“Ortodoxos” citaram “estudo” que não existe para defender os juros na lua, denuncia Oreiro

José Luis Oreiro desmascarou um grupo de economistas “ortodoxos” que citou um trabalho comprovando, segundo eles, que os juros devem permanecer altos por conta das expectativas futuras. Oreiro foi atrás do estudo e constatou que ele não existe. Está registrado como PRELIMINAR e ainda em elaboração, a SER APRESENTADO em conferência que não ocorreu!

O economista e professor da Universidade de Brasília (UnB) José Luis Oreiro divulgou um artigo onde contesta suposto estudo em que economistas “ortodoxos” afirmam que as expectativas de inflação podem levar a uma aceleração inflacionária, defendem a manutenção das atuais metas irreais de inflação e a autonomia do Banco Central para manter as altas taxas de juros.

“O grande problema com essa hipótese é que nunca se demonstrou a existência de um elo entre as expectativas de inflação medidas pelas instituições financeiras e o comportamento de reajuste de preços por parte dos agentes que têm, de fato, poder de formação de preços, ou seja, as firmas e os sindicatos. O suposto ineditismo do estudo dos economistas brasileiros supracitados é que pela primeira vez na história da macroeconomia a nível mundial teria sido demonstrado de “forma robusta” a existência desse elo”, afirma Oreiro. Confira o artigo na integra!

OS ECONOMISTAS ORTODOXOS IGNORAM REGRAS BÁSICAS DO DEBATE CIENTÍFICO E ANUNCIAM “DESCOBERTA” PARA A QUAL AINDA NÃO EXISTEM EVIDÊNCIAS QUE PODEM SER COMPARTILHADAS

Por JOSÉ LUIS OREIRO*

Em matéria publicada no Valor Econômico no dia 02/03/2023 intitulada “Expectativas cruzam limiar que pode acelerar a inflação” (veja em https://valor.globo.com/brasil/noticia/2023/03/02/expectativas-cruzam-limiar-que-pode-acelerar-inflacao.ghtml) apresenta-se um estudo realizado por uma equipe de economistas ortodoxos composta por Carlos Viana de Carvalho, ex-diretor de política econômica do Banco Central, ex-economista do Federal Reserve (Fed, o banco central americano) e atual sócio da Kapitalo Investimentos, Silvia Matos, do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV Ibre), e Marco Bonomo, do Insper, na qual se lê que (sic) ”O cenário é sugerido a partir de um estudo feito por um grupo de economistas, que comprova de forma robusta, pela primeira vez, que as expectativas de inflação estão relacionadas com as decisões que as empresas tomam para fixar os preços de seus produtos. Quando as expectativas de longo prazo estão desancoradas, os reajustes são mais pronunciados“.

Na matéria lê-se ainda que “As conclusões desse estudo têm implicações no debate atual de política monetária no Brasil, confrontando a tese de alguns economistas de que seria possível um corte acelerado de juros sem que a inflação saia de controle. Também desaconselham uma eventual mudança nas metas de inflação já definidas pelo Conselho Monetário Nacional (CMN). O risco, nesses casos, é justamente a desancoragem das expectativas e seus efeitos perversos na fixação de preços da economia e na própria inflação, argumentam os responsáveis pelo trabalho”.

Em suma, os autores do suposto estudo teriam obtido provas conclusivas e contundentes, a partir de microdados, de que quando a inflação esperada pelas instituições financeiras (a Faria Lima no Brasil ou a Wall Street nos EUA) se afasta da meta de inflação definida pelo Conselho Monetário Nacional então os formadores de preços do mundo real (a main streat) atuam no sentido de fazer com que o rapasse da desvalorização cambial para os preços seja mais forte, de maneira que os pesquisadores, com base no suposto estudo, afirmam categoricamente ser equivocado o debate sobre o aumento da meta de inflação no Brasil pois isso poderia levar, dado a desancoragem das expectativas, a uma aceleração da inflação.

Sem dúvida que o resultado que foi propagandeado em prosa e verso pelos autores do suposto estudo seria uma enorme descoberta no campo da macroeconomia. Desde o final dos anos 1960 os economistas debatem o papel das expectativas de inflação na determinação da inflação corrente. A assim chamada versão aceleracionista da curva de Phillips desenvolvida por Milton Friedman na década de 1960 postula que a inflação corrente depende das expectativas de inflação dos formadores de preços (firmas e sindicatos) e do estado do mercado de trabalho, expresso pela diferença entre a taxa de desemprego efetiva e a taxa de desemprego de equilíbrio (a taxa natural de desemprego).

A questão central, contudo, é saber como as expectativas de inflação são formadas. No mundo mágico das expectativas racionais, onde se supõe que a economia já alcançou um estado estacionário onde os agentes já aprenderam tudo o que tinham para aprender, as expectativas de inflação são dadas pela média ponderada entre a meta de inflação que o banco central deve alcançar (multiplicada pelo grau de independência do Banco Central) e a inflação discricionária, dada pela maximização da função de perda social da autoridade monetária (multiplicada por um menos o grau de independência do Banco Central) [Ver Franceze Jr, 2004, p. 110]. Nesse contexto, a meta de inflação e o grau de autonomia do Banco Central teriam um papel fundamental para determinar a inflação corrente: quanto menor a meta de inflação e maior a autonomia do Banco Central menor será, tudo o mais mantido constante, a inflação corrente.

O grande problema com essa hipótese é que nunca se demonstrou a existência de um elo entre as expectativas de inflação medidas pelas instituições financeiras e o comportamento de reajuste de preços por parte dos agentes que têm, de fato, poder de formação de preços, ou seja, as firmas e os sindicatos. O suposto ineditismo do estudo dos economistas brasileiros supracitados é que pela primeira vez na história da macroeconomia a nível mundial teria sido demonstrado de “forma robusta” a existência desse elo.

Movido pela natural curiosidade científica que todo pesquisador tem, fui procurar o artigo que fundamentaria as prescrições de política econômica propostas pelo “estudo”. Com base nas informações divulgadas na matéria do Valor cheguei ao site: https://sites.google.com/view/stefano-eusepi/working-papers onde o paper que deu base a matéria do Valor, cujo título é “Price Setting When Expectations are Unanchored” simplesmente não está disponível!!!!! No site lê-se que “Draft available soon, in preparation for the JME-SNB-SCG conference on inflation: Expectations & Dynamics”, ou seja, a versão PRELIMINAR do artigo ainda está em elaboração para SER APRESENTADA numa conferência que ainda não ocorreu!

Resumindo: os autores do estudo sequer têm uma versão preliminar do mesmo, não discutiram o trabalho com seus pares, o trabalho não foi avaliado por ninguém da comunidade científica de economia e os autores divulgam que (sic) o estudo apresenta evidências conclusivas sobre a relação entre as expectativas de inflação e a formação de preços e ainda querem dar pitaco na formulação de política econômica no Brasil !!!! Sério isso?

Um princípio básico da metodologia científica é o da reprodutibilidade do experimento. Quando algum pesquisador obtém um resultado inovador em qualquer campo da ciência ele ou ela deve divulgar para seus pares para que possa ser reproduzido. Se os pares não forem capazes de reproduzir o experimento então trata-se de fraude, pura e simples. Isso ocorreu em 1989 quando dois químicos anunciaram para o mundo que tinham descoberto a “fusão a frio” (https://super.abril.com.br/ciencia/o-misterio-da-fusao-a-frio/#:~:text=F%C3%ADsicos%20de%20v%C3%A1rios%20pa%C3%ADses%20acreditam,nuclear%20num%20tubo%20de%20ensaio.&text=O%20que%20foi%20apresentado%20ao,enorme%2C%20decepcionante%20ponto%20de%20interroga%C3%A7%C3%A3o.). Como sabemos em 2023 isso não ocorreu, até porque se tivesse sido verdade o mundo já teria feito a transição energética para uma economia de baixo carbono.

O fato é que sem ter sequer a versão preliminar do estudo dos economistas citados na matéria do Valor é IMPOSSÍVEL saber se as conclusões que eles alegam obter podem ser, de fato, obtidas. O pior de tudo é que com base num estudo cuja versão preliminar sequer foi publicada, esses economistas se arrogam ao direito de discutir propostas de política econômica para o Brasil, as quais, se forem equivocadas, trarão sofrimento para milhões de cidadãos do Brasil.

Um pouco mais de responsabilidade e compromisso com o protocolo científico é de bom tom para quem quiser se meter no debate sobre política econômica.

Referências:

Franceze Jr, R.J. (2004). “Institutional and Sectoral Interactions in Monetary Policy and Wage/Price-Bargaining” In: Hall, P.A; Soskice, D. (orgs,). Varieties of Capitalism: the institutional foundations of camparative advantage. Oxford University Press: Oxford.

JOSÉ LUIS OREIRO é economista, professor da Universidade de Brasília (UnB)

O texto foi reproduzido de seu site (https://jlcoreiro.wordpress.com/), sendo mantida sua formatação original.

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