O que é ser de direita
Nascido durante a revolução francesa, o duo contraposto – direita e esquerda – tem transpassado séculos, mantendo-se vivo até os dias de hoje.
Muito além da localização geográfica inicialmente demarcadora de posições políticas afins, ambos os termos, que também se transformaram em conceitos, cada vez mais ganharam significados marcadores de identidades, aprofundando-se fortemente em polos contrapostos. Mas é importante ressaltar que, de fins do século XVIII aos dias de hoje, inúmeros acontecimentos os transformaram, ora distanciando-os ainda mais, ora promovendo certas proximidades, guardadas, contudo, aspectos diferenciadores imanentes, uma vez – reitere-se – tratar-se de polos contrapostos.
Particularmente quanto à “direita”, objeto desta reflexão, sua trajetória se confunde com outras correntes de pensamento, tais como o “conservadorismo” (proveniente de E. Burke e outros) e o “autoritarismo” (oriundo de várias cepas). Mas uma imagem particular de “ordem” (autoritária, disciplinar, assimétrica e invariavelmente pró-proprietários) define inerentemente a perspectiva da direita.
A dimensão comportamental dos indivíduos em sociedade ocupa, igualmente, a agenda dos grupos à direita: daí a ênfase em questões tipicamente privadas (provindas, essas, do liberalismo), tais como família, sexualidade, estética, religião, entre outras, assim como a ênfase às instituições estatais e aos códigos legais que delas deveriam se ocupar. Em outras palavras, para a direita deveria haver certa “estatização” da vida privada, tal como apontada por inúmeros autores em diversos momentos históricos. Não é coincidência, portanto, que regimes de direita, em momentos históricos distintos e em países muito diversos, caso de Bolsonaro no Brasil contemporâneo, mobilize temas tipicamente individuais e privados como bandeiras políticas, dando-lhes caráter supostamente “públicos”.
Curiosamente, contudo, os regimes de direita têm adotado, em termos econômicos, ou pressupostos “intervencionistas”, por vezes keynesianos, embora sem preocupação social (caso da ditadura militar brasileira pós-1964), ou “neoliberais” (caso da ditadura militar de Pinochet no Chile e de Bolsonaro no Brasil contemporâneo).
Quando se adotam políticas econômicas neoliberais, as direitas no poder paradoxalmente (como aludido) “estatizam a vida privada”, mas “privatizam a vida pública”, numa clara dessintonia teórica.
Mas o centro definidor das direitas – é mais prudente pluralizar o conceito tendo em vista suas diversas conotações – é a defesa da propriedade privada e do construto da “ordem” como elemento assegurador de sua vigência. Daí deriva a lógica dos “inimigos” (internos e/ou externos): os judeus na Alemanha nazista; os comunistas (na guerra fria e mesmo no Brasil contemporâneo!); a esquerda em geral; os trabalhadores organizados; os homossexuais (em razão de seu comportamento tido como “desviante” e “imoral”, supostamente contrários à família burguesa); entre outros, dependendo do período histórico e da sociedade em questão. A xenofobia a determinados grupos é, dessa forma, típica do pensamento à direita, o que fez do fascismo e do nazismo expressões máximas (e extremas) das direitas, notadamente quando ascendem ao poder.
Logo, as direitas atuam em prol do capital (e dos capitalistas), por meio da “ordem” (autoritária), consequentemente opondo-se com violência – verbal, estética e física – aos que, real ou imaginariamente, se opõem ao capitalismo e/ou às desigualdades produzidas por esse sistema. Dessa forma, os trabalhadores são, via de regra, as primeiras vítimas das políticas econômicas, assim como suas organizações (sindicatos, partidos e outras formas de representação política). Tal processo é chamado, segundo G. Agamben, de Estado de Exceção Permanente. No caso brasileiro, sob Temer e, agora, Bolsonaro, não apenas a “reforma” trabalhista, a terceirização irrestrita, a Emenda Constitucional 95 (que congela gastos exclusivamente sociais), a extinção do Ministério do Trabalho e a tentativa de impedir as fontes de financiamento sindical, entre outras, expressam de forma cabal o papel subalterno destinado ao trabalhador e a postura de aniquilação, por meios distintos, de sua representação.
Em outras palavras, as direitas “organizam” autoritariamente a “luta de classes” (conceito que negam veementemente, o que apenas comprova sua validade, embora com contornos distintos do havido no século XIX) tendo em vista o déficit de legitimidade do grande capital e de seus representantes, pois incapazes de conquistar o “voto popular”. É por isso que o grande capital necessita da direita: ora pela via militar, ora pela via populista, ou ambas, caso do Brasil contemporâneo que, por meios ilegítimos/ilegais, via “fake news” direcionadas a grupos sociais vulneráveis por meio das redes sociais, demonstrou a incapacidade de as elites “jogarem as regras do jogo” provindas do liberalismo político. Logo, o “jogo sujo” das direitas torna-se fundamental para se compreender a incapacidade de a direita obter legitimidade, como se tem observado nas eleições fraudulentas de Trump e Bolsonaro, reitere-se, cuja sombra de Steve Bannon como manipulador digital em escala global é chave para desnudar a direita em perspectiva internacional.
Daí também vir à tona novamente a “estatização da vida privada” como elemento de manipulação, forjando-se consensos ao criar e manter a lógica permanente do “inimigo”: seja na economia, seja na política, seja nos comportamentos individuais e grupais. Mesmo quando determinados “inimigos” têm a função de produzir “cortina de fumaça” para temas mais relevantes serem inseridos e viabilizados, vinculados por exemplo à destruição de direitos e à reprodução ilimitada do capitalismo, ainda assim expressam a visão de mundo em larga medida totalitária da sociedade. Daí as direitas serem por excelência antissocialistas, anti socialdemocratas (e mesmo antiliberais do ponto de vista da separação entre público e privado) e pretenderem englobar temas e questões privados e públicos sob a perspectiva conservadora, autoritária e totalizante.
Assim, trabalhadores, pobres, negros e indígenas que rejeitam a exploração, mulheres que não aceitam papel subalterno, homossexuais e toda sorte de “desajustados” – à luz da percepção das direitas – compõem o quadro que combina “ordem econômica” (exploração do trabalho pelo capital) e “ordem política” (autoritarismo e criminalização do conflito e particularmente dos trabalhadores e dos pobres).
Tal dinâmica pinça o conceito – fortemente ilusório – de “meritocracia”, a ser utilizado exclusivamente pelos trabalhadores que, por esforço próprio e individual, rejeitando o conflito (que, reitere-se, é prioritariamente de classes), devam se submeter às “oportunidades” geradas pela “sociedade aberta”, isto é, pela economia de mercado, “livre” portanto da regulação estatal. Nesse sentido, é significativo o já clássico livro de Kal Popper, “A sociedade aberta e seus inimigos”, como expressão sintética dos ideais da direita que se pretende “ilustrada”. Mas também são significativas as obras de inúmeros ultraliberais, como Mises, Hayek e Friedman, todos amantes do mercado e críticos das “democracias baseadas na regra da maioria”. A junção entre direita (e sua extremidade) e ultraliberalismo, caso da ditadura chilena, é bem analisado pelo livro, e o documentário, de Naomi Klein, “A doutrina do choque”, em que o modus operandi das direitas no século XX são explicitadas.
Portanto, é imanente ao pensamento à direita o autoritarismo pela via da imagem mística da “ordem”, tão bem representada pela grande mídia brasileira, como procurei demonstrar em meu livro “O consenso forjado – a grande imprensa e a formação da agenda ultraliberal no Brasil” (Hucitec, 2005). Igualmente, a defesa da propriedade privada (e de suas classes sociais correspondentes), de valores sociais que combinam tradição conservadora (de diversas matrizes) com a referida “estatização da vida privada”, assim como a criação/perseguição a inimigos, notadamente internos, uma vez que os conflitos devem ser extirpados, configuram o cerne do pensamento à direita.
O Brasil contemporâneo tem sido palco da ascensão dessas vertentes, que combinam antiesquerdismo, antipetismo e antiintelectualismo e, por oposto, valorização da tradição, da religião, da família tradicional, dos comportamentos pré-estabelecidos pela ordem capitalista e pela “meritocracia” burguesa (combinação entre conservadorismo e valores burgueses). Quanto à meritocracia, as igrejas neopetencostais tem contribuído fortemente por meio da chamada “teologia da prosperidade”, que combina doutrinação religiosa com ultraliberalismo individualizante.
As direitas contemporâneas, embora profundamente reativas perante a civilização e aos direitos individuais (civis), políticos e sociais, têm se utilizado vigorosamente das “modernas” tecnologias digitais para forjar supostos consensos por meio da manipulação da realidade, fundamentalmente grotesca e grosseira, tornando-a paralela ao mundo real, constituindo-se portanto em “realidade paralela”.
As direitas representam, pois, o retorno a séculos anteriores, como o XIX, ao criarem hordas de miseráveis – tal como retratado no clássico livro de Victor Hugo na França –, pois desprotegidos de direitos trabalhistas e sociais. Para esses, a “política pública” das direitas é a violência policial, a perseguição e a opressão, notadamente aos que conflituam, em particular os trabalhadores organizados, e toda forma de manifestação cultural e outras de oposição e protestos, como se observou no carnaval de 2019 em que a figura de Bolsonaro e de seu (des)governo foram vigorosamente hostilizados e ridicularizados: isso com pouco mais de dois meses no cargo!
O pacote de (in)segurança “pública”, enviado ao Congresso Nacional por Sérgio Moro – figura marcante da direita ao se utilizar do cargo de juiz para perseguir opositores, notadamente Lula, e desrespeitar integralmente o arcabouço jurídico brasileiro –, se adequa inteiramente a esse quadro: blinda as elites e criminaliza os pobres, permitindo sua matança generalizada pelos aparatos policiais.
A direita está no poder, mas sua questionável “legitimidade” – resultante de várias fraudes, entre as quais a criminalização da esquerda promovida pela Operação Lava Jato, e a eleitoral pela via de “fake news”, entre inúmeras outras – é cada vez menor.
Também as instituições estatais foram, ao longo do tempo, cooptadas e/ou apropriadas pelas direitas, caso da República de Weimar, que preparou o terreno ao nazismo, assim como o Brasil contemporâneo que, a partir do golpe de Estado do impeachment da presidenta Dilma, em 2016, viu as instituições (Congresso Nacional, Lava Jato, MPF, PF, PGR, TCU, STJ, STE e STF, entre outras) contribuírem inteiramente com a farsa do julgamento da presidente eleita pelo voto legítimo. Portanto, é prática das direitas os golpes de Estado, seja estrito senso, pela via militar, seja por formas mais sutis, como o impeachment (golpe parlamentar) e o aparelhamento das instituições. E contemporaneamente pela manipulação digital da comunicação direta com os indivíduos: fraude e populismo pela via da “manipulação direta”.
A narrativa das direitas intenta permanentemente desconstruir a sociedade baseada em direitos, no bojo do Estado de Direito Democrático. Para tanto, historicamente jamais teve pudores em atentar, de forma violenta e/ou sutil, contra os direitos humanos (conceito que seus ativistas desprezam), contra a democracia política e social (que rejeitam), contra a maioria composta por trabalhadores (que objetivam explorar e oprimir) e contra as diversas minorias (notadamente mulheres, negros, indígenas e homossexuais, entre outras a depender do país), uma vez que essas são consideradas “desviantes” em relação à sociedade “homogênea e dócil” do ponto de vista comportamental e do poder.
Particularmente no Brasil contemporâneo, em que o chamado “centro” apoiou a direita para banir as esquerdas (leia-se PT e Lula), está pagando caro por não ter aprendido com a história.
Os retrocessos civis e civilizatórios, a destruição do Estado de Direito Democrático e do Estado de Bem-Estar Social – todos estavam em processo de consolidação no Brasil – é projeto histórico e doutrinário das direitas. Para tanto, figuras ignóbeis como Bolsonaro são fantoches nas mãos das elites conservadoras, ultraliberais (para os pobres) e sobretudo “rentistas”. Não têm limites à destruição, real e simbólica, pois representam a imagem das “trevas” (provinda do imaginário religioso que tanto pregam!).
Cabe às esquerdas, aos progressistas, aos apoiadores do Estado de Direito Democrático e da sociedade de direitos (civis/civilizatórios, políticos, sociais, econômicos/trabalhistas, ambientais e difusos) compreenderem o que significa a direita e seu modo de operar para reagirem em diversas dimensões e com estratégias e táticas diversas para evitar a fascistização da sociedade e do Estado no Brasil.
Francisco Fonseca é professor ciência política da FGV/Eaesp e da PUC/SP