O papel das Forças Armadas

por Celso Amorim

Complementaria as reflexões que têm sido feitas sobre a nova “questão militar” com uma pergunta nada retórica: na posição subordinada que a direita conservadora e neoliberal propõe (e executa aceleradamente) para o Brasil, qual é o papel das nossas Forças Armadas?

Em livro recentemente publicado no Brasil, intitulado Quem Manda no Mundo?, Noam Chomsky recorda que, em plena vigência do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (o famigerado Tiar, infelizmente também conhecido como Tratado do Rio, pois aqui foi firmado), o presidente John F. Kennedy tomou a decisão de “alterar” a missão dos militares latino-americanos, como se isso fosse de sua exclusiva competência, retirando-os da “defesa hemisférica”, oriunda da Guerra Fria, e passando a atribuir-lhes tarefas ligadas à segurança interna.

Em nota, Chomsky cita os papéis do presidente norte-americano sobre segurança nacional, inclusive um relatório sobre a América do Sul, com a fundamentação para a mudança.

E assim se fez. Passada a ameaça comunista, essa missão foi adaptada às novas circunstâncias, sempre de forma subalterna, passando a constituir-se em combate ao crime organizado, especialmente ao narcotráfico. Foi o que aconteceu no México e que de certa maneira acontece agora no Brasil.

Isso é algo que as Forças Armadas brasileiras sempre viram, corretamente, com desconfiança, como pude constatar quando ministro do Exterior de Itamar Franco, a propósito de uma visita do então secretário de Defesa dos EUA, Bill Perry. Na ocasião, na inexistência de contraparte equivalente, acabei por ser o anfitrião de Perry, dividindo essa função com os ministros militares da época.

Em suma, no novo quadro de destruição dos ativos nacionais, aos militares brasileiros não caberá sequer o papel de força auxiliar na defesa de um Ocidente imaginário, como na Guerra Fria, mas o de gendarmaria pura e simples. Com graves consequências, inclusive para o moral, a cultura e a integridade das Forças Armadas. Isso não é hipótese.

Vários estudos assinalam a deterioração do estamento militar em países nos quais lhe foi atribuída a função de polícia. Em um contexto desse tipo, caças modernos, sistema avançado de defesa de fronteiras (e da Amazônia), blindados de última geração fabricados com tecnologia nacional, satélites de observação, programas de lançadores e submarinos de propulsão nuclear simplesmente não se encaixam.

Para acabar com esses projetos, tão importantes para a defesa de um país que se quer independente, não é preciso uma decisão formal: o estrangulamento orçamentário será suficiente. Aparentemente é o que ocorre.

Assim, ainda que não o queiram, nossas Forças Armadas estarão reduzidas ao papel de meros carabinieri. Será que desejam isso? Ou simplesmente não têm clareza de que tudo está ligado? Os militares que conheci como ministro da Defesa, em sua maioria, não compartilham dessa visão estreita. Por que estão calados? Justamente porque, em se tratando de Força Armada, os limites entre crítica e insubordinação são muito tênues.

Como dialogar com os militares sem incitá-los à desobediência é um desafio para todos os democratas legitimamente empenhados em preservar a nossa soberania. Como notinha de rodapé acrescento: quando necessários, outros métodos, além dos financeiros, podem ser (e efetivamente são) empregados.

É muito esclarecedora a entrevista do almirante Othon Pinheiro a CartaCapital. Ao responder sobre a quem interessava sua condenação a 43 anos de prisão, o almirante respondeu com surpreendente lucidez: “Certamente, interessa ao sistema internacional preocupado com o fortalecimento de um dos países integrantes do BRICS”.

*Foi chanceler nos governos Lula e ministro da Defesa no primeiro mandato de Dilma Rousseff

Carta Capital

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