Orçamento de 2021 coloca máquina pública em risco, diz economista

Para Guilherme Santos Mello, não é possível prever que recuperação aconteça do jeito previsto por Paulo Guedes

A queda história do PIB brasileiro se uniu à apresentação do projeto de orçamento para 2021 como um raio-x da situação econômica atual. Apesar do impacto da pandemia ter sido expressivo em 2020, o cenário é incerto para o ano que vem. Há dúvidas em relação à produção rápida de uma vacina contra o coronavírus. E as aspirações de Jair Bolsonaro e Paulo Guedes para programas que sustentem o governo em pé no meio da crise econômica, como o Renda Brasil, não conversam entre si.

Essa é a análise do economista Guilherme Santos Mello, professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Em entrevista a CartaCapital, ele fala sobre a distribuição de 4 trilhões de reais em um cenário de aumento da vulnerabilidade social e promessa de cumprimento de teto de gastos. Confira:

CartaCapital: Quais foram os pontos que chamaram sua atenção em relação ao Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) 2021?
Guilherme Santos Mello: A primeira coisa que chama atenção é que há um esforço do governo de mostrar o que seria – porque não acho que será – um orçamento em que se cumpra rigorosamente a regra do teto. Eu não identifiquei nenhum mecanismo fura-teto explícito. E o que isso significa?

As despesas discricionárias em educação, saúde, investimento público, ciência e tecnologia, que já vêm sofrendo muito desde a recessão 2015-16, caem de maneira nominal. Quer dizer que a partir de 31 de dezembro acabou a pandemia?

O governo mostra pra sociedade que, com o teto, não há Renda Brasil – pelo menos não do jeito que foi cogitado. Só haverá Renda Brasil com o teto se a gente tirar de alguém. O Renda Brasil envolvia a unificação do abono. Se for para extinguir o abono, isso exige PEC [Proposta de Emenda Constitucional].

Alguns falaram em manter o abono apenas para aqueles que recebem até um salário mínimo. O governo consegue espaço? Sim, mas não o suficiente. Então eles cogitaram acabar com Farmácia Popular, mas não é tão simples. Não compensa acabar com o programa porque ele não custa tanto, e há o benefício de tirar gente que iria para o hospital porque está com pressão alta ou pico de glicose, mas recebe o remédio de graça.

Então, o que eles falaram? ‘Vamos mandar um projeto de reforma administrativa’. É uma forma de casar uma coisa com outra. ‘Se vocês quiserem dar pro pobre, tem que tirar do rico, e o rico é o funcionário público’. Vão tentar chegar a um acordo com o Congresso, e se ele [Congresso] não quiser fazer a reforma, quer dizer que o Congresso é contra o pobre.

CartaCapital: Secretários da Economia defendem categoricamente o teto de gastos, mas o mecanismo, neste momento da pandemia, é alvo de críticas. É possível fazer uma flexibilização que seja coerente com a responsabilidade fiscal e social?
Guilherme Santos Mello: É uma disputa que tem uma concepção de Estado por trás. Irresponsável é quem nega a realidade. É uma irresponsabilidade política manter o teto agora – e isso não significa não ter nenhuma regra, mas sim trocar a regra.

O que significa o termo “responsabilidade fiscal”? Ele não significa nada no curto prazo. É conseguir estabilizar e até reduzir a relação dívida/PIB. A questão do “como” não é central. Se você conseguir demonstrar que, ao longo do tempo, vai conseguir estabilizar a trajetória da dívida, é uma demonstração da responsabilidade fiscal.

Se você entender que o gasto público e privado são complementares, e que setores fundamentais da economia, como infraestrutura, ciência e tecnologia, demandam no mundo inteiro um investimento público robusto, então sua regra fiscal tem que estar adaptada a essa visão. Tem que ser flexível.

Na mídia, não há uma discordância ampla contra o projeto bolsonarista na economia, mas sim contra a capacidade de fazer o projeto, porque ele é incompetente. A gente está vivendo a maior catástrofe econômica da história, e isso pode se agravar no ano que vem. Eu acho que eles vão usar isso como moeda de troca para aprovarem a reforma administrativa, privatizações e outros projetos.

CartaCapital: Para fechar a conta, o governo projetou as despesas discricionárias em 96,052 bilhões de reais, e afirmou que não haverá contingenciamento no ano que vem. Acredita que isso é possível?
Guilherme Santos Mello: Haverá contingenciamento porque não só o teto vai voltar a valer, como a meta de resultado primário vai voltar a valer. E se, em vez de crescer 3,2% [estimativa do governo], a economia crescer 2%? Isso significa que as receitas vão crescer menos e o resultado primário vai ser pior. Então se você não tem espaço para contingenciar, o que você vai fazer? Vai ter que mandar um pedido de revisão de meta de primário para a Câmara, e você está a uma vírgula de cometer um crime de responsabilidade fiscal.

O que está na Lei de Responsabilidade Fiscal é que, a cada bimestre, você deve fazer uma avaliação de receitas e despesas. Se você sentir que a receita está abaixo, você já deveria fazer o decreto de contingenciamento.

Acho improvável que não haja contingenciamento, mas isso significa que uma parte importante da máquina pública está sob ameaça de simplesmente não funcionar. Parte dessas são classificadas assim [como discricionárias], mas caso elas não sejam realizadas, o funcionamento da máquina pública fica prejudicado. A limpeza é despesa discricionária, mas o que você vai fazer? Não vai limpar o órgão público?

CartaCapital: Com o tombo de 9,7% no segundo trimestre, em comparação com os três primeiros meses de 2020, o País entra oficialmente em recessão. Na sua análise, o setor econômico caminha para mudar esse cenário?
Guilherme Santos Mello: Se você pegar na comparação anual, a queda é de quase de 12% na comparação do segundo trimestre deste ano com o ano anterior. É muito puxado por uma queda expressiva na indústria, na construção civil. A grande dúvida da tal “recuperação em V” é que a queda para baixo a gente já descobriu quanto é, mas qual o tamanho da recuperação no terceiro e quarto trimestre?

O quarto trimestre não terá o auxílio emergencial de 600 reais, será só de 300 reais. Aquela renda que você injetou na economia mensalmente vai cair pela metade. Qual vai ser o efeito disso no consumo das famílias? Será que o aumento das outras rendas vai compensar a queda na renda do auxílio emergencial? É difícil responder isso de antemão. Você olha para o mercado de trabalho e não parece, os dados continuam muito ruins. Claro, provavelmente a recuperação de algumas rendas, principalmente a informal, vai acontecer. Mas será o suficiente?

E depois do quarto trimestre? A pandemia vai acabar? No cenário otimista, vamos supor que se consiga registrar uma vacina em fevereiro – eu diria que otimista, porque tem que ver se essa vacina vai ter uma cobertura ampla. Em abril, as pessoas estarão vacinadas: será uma operação de guerra. Então o primeiro trimestre do ano que vem continuará sendo um trimestre de pandemia, só que você não terá mais o orçamento de guerra. Será que vão continuar morrendo mil ou mais pessoas? Pode ser que esse relaxamento no último trimestre indique problemas no primeiro no ano que vem. Não dá pra saber mais do que isso.

Carta Capital

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