O limite do intolerável

Por Jorge Furtado

São condições fundamentais para a sobrevivência de uma democracia o direito ao voto em eleições livres, a existência de partidos políticos e seus filiados, a liberdade de expressão e de informação e a vigência de um estado de direito, onde todos se submetem à lei. Desde Montesquieu e na maioria das democracias modernas, o poder é separado em três: executivo, legislativo e judiciário.

O sistema eleitoral brasileiro é razoável, embora haja distorções na representatividade no Congresso e o sistema de suplentes do Senado sejam uma excrescência. O quadro partidário brasileiro é confuso e sofre constantes modificações, acho que ainda não tivemos duas eleições com as mesmas regras, mas a filiação e a organização partidária são livres, desde que o estatuto do partido não desrespeite a constituição, por exemplo, pregando a discriminação racial, religiosa, de etnia ou de classe. Há 29 partidos em atividade, mais alguns esperando registro. Temos liberdade de informação e expressão, órgãos de imprensa publicam informações sem censura, sites, blogs e redes sociais publicam o que querem.

Vivemos, portanto, numa democracia. Os políticos eleitos tem a obrigação de prestar contas dos seus atos, a sociedade tem o direito de se informar e se expressar e todos podem recorrer à justiça caso sintam que seus direitos foram desrespeitados.

Desde o fim da Lei de Imprensa, criada, não por acaso, pela ditadura, temos um vazio na legislação brasileira quanto aos direitos do cidadão contra eventuais abusos da imprensa. Recorrer à justiça para exigir retratação, direito de resposta ou indenização contra matéria caluniosa é ineficaz, já que os processos demoram tanto que, quando e se concluídos, a matéria que os gerou já foi quase esquecida, embora os crimes contra a honra tenham consequência duradoura. Calúnias e ofensas vendem muitos jornais e revistas e garantem altos índices de audiência, mas as indenizações estabelecidas pela justiça são quase sempre irrisórias. No Brasil, caluniar e ofender são atividades altamente lucrativas.

A democracia exige tolerância. A tudo? Não. Como disse Umberto Eco, “para sermos tolerantes temos que estabelecer o limite do intolerável”.

Fica combinado então que não vale:

– Não vale o repórter invadir a casa de alguém para colher ou (quem sabe?) plantar informações, como fez recentemente um repórter da Veja na casa do ex-ministro José Dirceu. A invasão da residência de alguém por um repórter – fato gravíssimo e praticamente ignorado pela imprensa – é tão inadmissível quanto um assalto comum ou o uso da polícia, por eventuais governos, para perseguir adversários políticos. Ou a imprensa quer o fim do direito à propriedade e a privacidade?

– Não vale chamar de “censura” a decisão judicial que proíbe a publicação de determinada matéria. Se um adversário político (ou empresário concorrente, ou ambos) contrata um araponga para grampear ilegalmente telefones de seus desafetos e, seletivamente, vasa estas informações para a imprensa, o prejudicado tem o direito de recorrer à justiça exigindo que a publicação seja proibida. O judiciário, por sua vez, deve julgar o caso e proferir a sentença. À imprensa cabe cumprir a decisão da justiça, não há censura alguma. Ou a imprensa quer a extinção do judiciário?

– Não vale dar ampla divulgação, sem apurar fatos ou checar informações, às acusações sem provas contra a honra de alguém, como acaba de fazer, mais uma vez, a imprensa brasileira.

No dia 01/04/2010 notícia do Correio Braziliense informa que o PM João Dias Ferreira foi preso, numa investigação determinada pelo Ministério Público a partir de diligência do Ministério dos Esportes. A acusação é que ele liderava um grupo que falsificou 49 notas frias para roubar cerca de 2 milhões destinado à formação de crianças carentes em programas sociais.

http://1.bp.blogspot.com/-2YYHlsyJbbg/TqRoTAAODrI/AAAAAAAAGRA/yrh2rLKYQZ

Um ano e meio depois, no dia 17/10/2011, a manchete da revista Veja afirma: “O ministro recebia o dinheiro na garagem”. No texto da matéria, diz a fonte da informação, o mesmo PM João Dias Ferreira: “Por um dos operadores do esquema, eu soube na ocasião que o ministro recebia dinheiro na garagem”.

A mesma fonte, sete dias depois: “Policial diz que não tem provas específicas contra Orlando Silva”. O policial militar João Dias Ferreira disse que não possui provas do envolvimento direto do atual ministro do Esporte, Orlando Silva, e de seu antecessor, Agnelo Queiroz, no suposto esquema de desvios de recursos públicos da pasta. O policial militar negou que tenha gravado diálogos de Orlando Silva. “Em nenhuma delas [das gravações] tem a voz do ministro”.

http://g1.globo.com/politica/noticia/2011/10/policial-diz-que-nao-tem-pr 

E agora? A informação da manchete, de que o “Ministro recebia dinheiro na garagem” era verdadeira ou não? Será “despublicada”? Como fica a honra do ministro? E a credibilidade da imprensa?

Os acusadores do ministro foram flagrados (alguns, presos), por desviar dinheiro público destinado a programas sociais. São, para dizer o mínimo, fontes cujas informações deveriam ser melhor averiguadas, antes de servirem de munição para atacar a honra de alguém.

Numa democracia, o direito à informação deve estar, como todos os direitos, sujeito à lei. E a lei deve proteger o cidadão contra eventuais abusos do poder, seja ele público ou econômico. Ou não?

Em todos os jornais e veículos, e também nos blogs e sites, há militantes políticos mais ou menos disfarçados de jornalistas. Em todos os jornais e veículos também há bons jornalistas, profissionais que precisam ser bem remunerados para fazer o insubstituível trabalho do jornalismo investigativo: a busca diária pela verdade factual. Há que saber distingui-los, como ensina, neste vídeo, um excelente jornalista, Caco Barcelos, da Tv Globo.

http://www.youtube.com/watch?v=8OdncyENbdM

Fonte: Blog do Jorge Furtado

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