O que o Brasil pode aprender com o resultado das eleições chilenas

Embora o Brasil não compartilhe fronteiras com o Chile, compartilha uma experiência política comum: a necessidade de fazer um projeto democrático vencer, em 2026, frente a uma direita cada vez mais próxima do extremismo

Helena Chagas Salvador*

Mais importante do que os acontecimentos em si é a forma como nos lembramos deles. Essa é uma questão central da psicologia, da filosofia e, sobretudo, da democracia em tempos de ascensão de projetos autoritários. O que chamamos de memória democrática é a construção narrativa dos valores compartilhados que escolhemos lembrar para que continuem orientando o avanço da democracia em nossos países.

No caso chileno, duas disputas de memória ajudam a explicar a vitória da extrema direita e oferecem lições importantes ao Brasil que, embora não compartilhe fronteiras com o Chile, compartilha uma experiência política comum: a necessidade de fazer um projeto democrático vencer, em 2026, frente a uma direita cada vez mais próxima do extremismo.

A memória – ou o esquecimento – foi testada duas vezes pelos chilenos nessas eleições. A primeira está relacionada aos acontecimentos do Estallido Social de 2019, as maiores manifestações massivas do país, seguidas pelo processo de elaboração de uma nova Constituição, que acabou rejeitada. Ancorado em ideais de superação do neoliberalismo e das heranças da ditadura militar, esse processo foi conduzido majoritariamente pela esquerda, a mesma que, em meio a esse período turbulento, elegeu Gabriel Boric à presidência.

Apesar da intensidade da participação social e da emergência de debates inéditos na sociedade latino-americana durante a constituinte, o sentimento que se consolidou no debate público foi o de fracasso. Essa narrativa foi impulsionada principalmente pela direita contra a esquerda. Esta, por sua vez, não conseguiu ressignificar o processo: tinha um país para governar. Do Estallido restaram poucas lembranças positivas e um grande vazio de memória que José Antonio Kast, que acaba de ser eleito presidente, soube preencher com insultos, ódio e uma campanha vitoriosa.

O segundo esquecimento é ainda mais profundo. Em 2021, Kast surgiu no cenário latino-americano como um extremista de direita: antidemocrático, violento, indiferente às memórias do terror da ditadura. No país que fez da defesa da memória um pilar para enfrentar os crimes do regime militar, bastaram quatro anos para que ele passasse a ser apresentado como um político “moderado”, um direitista capaz de enfrentar a violência, preocupação central da cidadania chilena, assim como no Brasil e em grande parte da América Latina. Nesse cenário, Jeanette Jara, ex-ministra do Trabalho de Boric e responsável pela aguardada reforma da previdência, não conseguiu transformar os resultados concretos em impulso eleitoral suficiente.

É aqui que o Brasil tem muito a aprender. Uma candidatura com histórico de proximidade com o autoritarismo e discursos abertamente antidemocráticos conseguiu se posicionar como uma direita “moderada” e competitiva. A falta de memória foi fundamental para apresentar alguém antes visto como antidemocrático como uma suposta solução para a própria democracia chilena.

A forma como estamos escrevendo hoje as narrativas de avanço democrático é o que nos será cobrado nas próximas eleições. Construir um futuro compartilhado exige compartilhar também uma memória comum. Isso demanda trabalho contínuo de comunicação: contar resultados, reconhecer desafios e, por que não, assumir erros. Trata-se de uma narrativa mais construtiva do que reativa, capaz de produzir memória e, sobretudo, de evitar esquecimentos perigosos, assim como ocorreu após o Estalido e a Convenção Constitucional Chilena. É aí que começa, de fato, uma campanha pela defesa da democracia.

Como afirmou o cientista político chileno Thomas Leighton, em entrevista à revista Nueva Sociedad, “no Chile, a direita chilena avançou dividida, enquanto a esquerda resistiu unida”. Sair do lugar da resistência para o do avanço exige um exercício permanente de memória: lembrar quem, dentro dessa direita fragmentada, já atentou contra as regras do jogo democrático, e por que essas figuras não podem ser normalizadas nas narrativas que desejamos construir. Isso requer uma democracia unida para disputar eleições que não sejam apenas polarizadas e desmobilizadoras, especialmente para os setores progressistas. O processo eleitoral chileno tem muito a nos ensinar e pode ser um primeiro passo para um exercício mais amplo de escrita da memória democrática latino-americana na resistência ao autoritarismo.

*Helena Chagas Salvador é Jornalista, cientista política e mestranda do Programa de Integração da América Latina da Universidade de São Paulo.

Fonte
Diplomatique

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