que não são, enquanto não são
José Geraldo de Santana Oliveira
“O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são, das coisas que não são, enquanto não são.”
Esta epigrafe constitui-se na essência da obra de Protágoras- filósofo grego-, ‘A Verdade’, escrita há mais de vinte e cinco séculos. Não obstante haver sido pronunciada em contexto social equidistante do atual, o que dificulta a compreensão de seu preciso sentido, isto não a impediu de se imortalizar; indiscutivelmente, nos últimos séculos, esta máxima quer significar o ser humano com a essência e como o referencial maior e primordial da vida social, como se colhem da Declaração de Independência das Treze Colônias Inglesas (EUA), em 1776, da Revolução Francesa, em 1789, da Convenção de Genebra, de 1864, e, sobretudo, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, da qual o Brasil é signatário, desde então.
O Art. 1.º, desta última Declaração, corrobora esta tese, ao estabelecer:
“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”.
O Brasil, em que pese a sua condição de signatário da realçada Declaração, já no momento em que ela foi lançada à geração da época, à atual e às que se sucederem, por todo o sempre, dada a sua dimensão humana e social, em razão da tibiez de sua incipiente e frágil democracia, aprisionada pelo regime militar de 1964, por vinte e um longo anos, somente com a promulgação da Constituição Federal (CF) de 1988- a Constituição Cidadã, nas felizes palavras do saudoso Presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Deputado Federal Ulisses Guimarães-, criou as estruturas políticas e jurídicas, necessárias à efetividade da epigrafada máxima.
O Preâmbulo da CF, que sintetiza os seus objetivos, estabelece que o Estado Democrático, por ela implantado, destina-se a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos da sociedade, além de outros.
O Art. 1º, que abre o Título dos Princípios Fundamentais, preconiza que a República Federativa do Brasil assenta-se em cinco fundamentos, que são: soberania (inciso I), cidadania (inciso II), dignidade da pessoa humana (inciso III), valores sociais do trabalho e da livre inciativa (inciso IV), e pluralismo político (inciso V).
O Art. 3º dispõe que, dentre os objetivos fundamentais da República, destaca-se, como o primeiro, a construção social livre, justa e solidária. O Art. 170, que abre a Ordem Econômica e Financeira, estipula que ela funda-se na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tendo por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social; e, no seu inciso III, pela primeira vez na história brasileira, reconhece a função social da propriedade como princípio inarredável.
O Art. 193, que dá início à Ordem Social, determina que esta tem como fundamento o primado do trabalho, e, como objetivos, o bem-estar e a justiça sociais.
A CF, de 1988, como visto, assentou as bases políticas e jurídicas para a implantação do Estado de bem estar social, sonho secular, acalentado pela sociedade brasileira.
Todavia, muitos dos direitos e garantias constitucionais, apesar de vigentes, ainda não ganharam efetividade, em razão do desequilíbrio de forças entre as classes sociais; de um lado, as classes detentoras dos poderes econômico e político não medem esforços para reduzir ao mínimo os direitos fundamentais sociais; de outro, as camadas populares, à frente os trabalhadores, travam luta sem trégua contra esta ganância. Com isto, a sua luta é muito mais de resistência do que de avanços sociais; a prova disto é a não regulamentação do inciso I, do Art. 7º, que proíbe a dispensa arbitrária ou sem justa causa, que depende de lei complementar, para regulamentá-lo.
O Brasil é o único País do mundo que permite a denúncia vazia do contrato de trabalho, basicamente, sem restrições, exceto para os portadores de estabilidade provisória, como os dirigentes sindicais, a gestante, o trabalhador doente ou que sofre acidente de trabalho, e as dispensas de caráter discriminatório, nos termos da Lei N. 9.029/95 e da Súmula 443, do Tribunal Superior do Trabalho (TST).
Por estas razões, as relações de trabalho, indiscutivelmente, são de poder, e, por conseguinte, de dominação dos trabalhadores, pelos empregadores. Falar em cooperação e colaboração, entre estas duas classes, nada mais é do que forma grosseira de esconder a dominação; soando, portanto, como hipocrisia. Ou, em linguagem metafórica, é tapar o sol com a peneira.
As relações que se travam entre patrões e empregados, no contexto brasileiro, nas felizes palavras do jurista Benedito Calheiros Bonfim, soam como o embate entre o pote de ferro e o de barro; não havendo necessidade de se nomear qual classe cada um deles representa.
As empresas, em geral, salvo pouquíssimas exceções- se é que as há-, utilizam-se de meios sórdidos para vergar os trabalhadores; desde as ameaças explícitas, às veladas, aparentemente despretensiosas, com predominância daquelas que visam a atingir-lhes o que possuem de mais sagrado: a dignidade e a honra. Os ataques à sua dignidade são feitos a contas gotas, por assim dizer, e, não raras vezes, por interpostas pessoas. Porém, são sistemáticos e certeiros, sempre com o objetivo de constrangê-los, humilhá-los e apequená-los. A tais ataques, a doutrina e a jurisprudência da Justiça do Trabalho denominam de assédio moral, que nada mais é do que cerco à dignidade e à honra dos trabalhadores.
Estes ataques podem ser comparados ao multissecular método de tortura, utilizado pelos governantes chineses, do período feudal, conhecido mundialmente como a gota chinesa, que consistia na imobilização física do torturado, por meio de amarras aos seus braços e ao pescoço e no persistente gotejamento de água sobre a sua cabeça, por meses a fio; este permanente gotejamento quebrava, inicialmente, a resistência psicológica do torturado, levando-o, em regra, à loucura, e, ao depois, a quebrava-lhe a resistência física, provocando-lhe ulcerações, inflamações e a morte.
A tortura psicológica que se faz aos trabalhadores, aqui e alhures, a rigor, não tem como escopo a sua loucura e/ou morte física; mas, sim, a sua submissão total às ordens e, sobretudo, à exploração sem limites, sem qualquer contestação e/ou reação. Em uma palavra: visa ao seu completo domínio psicológico, transformando-o em um ser dócil, humilhado e constrangido.
Parafraseando o escritor francês Charles Baudelaire, em “Paraísos Artificiais’, pode-se dizer que a revolta e a luta implicam sempre certa dose de esperança, enquanto o desespero é mudo. Nos casos de assédio moral, não há luta e a revolta transforma-se em mudo desespero, ou, no abismo do silêncio, sem esperança alguma.
No assédio moral, há semelhança com a multissecular técnica de se amansar cavalo, na região pantaneira matogrossense, que consiste no seu fechamento em um curral, com a cara amarrada a um toco, por, pelo menos, três dias, sem comida e sem água. Dizem os pantaneiros que, com ela, quebra-se o orgulho do animal, que se torna dócil e totalmente submisso. O que se visa no assédio moral não é outro resultado, é exatamente este.
Muito embora, não haja ainda estatísticas específicas sobre o número de afastamento do trabalho e de suicídios, provocados pelo assédio moral, com certeza, considerável parcela dos 1.646.000 auxílios doenças, de setembro de 2014, e dos 28 suicídios diários, dele decorrem. Quanto aos primeiros, por depressão, estresse, síndrome do pânico e outros. No tocante ao segundo, por desespero e desesperança absolutos.
Como a discussão sobre o tema é muito recente, em âmbito mundial, remontando-se a 1997, a doutrina e a jurisprudência ainda se encontram em estágio inicial, não a tendo maturado. Por isto, via de regra, apesar de já haver registro, em dezenas de varas do trabalho, em alguns tribunais regionais e no próprio TST, de condenação de empresas por assédio moral, desmedidamente ainda se exigem reiteração da prática e produção de resultados danosos; sendo que, à luz dos fundamentos e garantias constitucionais, a sua caracterização depende somente da prática do ato, um só que seja, sem necessidade de comprovação de resultado; pois que tal ato reveste-se da condição de atentado à dignidade da pessoa humana, dos valores sociais e do primado do trabalho e da função social da empresa.
Há, no entanto, fortes sinais de evolução da jurisprudência, no campo do dano moral, individual e coletivo, sendo que, hoje, no âmbito do TST, chegou-se ao avançado estágio de não mais se exigir qualquer resultado, para deferi-lo, bastando tão somente a lesão a direitos fundamentais, como a não anotação do contrato de trabalho na CTPS, falta de depósitos regulares de FGTS, horas extras excessivas, supressão de intervalo para alimentação, constrangimento ilegal e dispensa discriminatória, que, ao fim e ao cabo, são formas de assédio. Nestes casos, aplica-se a teoria do “dannun in re ipsa”, ou seja, o dano decorre do próprio fato.
Outra perspectiva alvissareira na luta sem trégua contra o assédio moral vem de outro relevante avanço jurisprudencial, já sacramentado em todas as instâncias da Justiça do Trabalho e do Supremo Tribunal Federal (STF), consubstanciado no reconhecimento da substituição processual ampla e irrestrita, quer de todos os trabalhadores, quer de um só. Com isto, os sindicatos podem e devem agir, senão preventivamente, ao menos no momento em que a lesão à dignidade da pessoa humana e aos valores sociais do trabalho ocorra; fazendo-o com amparo no Art. 8º, inciso III, da CF, por meio de ação civil coletiva, que é plenamente aceita, sem maiores formalidades e sem maiores discussões, como acontecia até há pouco tempo.
E o que é mais importante, a ação coletiva é proposta em nome do sindicato, sem envolver o nome de nenhum trabalhador, o que dificulta sobremaneira qualquer retaliação por parte da empresa demandada; o que, em certo sentido, assemelha-se à luta da justiça italiana contra a máfia, lá chamada de masmorra, quando se criou a abstrata figura do juiz sem rosto, só o Poder Judiciário, como instituição aparecia, o juiz, não. Aqui, na ação coletiva, aparece o sindicato, os prejudicados pela nefasta ação da empresa, não.
À luta, pela cidadania, que não se constrói sem a absoluta observância da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho.
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