O samba se despede de sua madrinha
O sambista Zeca Pagodinho contava, em dezembro, que para ele era muito difícil ver sua “madrinha”, Beth Carvalho (Rio de Janeiro, 1946), prostrada em uma cama. Mas um dia, depois de uma gravação, decidiu ir visitá-la no hospital com um grupo de músicos. Carregados de cerveja, encheram o quarto de álcool e alegria e deram de presente a Beth sua penúltima roda de samba.
A cantora morreu terça-feira de uma infecção generalizada, depois de mais de uma década com graves problemas na coluna, naquele quarto de hospital. O samba chora sua partida como a de uma mãe. Passou mais de cinquenta anos cantando e não parou de fazer isso até seu último suspiro. “Por que pararia?”, perguntava-se. Mal podia se mover, mas era tão difícil freá-la que começou a fazer shows deitada.
Beth se foi cantando e com o título de madrinha do samba gravado em seus obituários. No final dos anos 70 já era conhecida em todo o Brasil, mas nunca deixou de frequentar os bares e os encontros de sambistas nos castigados subúrbios do Rio de Janeiro. Foi assim que descobriu e lançou artistas como Zeca Pagodinho, Arlindo Cruz, Jorge Aragão e o grupo Fundo do Quintal. Artistas-revelação que incorporaram novos instrumentos e protagonizaram a última revolução da samba nos anos oitenta. Beth foi a madrinha desse movimento ao levá-lo para seus discos e para as gravadoras.
“É possível que se não fosse a abertura de Beth para as novas dinâmicas do samba, um dos momentos mais transformadores da história do gênero tivesse ficado nos escaninhos da memória musical brasileira”, escreveu após sua morte o historiador Luiz Antonio Simas, especialista na cultura popular do Rio de Janeiro. “Essa é só uma das contribuições de Beth Carvalho à cultura do Brasil”, elogiou Simas, amigo e admirador da cantora.
Beth ajudou a abrir as portas do futuro do samba, mas também contribuiu para recuperar alguns dos verdadeiros gênios desse gênero musical. Cartola e Nelson Cavaquinho, condenados a morrer pobres e sem aplausos, conquistaram os ouvidos de todos os brasileiros, em parte, graças ao empenho da cantora para resgatá-los.
Era uma mulher valente e irrompeu em um mundo pensado para os homens. Foi pioneira e parte do que ela considerou uma revolução feminista. Ela, Clara Nunes e Alcione Nazareth foram as primeiras artistas brasileiras que venderam tantos ou mais discos quanto os homens. “Quebramos um tabu”, recordava. Beth frequentava os círculos sofisticados da bossa nova, era mais do calçadão de Ipanema do que de favela, mas aquilo não lhe bastava e acabou abraçando os ritmos do subúrbio. “O samba é de esquerda, do povo, que sofre, que sabe o que é passar fome. Eu me sinto muito honrada de formar parte disso”, contou Beth em uma entrevista ao EL PAÍS em março de 2016. Era a branca mais respeitada em um mundo de negros.
Beth se martirizava com as dores, mas também com a política do Brasil. Era admiradora do socialismo de Fidel Castro e de Chávez, acreditava em conspirações dos Estados Unidos e sofria com os devires do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva nos tribunais. Preocupava-se com o discurso homofóbico e racista que as redes sociais multiplicaram e sempre defendeu uma política para os pobres. Suas ideias não tinham lugar no Brasil do Jair Bolsonaro. Sua morte não deixa órfãos apenas seus “afilhados” mais diretos, mas todo um país que tem a sensação de estar se despedindo do melhor que tem.
Nesta quarta-feira, seu time de futebol, o Botafogo, abriu as portas de sua sede para que toda a escola de samba da Mangueira, pela qual Beth suspirava, os sambistas e seus amigos de toda a vida se despedissem de sua madrinha. Lá estava Zeca Pagodinho, uma vez mais, agitando aquela que, desta vez sim, foi sua última roda de samba.