O que (não) é feito em prol da valorização dos/as professores/as?
Por José Geraldo de Santana Oliveira*
Em sua mais destacada obra, “Os sertões”, publicada em 1902, no capítulo “O homem”, Euclides da Cunha afirma que o sertanejo é, antes de tudo, um forte, sendo que “A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno, a estrutura corretíssima das organizações atléticas”.
Parafraseando-o, cabe bem afirmar que o/a professor/a brasileiro/a, tal qual o sertanejo, também é forte, valente e sobrevivente. Não das intempéries do tempo e das dificuldades da lida sertaneja, como era e continua vivendo aquele; mas, sobretudo do descaso e do descompromisso dos três poderes da República, que muito falam em prol dele e quase nada fazem para tornar verdadeiras suas promessas. Sem nenhuma exceção, esses poderes só o tratam sem carinho, sem respeito e sem valor,ao contrário do que se passou com o professor personagem do magnífico filme de James Clavell, de 1967, interpretado pelo ator Sidney Poitier, que, após o turbulento começo, era tratado com carinho — daí o título do filme “Ao mestre com carinho”, com roteiro baseado na autobiografia “To Sir, with love”, de E.R. Braithwaite.
A se julgar pelas incontáveis mensagens recebidas ao dia 15 de outubro — que é dedicado aos docentes desde 1963 pelo Decreto 52.682, de 14 de outubro daquele ano, assinado pelo presidente João Goulart —, seria razoável concluir que o/a professor/a é o/a profissional mais querido/a, respeitado/a e valorizado/a do Brasil. Porém, essa conclusão não vai além de sonho de uma noite de primavera, especialmente para o/a que se ativa em escolasprivadas, de educação básica e superior, o qual, a rigor, nem de carreira usufrui, sendo, por assim dizer, sem exagero, boia-fria do ensino, com pouquíssimos direitos, quando os tem, e um rosário de obrigações. Isso, sem contar as fraudulentas modalidades de contratos de trabalho que lhe são impostas: hoje, multiplicam-se os contratos autônomos e pejotas, sem qualquer um dos direitos elencados no Art. 7º da CF.
Enquanto a vida pulsa e se materializa em sentido horário (para frente), a regulamentação da profissão de professor/a, ao reverso, corre no sentido anti-horário (para trás). A primeira norma relativa à profissão data de 15 de outubro de 1827, tendo completado a esse dia de 2024 exatos 197 anos. Somente com a CF de 1988, ou seja, 161 anos depois, é que se aprovou nova norma tão garantista.
A norma de 1827 assegurava vitaliciedade (emprego por toda vida); piso salarial, que variava de 200 mil réis a 500mil réis anuais — hoje equivalentes a, aproximadamente, R$ 24,6 mil a R$ 61,5 mil —, “com atenção às circunstâncias da população e carestia dos lugares”; e igualdade salarial entre professor e professora. No entanto, tanto a norma de 1827 quanto a de 1988 têm seu alcance restrito ao magistério público, nenhuma alusão fazendo ao magistério desenvolvido em escolas criadas pela iniciativa privada.
Vale ressaltar que, apesar de o magistério público achar-se anos-luz à frente do magistério particular em termos de direitos e garantias, também para ele não há nenhum céu de brigadeiro, como faz prova a não cumprida Meta 17 do Plano Nacional de Educação (PNE) de 2014 a 2024 (Lei 13.005/2014), que confessa o quanto o exercício do primeiro dos direitos fundamentais sociais, a educação, é subvalorizado.
Ei-la:
“META 17
Valorizar os (as) profissionais do magistério das redes públicas de educação básica de forma a equiparar seu rendimento médio ao dos (as) demais profissionais com escolaridade equivalente, até o final do sexto ano de vigência deste PNE”.
No tocante ao magistério particular, é forçoso anotar que as normas regulamentadoras da profissão são encontráveis apenas na CLT, do Art. 317 ao 324, que, em termos de garantias, limitam-se à vedação do exercício de trabalho aos domingos (Art. 319); ao cálculo da remuneração com base em quatro semanas e meia (Art. 320, § 1º); ao abono de faltas durante 9 dias por motivo de casamento e luto decorrente da morte do cônjuge, do pai, da mãe e de filho (Art. 320, §3º); e ao recebimento de salários durante o período de férias escolares, iguais aos do período de aulas, bem como no caso de dispensa sem justa causa, até o início do próximo semestre ou ano letivo (Art. 322, caput e § 3º). Nada mais. Importa dizer: esses dispositivos da CLT constituem-se nas únicas normas que regulamentam a profissão de professor/a em escolas particulares.
Vale registrar que o mais abrangente artigo da CLT — o 323, Parágrafo único, que estabelece: “Compete ao Ministério da Educação e Saúde fixar os critérios para a determinação da condigna remuneração devida aos professores bem como assegurar a execução do preceito estabelecido no presente artigo”, — foi considerado inconstitucional pelo STF, sob o argumento de não ter sidorecepcionado pela CF de 1946. Com isso, perdeu eficácia a Portaria 204/1945, que estabelecia piso salarial com base no valor das mensalidades.
Em razão dessa proposital escassez de normatização do magistério particular, àquele/a que nele se ativa são negadas todas as garantias asseguradas ao/à que se ativa no magistério público, quais sejam: estabilidade após estágio probatório de três anos; plano de carreira; piso salarial único, anualmente reajustado; e destinação de 1/3 da carga horária semanal para atividades extrassala —conforme a Lei 11.738/2008 e ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs) 4167 e 4848 —, em todos os 26 estados, no Distrito Federal e nos 5.571 municípios.
É bem de ver-se que o/a professor/a de escola privada não conta com nenhuma norma e/ou decisão judicial protetiva, relativas a esses direitos fundamentais. Todas as garantias de que goza, inclusive reajuste salarial, dependem de convenções coletivas (CCTs), que valem por dois anos, no máximo; sendo que, a cada negociação coletiva, por decisão do STF — proferida na arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) 323, ajuizada pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenen) —, começa-se da estaca zero, como se nada tivesse existido até então. Como se isso não fosse bastante, os representantes patronais têm como único propósito a retirada de direitos, sequer aceitando discutir o acréscimo de algum.
Avulta sobremaneira essa via dolorosa a jurisprudência da Justiça do Trabalho, que só tem olhos para os interesses do capital, como se constata pelo simples compulsar de algumas de suas decisões, tais como a Orientação Jurisprudencial (OJ) 244, que esvazia o contrato de trabalho, fundado na contratação por aula, dando mote para que as escolas reduzam a carga horária semanal e consequentemente os salários sem maiores formalidades.
Eis o que diz tal OJ:
“PROFESSOR. REDUÇÃO DA CARGA HORÁRIA. POSSIBILIDADE. A redução da carga horária do professor, em virtude da diminuição do número de alunos, não constitui alteração contratual, uma vez que não implica redução do valor da hora-aula”.
Há dezenas de reiteradas decisões do TST negando o direito ao recebimento de adicional por atividades extraclasse, tais como preparação de aulas e correção de provas:
“PROCESSO Nº TST-RR-43-45.2012.5.04.0012
A C Ó R D Ã O (7ª Turma) GMDAR/cm/JFS RECURSO DE REVISTA. NÃO REGIDO PELA LEI 13.015/2014. PROFESSOR. ATIVIDADE EXTRACLASSE. HORA-ATIVIDADE. ART. 320 DA CLT. Esta Corte Superior, ao interpretar o artigo 320 da CLT juntamente com o disposto na Lei nº 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), firmou o entendimento de que na remuneração mensal do professor está compreendido não apenas as aulas ministradas, mas também o trabalho relacionado à preparação de aulas e correção de trabalhos. Precedentes. Violação do art. 320 da CLT configurada. Recurso de revista conhecido e provido.”
Não é demais lembrar que ao/à professor/a público/a é assegurada, como já dito, a destinação de um terço de sua carga horária para essas atividades, estudo e planejamento.
Dentre as muitas decisões proferidas pelo TST que demonstram desapreço pelo exercício do magistério particular e desconhecimento do que é o cotidiano docente em uma instituição de ensino privado, destaca-se a abaixo transcrita, que, muito embora não represente o pensamento majoritário do tribunal, é real:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. EQUIPARAÇÃO SALARIAL. Impõe-se dar provimento ao agravo quando satisfeitos os pressupostos de cabimento do recurso que se pretende destrancar. Agravo de instrumento conhecido e provido. RECURSO DE REVISTA. EQUIPARAÇÃO SALARIAL. PROFESSORES. DISCIPLINAS DIVERSAS. O art. 461 da CLT prevê a igualdade de salário na hipótese de ser idêntica a função exercida pelos empregados. É assim que, apesar de a aparente identidade de funções repousar no fato de autor e paradigma serem ambos professores do mesmo curso e das mesmas turmas, não há como reconhecer a identidade funcional se as disciplinas por eles ministradas são distintas. Se é certo, por um lado, que não cabe estabelecer juízo de valor quanto à importância de cada disciplina para a formação do aluno de determinado curso, por outro lado também não se pode concluir que sejam idênticas as funções dos professores cujas atividades laborais apresentam objetos diversos. Recurso de revista conhecido e provido.” (TST, 2ª T., RR – 100-39.2011.5.02.0017, Rel. Des. Conv. Gilmar Cavalieri, DEJT 05.09.2014).”
Vale salientar que se acha arraigado no seio da sociedade, até mesmo dos sindicatos, o injustificável e lesivo entendimento de que professor/a de ensino fundamental deve ganhar mais que o/a de educação infantil; o/a de ensino médio, mais do que o/a de ensino fundamental; e o/a de ensino superior, mais do que o/a de ensino médio. Isso é facilmente constatado em todas as CCTs. Portanto, essa decisão judicial não está órfã.
As CCTs, para além dessa diferenciação desprovida de sentido, de um modo geral, consagram a duração das aulas ministradas na educação infantil e na primeira fase do ensino fundamental em 60 minutos, enquanto, na segunda fase do ensino fundamental, no médio e no superior, a duração é de 50 minutos. Com isso, quem atua na educação infantil e no ensino fundamental I trabalha 10 minutos a mais, equivalente a 20% do tempo, sem qualquer remuneração.
Ante tudo o que foi dito, e o que não foi, por falta de espaço, pode-se cravar que, em sentido oposto aos dos enigmáticos versos da música “O que foi feito devera”, de Fernando Brant e Milton Nascimento — “Falo assim sem saudade/ Falo assim por saber/ Se muito vale o já feito/ Mais vale o que será” —, o que foi feito em prol da valorização do professor/a pouco vale. Há uma montanha a ser conquistada, para que isso seja verdadeiro. Essa conquista será, sim, possível, se fizermos nossos os instigantes versos de Mário Quintana, no “Poeminho do contra”:
“Todos esses que aí estão
Atravancando meu caminho,
Eles passarão…
Eu passarinho!”
*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee