O legado de Trump
Luís Antonio Paulino
Quando, em 20 de janeiro de 2021, Joe Biden assumir o comando do país mais poderoso do planeta, terá sobre a mesa uma pilha de problemas que exigirão muita energia, experiência e discernimento para solucionar. Se estará à altura dos desafios só o tempo dirá. Uma coisa, entretanto, é certa. O legado pernicioso deixado por Trump tornará o seu trabalho muito mais difícil. Internamente, vai assumir o comando de um país dividido e desmoralizado. Externamente, por mais que faça, dificilmente irá recuperar a confiança do mundo nos Estados Unidos.
Depois do fracasso de todas as manobras jurídicas para reverter o veredito das urnas e do colégio eleitoral que deu a vitória a seu opositor, Donald Trump chegou ao fundo do poço. Arquitetou com seu círculo mais íntimo de conselheiros – Michael Flynn, Sidney Powell, e Rudy Giuliani – um golpe de estado para tentar se manter no poder. Sugeriu uma espécie de “autogolpe” pela imposição de uma lei marcial por meio da qual as forças armadas americanas determinariam novas eleições nos estados em que perdeu, mas que, segundo ele, o partido Republicano e quase 70% dos seus 74 milhões de eleitores, teriam sido “roubadas”.
Os comandantes civis e militares do exército, secretário Ryan McCarthy e o general James McConville, emitiram uma declaração conjunta afirmando que “não era papel dos militares dos Estados Unidos determinar o resultado de uma eleição americana”. Mas o estrago já estava feito. Só o fato de os chefes das forças armadas dos Estados Unidos precisarem vir a público repudiar tal sugestão de golpe mostra a que ponto chegou a degradação do sistema político norte-americano.
O pior de tudo, entretanto, não é o fato de Trump sugerir tal tentativa de golpe, algo que até se explica por seu perfil psicológico pervertido e doentio, mas o fato de o partido Republicano, por atos ou omissões, e grande parte de seu eleitorado endossarem tal iniciativa. Não deixa de ser preocupante o fato de um presidente que considerou usar os militares para subverter o resultado de uma eleição permanecer, de longe, como a figura mais popular e o maior arrecadador de fundos do partido Republicano. Isso revela o quanto o sistema político americano, que se arvora como modelo para o chamado “mundo livre”, está apodrecido e o quanto os Estados Unidos perderam a condição moral para querer impor ao mundo sua vontade sob o pretexto da defesa da democracia e da liberdade.
Por mais que faça, dificilmente Joe Biden conseguirá reverter, em escala mundial, a perda de confiança nos Estados Unidos. A pretensa condição de excepcionalidade dos Estados Unidos, de povo escolhido por Deus para liderar o mundo livre, de farol sobre a colina, orientando os destinos da humanidade, foi totalmente arruinada e uma vez destruída não há como ser recuperada. O rei está definitivamente nu.
O fracasso dos Estados Unidos como líder das democracias do Ocidente coincide com a estátua de Thomas Jefferson atirada do pedestal por manifestantes identitários.
No plano interno, a promessa de unir novamente o país está igualmente comprometida. Os demônios do ressentimento, do racismo e da xenofobia que Trump libertou não têm mais como ser contidos. O máximo que Biden conseguirá, se tiver sorte e competência, será manter essa estreita maioria do eleitorado que repudiou esse lado sombrio da sociedade norte-americana – a “cesta de deploráveis” a que se referiu Hillary Clinton, em 2016 – mas jamais conseguirá converter essa enorme massa de ressentidos para os valores humanistas que apregoa.
Mas esse legado pernicioso de Trump não se restringe aos Estados Unidos. Não podemos esquecer que Trump era e provavelmente continuará a ser o líder de uma nova cepa de governantes que lograram chegar ao poder pela via democrática, apenas para destruí-la por dentro. São como larvas de vespas que postas dentro da aranha comem-na por dentro, transformando-as em zumbis, até matá-las. Se Trump ousou fazer isso nos Estados Unidos, o próprio inventor do sistema de pesos e contrapesos para evitar a emergência de um déspota ou tirano, o que dizer de países com estruturas institucionais muito mais frágeis e dominadas por elites plutocráticas e corporativistas, como o Brasil de Bolsonaro, por exemplo.
Luís Antonio Paulino é professor associado da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e membro da equipe de colaboradores do portal “Bonifácio”.