O Supremo Tribunal que não acredita na Constituição
“Urge que o movimento sindical laboral e todos quantos pugnam pela defesa dos valores sociais do trabalho cerrem fileira em defesa dos direitos fundamentais sociais e da Justiça do Trabalho, que são alvos da inexplicável cruzada do STF”
Por José Geraldo de Santana Oliveira*
No ensaio “A decadência da mentira”, publicado em 1891, o escritor irlandês Oscar Wilde afirma que a vida imita a arte muito mais do que é por ela imitada.
Pois bem! Passados 112 anos da publicação desse ensaio, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem se esmerado em dar razão à genial ironia nele contida com sua inusitada, destemperada e cotidiana declaração de guerra à Justiça do Trabalho, por ela cumprir seu dever constitucional de fazer valer os direitos fundamentais sociais insculpidos no Art. 7º da Constituição Federal (CF).
O caso concreto sob destaque assemelha-se à peça de Ésquilo, “Prometeu acorrentado”. Nessa tragédia, o titã Prometeu roubou o fogo dos deuses e deu-o aos humanos, para que pudessem dispor de meios adequados de sobrevivência, nos primórdios de sua trajetória.
Vingativo como o STF, Zeus, o principal Deus do Olimpo, decidiu punir eternamente Prometeu, acorrentando-o e o tornando presa fácil de uma águia que lhe dilacerava o fígado ao longo do dia. Porém, este renascia e se desenvolvia, plenamente, durante a noite.
Essa peça representa, no caso sob discussão, a arte. Sua imitação pelo STF, em sede de reclamações que se encontram totalmente banalizadas, dá-se com as reiteradas cassações de centenas de decisões da Justiça do Trabalho, que insiste em continuar reconhecendo a plenitude do quarto fundamento da República — qual seja os valores sociais do trabalho (Art. 1º, IV, da CF) — e da valorização do trabalho humano e da função social da propriedade, fundamentos maiores da ordem econômica (Art. 170 da CF).
É bem de ver-se que a demonizada atuação da Justiça do Trabalho limita-se a dar efetividade ao Art. 7º da CF, que dispõe: “são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social”, e que são elencados em 34 incisos.
Importa dizer: a Justiça do Trabalho não rouba nada de ninguém, apenas e tão somente humaniza as relações entre capital e trabalho, que, em conformidade com os citados comandos constitucionais, acham-se em pé de absoluta igualdade.
Todavia, o STF, que parece somente ter olhos para o capital, para além de sistematicamente cassar as decisões desse jaez que digam respeito à relação de emprego de trabalhadores em aplicativos, pejotas e autônomos, ainda, inexplicavelmente, execra a Justiça do Trabalho que as proferiu.
Essa assertiva comprova-se pelas afirmações abaixo, todas emanadas de ministros do STF:
Em voto proferido na reclamação (RCL) 53688, o ministro Gilmar Mendes, assevera:
“[…] Ao fim e ao cabo, a engenharia social que se busca [por parte da Justiça do Trabalho], não passa de uma tentativa inócua de frustrar a evolução dos meios de produção […] O que se observa no contexto global é uma flexibilização das normas trabalhistas. Se a Constituição não impôs um modelo específico de produção, não faz qualquer sentido manter as amarras de um modelo verticalizado, fordista, na contramão de um movimento global de descentralização”.
Na mesma esteira, o presidente Luís Roberto Barroso, na RCL 56285, sustenta:
“O contrato de emprego não é a única forma de se estabelecerem relações de trabalho. Um mesmo mercado pode comportar alguns profissionais que sejam contratados pelo regime da CLT e outros profissionais cuja atuação tenha um caráter de eventualidade ou maior autonomia. Desse modo, são lícitos, ainda que para a execução da atividade-fim da empresa, os contratos de terceirização de mão de obra, parceria, sociedade e de prestação de serviços por pessoa jurídica (pejotização), desde que o contrato seja real, isto é, de que não haja relação de emprego com a empresa tomadora do serviço, com subordinação, horário para cumprir e outras obrigações típicas do contrato trabalhista, hipótese em que se estaria fraudando a contratação.”
O ministro Alexandre Moraes, no julgamento da RCL 60347, pela 1ª Turma, aos 5 de dezembro corrente, assestou em seu voto:
“A questão de teoricamente, ideologicamente, academicamente, (a Justiça do Trabalho) não concordar, não justifica a insegurança jurídica que vem gerando diversas decisões. O Plenário já decidiu na ADC 48 que a CF não impõe uma única forma de estruturar a produção. O princípio da livre iniciativa garante aos agentes econômicos liberdades para eleger suas estratégicas empresariais dentro do marco vigente”.
O ministro Cristiano Zanin, por sua vez, no julgamento da RCL 60347, afirmou que os precedentes desrespeitados pela Justiça do Trabalho “consagram a atividade econômica e de organização de atividades produtivas. Bem assim, que “Esses precedentes consideram lícitas outras formas de organização da produção e da pactuação da força de trabalho. Não vejo uma relação de atividade típica da CLT, mas, sim, outra forma de contratação, que eventualmente pode merecer uma nova legislação que discipline a matéria, mas não na forma da CLT”.
Já o ministro Luiz Fux, na mesma RCL, além de pedir ao ministro relator, Alexandre Moares, que oficie o CNJ sobre a “disfuncionalidade” da Justiça do Trabalho — o que foi prontamente acatado —, assentou:
“Essa matéria está mais do que pacificada. Não é nada louvável que tenhamos tanta coisa para fazer e tenhamos esse número de reclamações. Entendo, até como uma questão de ordem, que oficie o Conselho Nacional de Justiça e que possamos devolver todas os processos de reclamação para que apliquem a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal”.
No julgamento referenciado, a única a manifestar preocupação com os danos sociais que advirão desse rompimento de todas as fronteiras da uberização do trabalho foi a ministra Cármen Lúcia, que, apesar de reconhecer que “o Brasil adotou outros modelos de trabalho. Então a chamada uberização e pejotização entronizou-se na vida das pessoas”, ponderou:
“[…] porque as pessoas que ficam nesse sistema de ‘uberização’ não têm direitos sociais garantidos na Constituição, por ausência de serem devidamente suportados por uma legislação que diga como será a seguridade social para eles”.
Esse entendimento do STF disseminou-se de tal modo que até o ministro Edson Fachin, que, após a aposentadoria da ministra Rosa Weber, era a única voz dissonante, no julgamento da RCL 61492 sucumbiu-se, assentando em seu voto:
“Vinha defendendo a manutenção da competência da Justiça do Trabalho para reconhecimento de vínculo quando essa Justiça especializada verifica os requisitos dos artigos 2º e 3º da CLT, pois tal situação, sob nossa perspectiva, não fora objeto de debate quando do julgamento da ADPF 324. Ademais, nos julgamentos dos paradigmas, rechaçou-se a presunção da fraude pela terceirização, mas se anotou que o seu ‘exercício abusivo’ poderia violar a dignidade do trabalhador, de modo que caberia, assim, à Justiça Trabalhista, diante da primazia da realidade, reconhecer os elementos fáticos que denotam a relação de emprego. Entretanto, ambas as Turmas deste STF firmaram compreensão pela possibilidade de, via reclamação constitucional, encaminhar tais discussões à Justiça Comum em atenção às teses vinculantes colocadas pela ADPF 324 e pelo Tema 725”.
O danoso entendimento do STF quanto a infinitude da terceirização sem fronteiras hoje prevalecente, de modo absoluto, por meio do qual a livre iniciativa pode tudo e os valores sociais do trabalho, que com ela compartilha, em absoluta igualdade de condições, conforme o Art. 1º, IV, da CF, nada podem, encerra duas situações em a vida imita a arte, gerando tragédias sociais.
A primeira, é encontrável no sempre emblemático e atual romance de Raul Pompeia, “O Ateneu”, de 1879, e é proporcionada ao leitor pelo professor Venâncio, que fazia o cerimonial do Ateneu. Eis, em síntese, o que dizia de Aristarco, o diretor:
“O mestre, perorou Venâncio, é o prolongamento do amor paterno, é o complemento da ternura das mães, o guia zeloso dos primeiros passos, na senda escabrosa que vai às conquistas do saber e da moralidade. Experimentado no labutar cotidiano da sagrada profissão, o seu auxílio ampara-nos como a Providência na Terra; escolta-nos assíduo como um anjo da guarda; a sua lição prudente esclarece-nos a jornada inteira do futuro. Devemos ao pai a existência do corpo; o mestre cria-nos o espírito (sorites de sensação), e o espírito, é a força que impele, o impulso que triunfa, o triunfo que nobilita, o enobrecimento que glorifica, e a glória é o ideal da vida, o louro do guerreiro, o carvalho do artista, a palma do crente! A família, é o amor no lar, o estado é a segurança civil; o mestre, com amor forte que ensina e corrige, prepara-nos para a segurança íntima inapreciável da vontade. Acima de Aristarco — Deus! Deus tão-somente; abaixo de Deus — Aristarco” (Raul Pompeia, em O Ateneu).
Guardadas as proporções de tempo, lugar, cenário e personagens, o que o professor Venâncio dizia de Aristarco é o que STF diz da livre iniciativa. Para a Suprema Corte, essa e sua vontade acham-se acima de tudo; é soberana inquestionável no mundo social.
A segunda pode ser buscada no título do conto de João Ubaldo Ribeiro, “O santo que não acreditava em Deus”, pois o STF é o guardião da Constituição Federal, por força do que dispõe seu Art. 102, mas nela não acredita quanto aos valores sociais do trabalho (Art. 1º, IV), à valorização do trabalho humano (Art. 170, caput) e ao primado do trabalho (Art. 193), como patenteiam as reiteradas decisões sobre terceirização.
A questão nuclear, que propositadamente passa ao largo do STF, não é se todas as relações de trabalho devem subsumir ao manto protetivo da CLT, que nem é mais tão protetivo a partir da reforma trabalhista (Lei 13.467/2017). É, isso sim, a da aplicação do manto protetivo, de largo alcance social, disposto no Art. 7º da CF, distribuído em 34 incisos.
O caput do Art. 7º, desprezado pelo STF, assenta, como já dito: “São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social”.
Como se constata pela literalidade do comando constitucional, os direitos nele elencados são extensivos a todos trabalhadores, urbanos e rurais, independentemente da modalidade de relação de trabalho.
Portanto, à luz das garantias constitucionais, o que importa é a garantia da extensão desses direitos a todos quantos vivam do trabalho, pouco importando se são celetistas, uberistas, pejotas e/ou autônomos etc.
Contudo, desafortunadamente, isso não toca o STF, que se contenta em declarar que não são celetistas, não dedicando uma palavra sobre de quais direitos usufruem, o que leva as empresas descompromissadas com os valores sociais do trabalho e com a função social da propriedade — e são muitas ! — a concluir que não gozam de nenhum direito.
A jurisprudência do STF sob comentário, que pisoteia a CF, igualmente faz tábula rasa dos seus próprios julgados. A título de ilustração, traz-se, aqui, o que assentou o ministro Roberto Barroso, na ementa do Acórdão do RE 590415, acolhido pelos demais ministros”
“[…]
- No âmbito do direito coletivo do trabalho não se verifica a mesma situação de assimetria de poder presente nas relações individuais de trabalho. Como consequência, a autonomia coletiva da vontade não se encontra sujeita aos mesmos limites que a autonomia individual. 4. A Constituição de 1988, em seu artigo 7º, XXVI, prestigiou a autonomia coletiva da vontade e a autocomposição dos conflitos trabalhistas, acompanhando a tendência mundial ao crescente reconhecimento dos mecanismos de negociação coletiva, retratada na Convenção n. 98/1949 e na Convenção n. 154/1981 da Organização Internacional do Trabalho. O reconhecimento dos acordos e convenções coletivas permite que os trabalhadores contribuam para a formulação das normas que regerão a sua própria vida”.
Na fundamentação do voto, o ministro relator assevera:
“II. LIMITAÇÃO DA AUTONOMIA DA VONTADE DO EMPREGADO EM RAZÃO DA ASSIMETRIA DE PODER ENTRE OS SUJEITOS DA RELAÇÃO INDIVIDUAL DE TRABALHO
- O direito individual do trabalho tem na relação de trabalho, estabelecida entre o empregador e a pessoa física do empregado, o elemento básico a partir do qual constrói os institutos e regras de interpretação. Justamente porque se reconhece, no âmbito das relações individuais, a desigualdade econômica e de poder entre as partes, as normas que regem tais relações são voltadas à tutela do trabalhador. Entende-se que a situação de inferioridade do empregado compromete o livre exercício da autonomia individual da vontade e que, nesse contexto, regras de origem heterônoma – produzidas pelo Estado – desempenham um papel primordial de defesa da parte hipossuficiente. Também por isso a aplicação do direito rege-se pelo princípio da proteção, optando-se pela norma mais favorável ao trabalhador na interpretação e na solução de antinomias.
- Essa lógica protetiva está presente na Constituição, que consagrou um grande número de dispositivos à garantia de direitos trabalhistas no âmbito das relações individuais. Essa mesma lógica encontra-se presente no art. 477, §2º, da CLT e na Súmula 330 do TST, quando se determina que a quitação tem eficácia liberatória exclusivamente quanto às parcelas consignadas no recibo, independentemente de ter sido concedida em termos mais amplos.
- Não se espera que o empregado, no momento da rescisão de seu contrato, tenha condições de avaliar se as parcelas e valores indicados no termo de rescisão correspondem efetivamente a todas as verbas a que faria jus. Considera-se que a condição de subordinação, a desinformação ou a necessidade podem levá-lo a agir em prejuízo próprio. Por isso, a quitação, no âmbito das relações individuais, produz efeitos limitados. Entretanto, tal assimetria entre empregador e empregados não se coloca – ao menos não com a mesma força – nas relações coletivas”.
Como se colhe do cotejo entre os contraditórios entendimentos emanados do mesmo Tribunal e a realidade social, facilmente se conclui que essa só se agravou. Ou seja, nunca dantes a assimetria (desigualdade) nas relações individuais de trabalho foi tão patente e perversa. Porém, sem o quê nem porquê, aquela mudou-se, como que a repetir certo presidente da República que, diante das contradições entre o que escreveu como sociólogo e o que praticou com mandatário maior do Poder Executivo, pediu para que esquecessem o que ele escrevera.
Assim age o STF, como que a dizer: como hoje os interesses do capital são outros, não vale mais o que era válido em 2015, muito embora a realidade social só tenha recrudescido.
Metaforicamente falando, se isso é guardar a CF, melhor seria se ela não fosse guardada. Com certeza, ela estaria mais segura quanto aos direitos fundamentais sociais, se não fosse guardada pelo STF.
Diante desse quadro dantesco, urge que o movimento sindical laboral e todos quantos pugnam pela defesa dos valores sociais do trabalho cerrem fileira em defesa dos direitos fundamentais sociais e da Justiça do Trabalho, que são alvos da inexplicável cruzada do STF, em defesa cega da livre iniciativa, como se, para além delas, não existisse ou não tivesse valor.
Se se deixar sucumbir a Justiça do Trabalho, com ela vão-se também os direitos e o único bastião institucional de sua defesa. Sem Justiça do Trabalho forte, autônoma e respeitada, especialmente pelos demais poderes da República, o Estado Democrático de Direito não passa de pálida figura sem qualquer concretude.
Ao debate!
À luta!
*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee