O veto que nos faz sangrar
Por Táscia Souza*
O dia 11 de janeiro de 2021 foi o dia em que menstruei pela última vez. Está registrado num aplicativo de celular, essas facilidades e loucuras da vida contemporânea. Não foi nesse último fluxo menstrual, contudo, prestes a completar nove meses, em que me flagrei pensando ontem, 7 de outubro, enquanto me indignava com as notícias e, ao mesmo tempo, sentia meu filho se estirar e pressionar, de dentro para fora, os músculos, a pele e os vasos sanguíneos da minha barriga. Foi em outro, nos meus 17 anos, quando o sangue desceu tão intenso que vazou pelas laterais do absorvente, atravessou minha calça jeans e sujou a cadeira na qual eu me sentava no fundo da sala de aula do 3° ano do ensino médio. Pensei na vergonha, no casaco de moletom amarrado às pressas na cintura, no pedido desesperado feito à coordenação para que eu pudesse faltar à aula seguinte, de biologia, “porque estou passando muito mal”. Pensei na volta para casa em pé dentro de um ônibus cheio de assentos vazios, com medo de fazer uso de um deles e o sangue vazar pelo moletom também. Pensei no olhar curioso, que mais imaginei do que vi, do motorista pelo retrovisor (motorista que me conhecia pelo nome, assim como a todos os meus colegas que pegavam diariamente aquela linha), intrigando-se, como numa peça de Nelson Rodrigues: “por que essa garota não senta?”.
Essa menina que eu fui era uma adolescente de classe média, aluna de uma escola particular dirigida por freiras, e tinha acesso fácil a absorventes descartáveis: na farmácia, em casa, dentro da mochila. Provavelmente, até na secretaria da escola, se o tivesse pedido (e o desastre já não tivesse acontecido). Um acesso que milhões de meninas neste país, adolescentes de classes mais baixas, alunas de escolas públicas, não têm.
Pobreza menstrual é o nome que se dá à falta de recursos para a compra de produtos de higiene e outros itens necessários ao período da menstruação feminina. Na carência de absorventes ou coletores menstruais, pessoas que menstruam são forçadas a improvisar com papel higiênico, pedaços de pano, jornal, folhas de árvores e tudo o mais que se possa imaginar.
Segundo noticiado pela imprensa, uma enquete sobre saúde e dignidade menstrual realizada pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e pelo Fundo de População das Nações Unidas (Unfpa), por meio da plataforma U-Report, revelou que entre adolescentes e jovens que menstruam, no Brasil, 35% já passaram por alguma dificuldade por não ter acesso a absorventes, copinhos, água ou outra forma de cuidar da higiene menstrual. Ao mesmo levantamento, 62% afirmaram que já deixaram de ir à escola, ou outros lugares por causa da menstruação.
O Projeto de Lei 4.968/2019, de autoria da deputada Marília Arraes (PT-PE) e aprovado pelo Senado em 14 de setembro, pretendia minimizar esse problema, instituindo o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual, com fornecimento de absorventes higiênicos nas escolas públicas que ofertam anos finais do ensino fundamental e ensino médio. Foi isso o que Jair Bolsonaro, que tantos tiveram coragem — na falta de um substantivo mais preciso e bem menos positivo — de colocar sentado na cadeira da Presidência da República, vetou. E não é apenas dignidade o que ele impede a tantas meninas brasileiras. Há algo de bem mais sádico por trás. Bolsonaro e o bolsonarismo mostram, mais uma vez, num país que é um dos recordistas mundiais em número de feminicídios, que, embora sintam nojo do nosso sangue, gostam de abandonar corpos de meninas e mulheres a sangrar.
Meu filho, que ainda não nasceu, chama-se Tito, em homenagem a uma das vítimas da tortura e do martírio praticados pela ditadura civil-militar que Bolsonaro tanto aclama. Na mesma época, mulheres torturadas como ele eram colocadas nuas diante de seus torturadores, que debochavam do leite materno e do sangue menstrual. Conforme o artigo “Violações dos direitos humanos das mulheres na ditadura”, de Maria Amélia de Almeida Teles (ela mesma uma vítima), no “DOI-Codi/SP, em janeiro de 1973, havia uma conversa entre as mulheres ali encarceradas de que os torturadores não gostavam de estuprar mulheres menstruadas. Então, guardávamos um absorvente usado e que estava sujo de sangue e o colocávamos rapidamente dentro da calcinha quando éramos levadas para os interrogatórios, que na realidade eram sessões de tortura”. Outra vítima bastante conhecida, a ex-presidenta Dilma Rousseff, já contou que, após ser torturada, chegou a ter uma hemorragia no útero. “Hemorragia mesmo, que nem menstruação. Eles tiveram que me levar para o Hospital Central do Exército. Encontrei uma menina da ALN (Ação Libertadora Nacional). Ela disse: ‘Pula um pouco no quarto para a hemorragia não parar e você não ter de voltar’.”
Todas as características femininas — a gestação, a maternidade, a lactação e, claro, a menstruação — já foram usadas como forma de tortura. E, ainda que de outras formas, continuam sendo. O veto de Bolsonaro ao PL que visa combater a pobreza menstrual nas escolas públicas é uma violência. A ojeriza conservadora e fundamentalista a qualquer abordagem a questões de gênero na educação brasileira é outra. Aprovar o retorno de gestantes — um dois grupos mais vulneráveis ao coronavírus — ao trabalho presencial num momento em que a pandemia da Covid-19 ainda está longe de estar totalmente sob controle é mais uma. Não assegurar condições para que mulheres trabalhadoras sigam amamentando seus filhos também é.
No Brasil de Bolsonaro, quanto menos autonomia tivermos, quanto menos formos donas de nossos fluidos e de nossos corpos, e quanto mais sangramos caladas — nas escolas, nos ônibus, na roupa, nas ruas, nas prisões, em praça pública —, melhor.
*Táscia Souza é jornalista da Contee