“Onda conservadora é regresso civilizacional”
Marco Lucchesi, presidente da ABL, classifica recentes ataques à liberdade de expressão na arte e na literatura de “sopro de barbárie”. Em entrevista, ele se diz contrário ao Escola sem Partido e a favor da pluralidade.
A recente onda de movimentos conservadores e moralistas que têm buscado reprimir obras de arte no Brasil é um “sopro de barbárie”, desprovida de inteligência e de orientação, afirma o presidente da Academia Brasileira de Letras (ABL), Marco Lucchesi.
Escritor, poeta, professor, ensaísta e tradutor, Lucchesi também se opõe à proposta Escola sem Partido. “Na escola e nas universidades, devemos ver posições diferentes […] Uma pessoa pode concordar ou não com Marx. Mas ele é incontornável. É parte da história do Ocidente”, exemplifica em entrevista à DW Brasil.
Aos 54 anos, Lucchesi já publicou cerca de 50 livros, fala aproximadamente 20 idiomas e, em dezembro do ano passado, se tornou o presidente mais jovem da ABL nos últimos 70 anos. Lucchesi ocupa uma cadeira na academia desde desde 2011.
Na entrevista, ele também comenta a atual situação do mercado literário e rechaça a ideia de redução da maioridade penal. O “imortal” da Academia Brasileira de Letras visita regularmente presídios e centros de ressocialização de jovens para falar sobre literatura.
DW: Mesmo em comparação com países socialmente próximos, o Brasil fica atrás em termos de leitura de livros. Por que o brasileiro lê tão pouco?
Marco Lucchesi: Este é o grande desafio atual. Antigamente, havia uma relação afetiva. Não é uma matéria de saudosismo, mas de pensamento, de afeto. Nós só não estamos piores, porque há no Brasil uma revolução silenciosa. Refiro-me a professores que estão na ponta do processo e que, apesar de pouco valorizados, fazem trabalhos surpreendentes. Por isso, alunos do Piauí recebem medalhas na Olimpíada Brasileira de Matemática, por exemplo. Eles [os professores] estão trabalhando intensamente, contra tudo e contra todos.
Grandes redes de livrarias no Brasil estão fechando unidades. Isso é reflexo do meio digital, da crise econômica ou de um menor interesse por livros? Quais os efeitos disso?
É um pouco disso tudo. O sistema literário brasileiro, que já foi um pouquinho mais vigoroso, hoje se vê ameaçado. Além disso, as escolas estão falhando. Preparam, essencialmente, o aluno para o Enem [Exame Nacional do Ensino Médio]. Isso é incontornável, mas não pode ser tão limitado. Alguns editores dizem que estamos regredindo para o quadro dos anos 80. Eu não acho que chegamos a tanto. Mas, hoje, são as pequenas editoras que essencialmente levam adiante a poesia. Precisamos de incentivos ao livro e à livraria.
A literatura retrata aspectos da sociedade, personagens e o momento histórico. Qual livro seria, segundo a sua perspectiva, o retrato do Brasil atual?
Eu costumo usar uma metáfora: eu diria que o Brasil é o próprio livro. Esse livro ainda não está escrito. E terá vários autores. Todos farão parte e se chamará A República. Tem que ser plural, policromático e com todas as vozes. Ele está em construção. Quando falamos sobre paz atualmente no Brasil, temos que saber que a paz não cairá do céu. Ela começa pela justiça social. O combate à corrupção é importante. Não há dúvida. Mas questão fundamental hoje é o combate à desigualdade. Ela é anterior a tudo. Ou se faz isso ou o resto é maquiagem.
Nos últimos anos, temos visto questionamentos e críticas à arte no Brasil. Nossa literatura é muitas vezes sexualizada, com relações de adultério, por exemplo. Essa onda conservadora e moralista pode impactar a produção de livros ou mesmo tirar os clássicos literários dos nossos currículos, como Grande Sertão Veredas, de Guimarães Rosa, e Dom Casmurro, de Machado de Assis?
Isso é um regresso civilizacional. Inenarrável. A obra é autotélica. Ela tem uma finalidade em si própria. Ela não está colocada sub judice. A literatura, por exemplo, pode ser boa ou má, mas não santa ou perversa. Esses movimentos são um sopro de barbárie. A barbárie, como tal, é desprovida de inteligência, desprovida de sentido e de orientação. Ela quer destruir, mas não sabe o que fazer. Ela só é alguma coisa momentaneamente pelo uso da força, mas a força também é desprovida de inteligência. Isso tudo aborrece, desanima, perturba.
Por que desanima?
Desanima, porque há um diálogo deplorável, de que você não deveria tomar parte. Então, temos que lembrar a defesa do direito de expressão, que a literatura é ficção e pode fazer o que bem entender. Senão a gente cai num mundo esquizofrênico. Já temos problemas demais para resolver.
O que explica a força do conservadorismo e dos chamados bons costumes? E qual o risco de se ter um projeto político muito alicerçado por questões religiosas?
O Estado é laico. Ponto. Essa é uma grande questão, apesar de que, inclusive na televisão aberta, há características de um Estado teocrático. Esse tipo de política acaba construindo valores que não são de abrangência e de cultura da paz. Ela [a política] tem que ser voltada para cultivar a diferença. O que nos enriquece é que não temos só uma religião, não temos uma única forma de fazer literatura. Temos que defender a pluralidade. E isso tem que ser ecumênico, ou então ficamos onde estamos.
O senhor fica preocupado quando vê projetos como o Escola sem Partido? Qual a sua avaliação sobre propostas atualmente debatidas para a área de educação?
Essa proposta de Escola sem Partido me preocupa bastante. No Brasil, temos liberdade de expressão e liberdade de cátedra. Ninguém pode me dizer o que devo ensinar dentro da sala. Na escola e nas universidades, devemos ver posições diferentes. Freud e Marx estão na berlinda da barbárie. Uma pessoa pode concordar ou não com Marx. Mas ele é incontornável. É parte da história do Ocidente. Assim como Freud, que foi uma grande revolução na perspectiva da sexualidade. Não podemos tomar a obra de forma ignorante.
A Lei Rouanet tem sido alvo de ataques. Qual o papel desse tipo de financiamento na literatura brasileira? A lei teria que ser revista?
Essa lei permite, por renúncia fiscal, que o Brasil possa levar sonhos adiante. Se houve um ou outro problema por questões administrativas, não é motivo para suprimir a Lei Rouanet, como tentaram fazer com o Ministério da Cultura.
O senhor faz um trabalho social com presidiários. Como funciona e quais os resultados observados quando os detentos passam a ter contato com a literatura?
É fascinante. Também visito unidades de ressocialização, unidades socioeducativas com menores de 18 anos. Eu deixo que eles [os menores] falem, e eles fazem uma espécie de narrativa das próprias histórias. Com o tempo, vou entrando em contato e entrando no mundo deles. Há muita luz nesse processo. Mesmo no auge da escuridão, sempre há centelhas de luz. Ou acreditamos nisso. Ou vamos para a guerra. Mas essa não é a melhor solução. Muita gente menospreza esse trabalho dentro dos presídios. Questionam se um adulto criminoso deixará o crime por causa de um livro. Talvez não. Mas [levar a literatura a eles] é humano.
Uma das bandeiras do novo governo é reduzir a maioridade penal. Qual a sua opinião?
Seria dramático. É óbvio que as pessoas se sentem inseguras, que têm raiva da pessoa que está assaltando, mas criar a cultura do ódio? Prender e armar. Armar e prender. A situação já está complexa. Como já disse Darcy Ribeiro: se não construirmos escolas, teremos que construir presídios. Há pesquisas que mostram que, se um bom trabalho for feito nas unidades socioeducativas, 70% dos jovens não reincidem [no crime]. Não podemos condenar o futuro desses meninos, pois ainda há esperança.