‘O importante é que a emoção sobreviva’
- Por Maria Clotilde Lemos Petta*
Quem viveu em Campinas na década de 1970 deve se lembrar do saudoso Cônego Milton Santana, o “padre do Taquaral”. Cônego Milton foi preso, torturado pela ditadura militar, perdendo uma das vistas, mas, quando solto por falta de provas, continuou colocando sua vida e sua Igreja a serviço da justiça e da liberdade. Era exímio jornalista, publicando periodicamente artigos contundentes nos jornais da cidade, chegando a ser chamado, por isso, de “Padre Comunista”. Tempos depois, em entrevista ao Correio Popular, disse: “nessa revolução me prejudicaram a vista, mas aviso que se houver outra podem me cortar a língua. Só assim poderão me calar. Mas ainda me restarão às mãos para continuar escrevendo”. Em 1990, Cônego Milton, sofreu um espasmo cerebral e ficou preso a uma cadeira de rodas, vindo a falecer aos 3 de abril de 1998.
Hoje, ao escutar “Pesadelo”, melodia do saudoso Maurício Tapajós e letra do grande Paulo César Pinheiro, gravada pelo maravilhoso MPB4 no antológico disco “Cicatrizes”, em 1972, me vieram à lembrança as emoções durante a missa do sétimo dia da morte de Vladimir Herzog, torturado e assassinado pela ditadura.
“Quando o muro separa uma ponte une
Se a vingança encara o remorso pune
Você vem me agarra, alguém vem me solta
Você vai na marra, ela um dia volta
E se a força é tua ela um dia é nossa
Olha o muro, olha a ponte,
Olha o dia de ontem chegando
Que medo você tem de nós, olha aí
Você corta um verso, eu escrevo outro
Você me prende vivo, eu escapo morto
De repente olha eu de novo
Perturbando a paz, exigindo troco
Vamos por aí eu e meu cachorro
Olha um verso, olha o outro
Olha o velho, olha o moço chegando
Que medo você tem de nós, olha aí
O muro caiu, olha a ponte
Da liberdade guardiã
O braço do Cristo, horizonte
Abraça o dia de amanhã
Olha aí…
Olha aí…
Olha aí…”
Em Campinas, a missa foi celebrada pelo Cônego Milton Santana, num ambiente de grande tensão, pois a orientação das forças ditatoriais era de reprimir qualquer manifestação de repúdio à morte de Vladimir e sabíamos que elas não teriam escrúpulos de invadir a Igreja. Mas a beleza das músicas de protesto, entre elas o “Pesadelo”, e a segurança e energia transmitidas pelo Cônego faziam com que nos sentíssemos em paz e com força para continuamos na luta pelo fim da ditadura. Agora, há 43 anos da morte do Vlado, participando, em São Bernardo, da missa em memória de Dona Marisa, e ao presenciar as lindas e inúmeras manifestações contra a prisão de Lula, me lembrei de outra música de Paulo Cesar Pinheiro, muito apropriada para os tempos que vivemos, chamada “Mordaça”, que diz “o importante é que nossa emoção sobreviva”. E que estas emoções contribuam para que mais e mais se fortaleça a unidade das forças progressistas e democráticas em torno do “Lula Livre”. A luta continua !
“Tudo o que mais nos uniu separou
Tudo que tudo exigiu renegou
Da mesma forma que quis recusou
O que torna essa luta impossível e passiva
O mesmo alento que nos conduziu debandou
Tudo que tudo assumiu desandou
Tudo que se construiu desabou
O que faz invencível a ação negativa
É provável que o tempo faça a ilusão recuar
Pois tudo é instável e irregular
E de repente o furor volta
O interior todo se revolta
E faz nossa força se agigantar
Mas só se a vida fluir sem se opor
Mas só se o tempo seguir sem se impor
Mas só se for seja lá como for
O importante é que a nossa emoção sobreviva
E a felicidade amordace essa dor secular
Pois tudo no fundo é tão singular
É resistir ao inexorável
O coração fica insuperável
E pode em vida imortalizar”
*Maria Clotilde Lemos Petta e vice-presidenta da CEA, diretora de Relações Internacionais da CONTEE,diretora do Sinpro Campinas e Região.