Os direitos que morrem no campo de batalha do STF
Por José Geraldo de Santana Oliveira*
“Ave, Caesar, morituri te salutant”
(em tradução livre, “Salve, imperador,
os que vamos morrer te saudamos”)
Suetônio, De vitis Caesarum
Essa sinistra saudação ao imperador romano, universalmente conhecida, era exigida dos gladiadores quando entravam na arena do Coliseu com a determinação de lutar até a morte, para divertimento daquele e do público que sempre lotava as arquibancadas.
Passados 16 séculos do fim dessas sangrentas lutas, proibidas no século V d.c., outros atores, os direitos sociais, sentem-se, no cenário Brasil, compelidos a fazer igual saudação a outro imperador, o STF, pois que todos os direitos que, com pedido de socorro, chegam a essa Corte (que tem o dever de guardar a CF, conforme o Art. 102 dela) saem envoltos em uma mortalha.
A saudação de despedida dos direitos fundamentais sociais ao STF, deve ser mais ou menos assim: “Ave, supero absolutum, morituri te salutant” (em tradução livre e ampliativa, “Salve, Supremo absoluto, os que vamos morrer em vossas mãos te saudamos”).
As provas cabais dessa guerra do STF contra os direitos fundamentais sociais são abundantes; sem esforço, chegam às 200 contas do rosário completo. Mas, como não há lugar, aqui, para se desfiar todas elas, destacam-se algumas das mais avassaladoras, que são:
I – Tema 725 — “É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante” (ADPF 324 e RE 925852).
E, “na terceirização, compete à contratante verificar a idoneidade e a capacidade econômica da terceirizada e responder subsidiariamente pelo descumprimento das normas trabalhistas, bem como por obrigações previdenciárias”.
II – Tema 383 — “A equiparação de remuneração de remuneração entre empregados da empresa tomadora de serviços e empregados da empresa contratada (terceirizada) fere o princípio da livre iniciativa, por se tratarem de agentes econômicos distintos, que não podem estar sujeitos a decisões empresariais que não são suas”. (RE 635546)
O ministro Luís Roberto Barroso ainda assentou: “Exigir que os valores de remuneração sejam os mesmos entre empregados da tomadora de serviço e empregados da contratada significa, por via transversa, retirar do agente econômico a opção pela terceirização para fins de redução de custos”.
O juiz do trabalho Diego Petacci, substituto no Tribunal Regional do Trabalho da 2ª região, em instigante artigo publicado no portal Migalhas, aos 5 de abril de 2021, com o título “A terceirização, o STF e a chancela do comércio humano pelo humano”, dentre outras considerações contundentes, assevera:
“[…] Ora, então a empresa XPTO comercializa o trabalho humano? Exato. Dizer o contrário seria tentar dourar a pílula com uma desonestidade intelectual que não cabe neste espaço. E neste ponto, é de bom alvitre recordar que a Constituição da Organização Internacional do Trabalho (OIT) declara que o trabalho não é uma mercadoria.
Demais disso, não parece que esse ‘comércio do humano pelo humano’ seja consentâneo com o princípio da dignidade da pessoa humana, positivado no art. 1º, III, da CF. Guarde este ponto, voltaremos a ele mais adiante.
Porém, o caminho para o ‘comércio do humano pelo humano’ foi finalmente aberto com ‘o pé na porta’ pela lei 13.467, de 13.7.17, que entrou em vigor em 11.11.17, alterando novamente a redação do art. 4º-A da lei 6019/74 para admitir a terceirização inclusive da ‘atividade principal’.
[…]
Então, em resumo, consolidando a jurisprudência fixada pelo STF de 2018 a 2021 sobre o tema, e trazendo ainda a previsão legal vigente desde a Lei da Reforma Trabalhista, podemos concluir: não só chancelamos, enquanto sistema, o comércio do humano pelo humano, mas também o comércio mais barato.
Fica a questão: para que, neste cenário, serve o Direito do Trabalho? Como compatibilizar um ramo do Direito destinado a reequilibrar juridicamente o desequilíbrio material entre capital e trabalho se o nosso sistema jurídico hoje se volta para a coisificação e precificação barateada do trabalho humano?
Este articulista não tem respostas. Este texto não tem respostas. Apenas traduz a perplexidade do ponto em que nos encontramos enquanto sistema jurídico, completamente divorciados de um regime de dignificação do trabalho humano. Para que possamos acordar, enquanto é tempo, antes que não sejamos melhores do que os mercadores de escravos na era do imperialismo europeu”.
III – Tema 1046 — RE 1121633, que julga constitucional instrumento normativo que preveja somente redução de direitos, sem qualquer contrapartida:
Tese: “São constitucionais os acordos e as convenções coletivas que, ao considerarem a adequação setorial negociada, pactuem limitações ou afastamentos de direitos trabalhistas, independentemente da explicitação especificada de vantagens compensatórias, desde que respeitados os direitos absolutamente indisponíveis”.
IV – ADPF 323 — que declarou a inconstitucionalidade da Súmula 277 do TST, que representou a maior conquista do mundo do trabalho pós-constituinte.
“Arguição de descumprimento de preceito fundamental. 2. Violação a preceito fundamental. 3. Interpretação jurisprudencial conferida pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST) e pelos Tribunais Regionais do Trabalho da 1ª e da 2ª Região ao art. 114, § 2º, da Constituição Federal, na redação dada pela Emenda Constitucional 45, de 30 de dezembro de 2004, consubstanciada na Súmula 277 do TST, na versão atribuída pela Resolução 185, de 27 de setembro de 2012. 4. Suposta reintrodução do princípio da ultratividade da norma coletiva no sistema jurídico brasileiro pela Emenda Constitucional 45/2004. 5. Inconstitucionalidade. 6. Arguição de descumprimento de preceito fundamental julgada procedente”.
V – ADPF 501 — declara inconstitucional a Súmula 450 do TST, que determina o pagamento em dobro das férias concedidas e/ou pagas fora do período e do prazo legais, Arts. 134 e 145 da CLT, respectivamente.
Eis alguns excertos do voto vencedor do ministro relator, Gilmar Mendes:
“[…] Quanto à construção analógica que permitiu a consolidação da jurisprudência ora debatida, observo que a técnica integrativa pressupõe a existência de uma lacuna a ser preenchida. No caso, todavia, a própria Consolidação das Leis do Trabalho assentou, no seu art. 153, a penalidade cabível para infrações ao que fora determinado no seu Capítulo IV, dentro do qual se encontra a obrigação de pagar as férias com antecedência de dois dias. Assim, ante a conjugação de um preceito impositivo (art. 145) com outro sancionador (art. 153), não se vislumbra vácuo legal propício à atividade integrativa, por mais louvável que seja a preocupação em concretizar os direitos fundamentais do trabalhador.
Diante do exposto, JULGO PROCEDENTE a arguição para: (a) declarar a inconstitucionalidade da Súmula 450 do Tribunal Superior do Trabalho; e (b) invalidar decisões judiciais não transitadas em julgado que, amparadas no texto sumular, tenham aplicado a sanção de pagamento em dobro com base no art. 137 da CLT”.
VI – ADIs 5389 e 5340 — que discutiam a constitucionalidade das leis 13.3134 e 13.135, que alteraram os critérios para fazer jus à pensão por morte. O relator foi o ministro Dias Toffoli.
Tese fixada: “A Lei nº 13.134/15, relativamente aos prazos de carência do seguro-desemprego e ao período máximo variável de concessão do seguro-defeso, e a Lei nº 13.135/15, na parte em que disciplinou, no âmbito da pensão por morte destinada a cônjuges ou companheiros, carência, período mínimo de casamento ou de união estável e período de concessão do benefício, não importaram em violação do princípio da proibição do retrocesso social ou, no tocante à última lei, em ofensa ao princípio da isonomia”.
Em seu voto, o ministro relator asseverou: “[…]Julgo que todas as considerações acima indicam que a lei impugnada não incidiu em ofensa ao princípio da proibição do retrocesso social, a qual, reitero, não possui caráter absoluto, devendo ser interpretada em harmonia com outros parâmetros de igual envergadura”.
VII – ADI 7051 — que visava a declaração de inconstitucionalidade da EC 103/2019, quanto à pensão por morte.
Tese fixada: “É constitucional o art. 23, caput, da Emenda Constitucional nº 103/2019, que fixa novos critérios de cálculo para a pensão por morte no Regime Geral e nos Regimes Próprios de Previdência Social”.
Eis o que afirmou o ministro Roberto Barroso sobre a pensão por morte, segundo matéria publicada no portal do STF:
“Por fim, para Barroso, as pensões por morte não visam à manutenção do padrão de vida do segurado falecido nem têm natureza de herança. ‘Em realidade, elas são um alento – normalmente temporário – para permitir que os dependentes se reorganizem financeiramente’, concluiu”.
VIII – ADI 2200 — protocolada em abril de 2000 e julgada em julho de 2020, que questionava a alteração da Lei 8.542/1992, pondo fim à ultratividade das normas coletivas.
Ao julgá-la, o STF reconheceu como constitucional o § 3º, do Art. 614 da CLT, que veda a ultratividade das normas coletivas, até mesmo por acordo entre os sindicatos patronal e laboral.
Eis a Ementa do acórdão:
“EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA PROVISÓRIA N. 1.950-62/2000, CONVERTIDA NA LEI N. 10.192/2001. REVOGAÇÃO DOS §§ 1º E 2º DO ART. 1º DA LEI N. 8.542/1992. ACORDOS E CONVENÇÕES COLETIVOS DE TRABALHO. SUPERVENIÊNCIA DA LEI N. 13.467/2017. PREJUÍZO DA AÇÃO. 1. Argumentação genérica quanto à indicação de afronta ao inc. XXXVII do art. 5º da Constituição da República. 2. A conversão da Medida Provisória n. 1.950-62/2000 na Lei n. 10.192/2001 torna prejudicado o debate sobre o preenchimento da excepcionalidade exigida pelo art. 62 da Constituição da República. 3. Nos incs. VI e XXVI do art. 7º da Constituição da República não se disciplinam a vigência e a eficácia das convenções e dos acordos coletivos de trabalho. A conformação desses institutos compete ao legislador ordinário, que deverá, à luz das demais normas constitucionais, eleger políticas legislativas aptas a viabilizar a concretização dos direitos dos trabalhadores. 4. Superveniência da Lei n. 13.467/2017, que expressamente veda ultratividade no direito do trabalho brasileiro. Esvaziamento da discussão quanto à lei revogadora. Impossibilidade de repristinação das normas revogadas pelos dispositivos questionados. 5. Ação direta de inconstitucionalidade prejudicada”.
IX – ADI 5994 — que declarou constitucional a jornada de 12×36 horas, sem intervalo, por meio de “acordo individual. O redator designado foi ministro Gilmar Mendes.
“Ação Direta de Inconstitucionalidade. 2. Jornada de trabalho 12 por 36. Pactuação por acordo individual. Art. 59-A da CLT, na redação dada pela Lei 13.467, de 13 de julho de 2017. Reforma Trabalhista. 3. Alegação de violação ao disposto no artigo 7º, incisos XIII, XIV e XXVI, da Constituição Federal. Inocorrência. 4. ADI 4.842, Rel. Min. EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 14.9.2016. 5. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada improcedente”.
Eis o que dispõe o Art. 59-A da CLT:
“Em exceção ao disposto no art. 59 desta Consolidação, é facultado às partes, mediante acordo individual escrito, convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho, estabelecer horário de trabalho de doze horas seguidas por trinta e seis horas ininterruptas de descanso, observados ou indenizados os intervalos para repouso e alimentação”.
Como se constata pelos excertos abaixo, o voto vencedor, da lavra do ministro Gilmar Mendes, sequer fez referência ao triste fato de o Art.59-A, declarado constitucional, autorizar a “pactuação” da jornada 12×36 horas, por “acordo individual”, sem intervalo para repouso e alimentação.
“A reforma trabalhista só pode ser concebida como “precarização” sob a ótica daquele “paradigma perdido”, sob o ponto de vista da lógica tradicional do Direito do Trabalho, fundada na tutela do trabalhador em face de desequilíbrios na relação com o empregador. Nessa conjuntura, entendo que as diversas alterações propostas pela reforma trabalhista empreendem um reencontro do Direito do Trabalho com suas origens privadas, fazendo com que a autonomia assuma posição de destaque, sem prejuízo, logicamente, da tutela da dignidade humana.
[…]
Portanto, não vejo qualquer inconstitucionalidade em lei que passa a possibilitar que o empregado e o empregador, por contrato individual, estipulem jornada de trabalho já amplamente utilizada entre nós, reconhecida na jurisprudência e adotada por leis específicas para determinadas carreiras”.
O Art.59-A se constitui em solene e expresso reconhecimento de que o trabalhador é considerado simples instrumento de trabalho e não ser humano, como o fazia o império romano; e a nova redação do Art. 614, § 3º, da CLT, que proíbe a ultratividade das normas coletivas, até mesmo por acordo entre as partes. E o que é mais grave: foi reconhecido como constitucional pelo STF.
X – Reclamação 72873 — que declara a Justiça do Trabalho incompetente para conhecer e julgar ações que visam ao reconhecimento de vínculo empregatício em contratos de natureza civil ou comercial, com forte presença dos elementos constitutivos do contrato de emprego. O relator também foi o ministro Gilmar Mendes:
“[…] Desse modo, em linha com precedentes do Tribunal, entendo que as causas que discutam a regularidade de contrato civil ou comercial devem ser apreciadas pela Justiça Comum e, caso seja verificada qualquer nulidade no negócio jurídico, nos termos do art. 166 e seguintes do Código Civil, caberá a remessa dos autos à Justiça do Trabalho para apuração de eventuais direitos trabalhistas.
Feitas essas considerações, passo à análise do caso. Entretanto, antes da discussão acerca da existência de eventuais direitos trabalhistas, é necessária a análise prévia da regularidade do contrato civil de prestação de serviços (eDOC 11), que, conforme já amplamente demonstrado acima, compete à Justiça Comum.
Ressalto ainda que, caso verificado qualquer vício no negócio jurídico, a Justiça Comum deve fazer a remessa dos autos à Justiça do Trabalho, a quem compete apreciar as questões atinentes à seara trabalhista.
Ante o exposto, julgo procedente a reclamação para cassar o acórdão reclamado, ante a incompetência da Justiça do Trabalho, determinando a remessa dos autos à Justiça Comum”.
O STF, no tocante à terceirização, escancarou com tal largura sua liberação, sem limites e fronteiras, a ponto de o ministro Flávio Dino, no julgamento da Reclamação 67348, admoestar o próprio Tribunal:
“Acho que nós tínhamos que revisitar o tema, não para rever a jurisprudência, mas para delimitar até onde ela vai, porque hoje nós vamos virar uma nação de pejotizados. O pejotizado vai envelhecer e ele não terá aposentadoria. Esse pejotizado vai sofrer um acidente de trabalho e ele não terá benefício previdenciário. Se for uma mulher, ela vai engravidar e não terá licença gestante”, foram as palavras do ministro Flávio Dino no julgamento do processo, segundo matéria publicada no portal Migalhas, no dia 22 de outubro de 2024.
Em contrapartida, o ministro Alexandre de Moraes, no mesmo julgamento, debochou dos trabalhadores, segundo matéria também publicada no Portal Migalhas de 22 de outubro de 2024:
“Nesta terça-feira, 22, durante sessão da 1ª turma do STF, ministro Alexandre de Moraes criticou trabalhadores que aceitam termos de pejotização e depois recorrem à Justiça do Trabalho requerendo enquadramento celetista.
Segundo o ministro, o problema começa quando ambas as partes concordam em assinar o contrato, visto que ‘se paga muito menos imposto do que pessoa física’, afirmou Moraes. No entanto, o cenário muda com a rescisão do contrato, momento em que, segundo o ministro, inicia-se uma nova etapa de litígios trabalhistas. ‘Depois que é rescindido o contrato, aí vem a ação trabalhista’, destacou.
Moraes sugeriu que, caso a jurisprudência exigisse o recolhimento dos tributos como pessoa física após o rompimento do contrato de terceirização, o volume de reclamações trabalhistas poderia ser reduzido.
‘Aquele que aceitou a terceirização e assinou o contrato, quando é rescindido o contrato e entra com a reclamação, ele deveria também recolher todos os tributos como pessoa física’, disse Moraes.
O ministro destacou ainda as incoerências no sistema atual, que, na sua visão, favorecem o aumento de disputas na Justiça do Trabalho. ‘Porque na Justiça do Trabalho acaba ganhando a reclamação, só que recolheu todos os tributos lá atrás como pessoa jurídica. E depois ele ganha todas as verbas como pessoa física’, criticou Moraes, questionando a lógica por trás desse processo”.
No julgamento da ADI 5685, que arguia a inconstitucionalidade da Lei. 13.429/2017, que rompeu todas as barreiras e limites da terceirização, o ministro relator asseverou em seu voto, dentre outras afirmações de igual jaez:
“No Brasil, em 2017, o trabalho sem carteira assinada e ‘por conta própria’ superou o emprego formal. E, interessantemente, a ligeira redução da taxa de desemprego se deu em razão do crescimento do trabalho informal e do desenvolvimento do comércio.
Ou seja, aqui não se trata de optarmos entre um modelo de trabalho formal e um modelo de trabalho informal, mas entre um modelo com trabalho e outro sem trabalho; entre um modelo social utópico, como tão frequentemente nos alertou Roberto Campos, e um modelo em que os ganhos sociais são contextualizados com a realidade. […].
Nesse sentido, o Banco Mundial, em relatório sobre políticas de redução da informalidade, destaca que: ‘(…) aumentar a flexibilidade de normas de proteção do emprego e reduzir salários-mínimos reduz os custos de contratação formal de trabalhadores, e assim, pode incrementar incentivos para que empresas aumentem o emprego registrado’. (The World Bank, Policies to reduce informal employment: an international survey, p. 10). […].
Portanto, o que se observa no contexto global é uma ênfase na flexibilização das normas trabalhistas. É temerário ficar alheio a esse inevitável movimento de globalização do fenômeno produtivo. […].
Aqui, estamos estabelecendo que o valor jurídico do trabalho seja compatível com o seu valor fático. Só assim superaremos a consagração artificial de direitos trabalhistas, atingindo a valorização do trabalho na medida do seu real valor.
[…]
Nelson Rodrigues já dizia que ‘subdesenvolvimento não se improvisa; é fruto de séculos’. Os dilemas que hoje o mercado nos impõe, e que exige que reflitamos a respeito do nosso modelo de direitos sociais, nomeadamente os trabalhistas, são fruto de uma cultura paternalista que se desenvolveu há décadas.
O Direito do Trabalho brasileiro baseia-se em uma premissa de contraposição entre empregador e empregado; na prática, uma perspectiva marxista de luta entre classes”.
Para dissipar quaisquer dúvidas, se é que remanesce alguma, sobre a letal e forte jurisprudência do STF contra os direitos fundamentais sociais, vale trazer à baila a apresentação do ousado, corajoso e bem fundamentado livro do desembargador do TRT da 10ª Região, Grijalbo Fernandes Coutinho, “Justiça Política do Capital”. A apresentação foi feita por Reginaldo Melhado, professor, magistrado e membro da Associação de Juízes pela Democracia (AJD):
“Ativistas dos direitos humanos ou líderes sindicais certamente vociferam contra o Supremo Tribunal Federal (STF) e suas decisões dos últimos anos, quase sempre contrárias à classe trabalhadora. Qualquer pessoa razoavelmente atenta também pode ter notado essa tendência. Para a abordagem acadêmica (ou científica, como se queira), entretanto, impressões não são suficientes. É preciso também demonstrar de modo consistente por meio da investigação e da reflexão crítica, com equações lógicas de sustentação, o uso da jurisdição do STF como instrumento de desconstrução de direitos dos trabalhadores. Neste livro, Grijalbo Fernandes Coutinho mostra como a mais alta corte de Justiça do Brasil, de modo sistemático, tomou o proletariado como inimigo de classe, arrasando suas conquistas históricas”.
Para completar as contas do rosário, desfiadas pelo STF, para desconstruir as conquistas históricas do mundo do trabalho, substituindo a valorização do trabalho humano, fundamento maior da ordem econômica, por determinação do Art. 170, caput, da CF, pelo seu desvalor e pela valorização absoluta dos interesses do capital, esse tribunal acaba de formar maioria (6 a 2, até agora, em julgamento virtual que termina dia 13) para declarar constitucional o contrato intermitente, nas ADIs 5826, 5829 e 6154, conforme amplamente noticiado pelos jornais e portais eletrônicos.
O ministro relator Edson Fachin, já vencido, destaca em seu voto, em excertos:
“O argumento central do debate trazido à apreciação desta Suprema Corte é a inconstitucionalidade dessa modalidade de contrato laboral, em virtude da flexibilização de direitos sociais fundamentais trabalhistas, bem como da afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana, nos seguintes termos: ‘(…) a norma jurídica que o prevê coloca o trabalhador numa condição de mero objeto, como ferramenta, equipamento, maquinário, à disposição da atividade econômica empresarial, quando, onde e como o empregador bem entender’.
O ponto dialético para a análise do pedido é o fato de que essa modalidade de contrato tem o potencial de aumentar a contratação de trabalhadores, especialmente nos períodos de crise, como o que atualmente se encontra o país, de modo que pode funcionar como uma alavanca para o processo de estabilização econômica e melhoria das condições de vida para todos.
A ordem econômica, conforme dicção da própria literalidade da norma constitucional (art. 170 da CRFB), deve ser balizada pelo princípio da valorização do trabalho humano, conforme observa o Professor Tércio Sampaio Ferraz Júnior: “A (ordem) econômica deve visar assegurar a todos a existência digna conforme os ditames da justiça social. O objetivo da ordem social é o próprio bem-estar social e a justiça social. A primeira deve garantir que o processo econômico, enquanto produtor, não impeça, mas ao contrário, se oriente para o bem-estar e a justiça sociais.
O Estado Social de Direito, nesse contexto, deve direcionar todos os seus esforços institucionais para o ser humano considerado em sua comunidade, ou seja, aquela em que o outro é tomado como sujeito de direitos e deveres, digno de inclusão no grupo social e enredado por obrigações recíprocas.
[…]
O sujeito de direitos do século XXI é constituído e informado pela comunidade como espaço social de concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, inspirado na ideia de fraternidade, preconizada como terceiro elemento da pauta ideológica da Revolução Francesa.
A concretização das normas constitucionais efetiva-se nas relações jurídicas que se firmam em atos, contratos e outras formas de reconhecer aos sujeitos envolvidos a proteção do ordenamento jurídico. A realização da Justiça Social pressupõe duas órbitas de apreensão: a primeira, mais abstrata, que se coloca como o parâmetro constitucional positivado; e a segunda, mais concreta, que se perfaz como relação jurídica em concreto.
Se realmente importam os sujeitos de direito, imprescindível é assegurar-lhes segurança jurídica substancial, ou seja, aquela que aproxima as condições normativas e as condições materiais de concretização da Constituição.
[…]
Há previsão do contrato de trabalho intermitente em outros países, os quais, de uma forma ou de outra, foram fontes de informação para a regulação brasileira sobre o tema. Vejamos, em apertada síntese, os modelos espanhol, português, inglês e italiano. Na Espanha, o contrato intermitente é chamado de ‘fixodescontínuo’. Trata-se de contrato por tempo indeterminado para a realização de serviços que sejam fixos, porém descontínuos, e não tenham data certa para se repetir. A regulamentação impõe que se o trabalho tem previsibilidade de data para se repetir, deve ser celebrado sob a modalidade de contrato a tempo parcial. O contrato de trabalho deve ser formal e por escrito, indicar a duração estimada da atividade, bem como a jornada e os horários de trabalho, ainda que também de forma estimada. Importante ainda registrar que a lei remete a regulamentação dos contratos intermitentes à negociação coletiva, que deverá fixar a forma de chamada ao trabalho. (ALVES, Amauri Cesar. Trabalho intermitente e os desafios da conceituação jurídica, in Revista Síntese Trabalhista, vol. 29, n. 346, abril 2018, p. 14) Em Portugal, o contrato intermitente é permitido para empresas que exerçam atividade de forma descontínua ou de intensidade variável, sendo que o trabalhador tem direito a receber pelo menos 20 (vinte) por cento da retribuição base em razão do período de inatividade, ou compensação retributiva em valor estabelecido em instrumento de regulamentação coletiva de trabalho (ALVES, Amauri Cesar. Trabalho intermitente e os desafios da conceituação jurídica, in Revista Síntese Trabalhista, vol. 29, n. 346, abril 2018, p. 14).
No Reino Unido, o modelo adotado, conhecido como ‘contrato zero hora’, é o que mais se assemelha ao que foi escolhido pelo legislador ordinário para o Brasil. Neste tipo de contrato intermitente não há qualquer garantia de prestação de serviços, nem de recebimento de salários, de modo que para alguns trata-se mais de um cadastro com dados do empregado do que de um contrato formal de prestação de serviços com subordinação.(ALVES, Amauri Cesar. Trabalho intermitente e os desafios da conceituação jurídica, in Revista Síntese Trabalhista, vol. 29, n. 346, abril 2018, p. 16).
Na Itália, se o empregador optar por contratar na modalidade de contrato intermitente com garantia de disponibilidade tem o dever de pagar ao trabalhador indenização de disponibilidade ajustada mediante negociação coletiva e nunca inferior ao salário mínimo fixado pelo Ministério do Trabalho. E para evitar-se que o empregador italiano contrate pela modalidade intermitente para atividades contínuas da empresa, o legislador previu um limite de prestação de serviço por meio desse tipo de contrato, ou seja, se ultrapassado um número de horas de prestação de serviço na modalidade intermitente o contrato automaticamente transforma-se em contrato de trabalho a tempo pleno e indeterminado (CARVALHO, Augusto César. Princípios de direito do trabalho sob a perspectiva dos direitos humanos. São Paulo : LTr, 2018, p. 41).
O principal desafio do contrato de trabalho intermitente, na modalidade de contrato zero hora, é que, não obstante fique caracterizada a relação de emprego, formalmente registrada na Carteira de Trabalho, não há qualquer garantia de prestação de serviço, nem de auferição de remuneração ao final do mês. “É o contrato de salário zero ou contrato zero hora. O empregador poderá ficar horas, dias, semanas, meses sem demandar trabalho, ficando o empregado, no mesmo período, aguardando um chamado sem receber salário. Trata-se, claramente, de se dividir os riscos do empreendimento com o empregado, sem que ele participe, obviamente, dos lucros” (ALVES, Amauri Cesar. Trabalho intermitente e os desafios da conceituação jurídica, in Revista Síntese Trabalhista, vol. 29, n. 346, abril 2018, p. 17).
A criação de uma modalidade de contrato de trabalho, formal e por escrito, que não corresponda à uma real probabilidade de prestação de serviços e pagamento de salário, ao final de um determinado e previsível período, representa a ruptura com um sistema cujas características básicas e elementos constitutivos não mais subsistirão.
Com a situação de intermitência do contrato zero hora, instala-se a imprevisibilidade sobre elemento essencial da relação trabalhista formal, qual seja, a remuneração pela prestação do serviço. Sem a obrigatoriedade de solicitar a prestação do serviço, o trabalhador não poderá planejar sua vida financeira, de forma que estará sempre em situação de precariedade e fragilidade social. Os direitos fundamentais sociais expressamente garantidos nos arts. 6º e 7º da CRFB estarão suspensos por todo o período em que o trabalhador, apesar de formalmente contratado, não estiver prestando serviços ao empresário.
Não há como afirmar garantidos os direitos fundamentais sociais previstos nos arts. 6º e 7º da Constituição se não houver chamamento à prestação de serviços, pois o reconhecimento das obrigações recíprocas entre empregador e trabalhador dependem diretamente da prestação de serviço subordinado.
Assim, a imprevisibilidade e a inconstância, naturalmente advindas dessa modalidade de contrato trabalhista, poderão ser elementos obstativos primários da concretização das normas constitucionais que reconhecem os direitos fundamentais sociais trabalhistas. Sem a garantia de que vai ser convocado à prestação do serviço, o trabalhador, apesar de formalmente contratado, continua sem as reais condições de gozar dos direitos fundamentais sociais que dependem da prestação de serviços e remuneração decorrente, sem os quais não há condições imprescindíveis para uma vida digna.
[…]
O que se questiona, na presente ação direta de inconstitucionalidade, é se a modalidade de contrato de trabalho intermitente coaduna-se com o princípio da dignidade da pessoa humana, como condição primária de ter direito a gozar dos direitos fundamentais sociais trabalhistas decorrentes. Lembre-se de que contrato de trabalho padrão funda-se no trabalho subordinado, por prazo indeterminado e com jornada fixada de forma parcial ou integral. Conforme alerta Augusto César Carvalho: ‘(…) O homem trocou a disponibilidade de todo o seu tempo útil pela certeza de qual parcela de seu tempo seria disponível e pela segurança de que assim seria financiado o seu tempo de otium, ou tempo sem trabalho. Mesmo a adoção progressiva de jornadas móveis ou do trabalho à distância não tem comprometido essa lógica’ (CARVALHO, Augusto César. Princípios de direito do trabalho sob a perspectiva dos direitos humanos. São Paulo: LTr, 2018, p. 37).
Registre-se também que o contrato de trabalho intermitente tem como principal característica um tempo de permanente disponibilidade, agravado pela incerteza quanto à convocação para a prestação dos serviços e, consequentemente, pela impossibilidade de previsão quanto ao direito à remuneração mínima necessária para prover os padrões de uma vida digna. ‘O trabalhador é instrumentalizado por completo, ou aviltado em sua dignidade, se lhe falta autonomia, verdadeira autonomia, para contratar sua força de trabalho de outro modo, que não o contrato intermitente’ (CARVALHO, Augusto César. Princípios de direito do trabalho sob a perspectiva dos direitos humanos. São Paulo LTr, 2018, p. 38-39).
A insegurança gerada em virtude da indefinição quanto ao tempo de trabalho e à expectativa de remuneração no contrato intermitente do tipo zero hora, que pode resultar em remuneração nula, impõe reflexões sobre as disparidades remuneratórias entre aqueles contratados pela modalidade padrão em relação aqueles contratados na modalidade intermitente, especialmente quando ambos os trabalhadores estiverem contratados para as mesmas tarefas e funções laborais.
[…]
Por essa razão, ante a ausência de fixação de horas mínimas de trabalho e de rendimentos mínimos, ainda que estimados, é preciso reconhecer que a figura do contrato intermitente, tal como disciplinado pela legislação, não protege suficientemente os direitos fundamentais sociais trabalhistas. Diante do exposto, conheço parcialmente das presentes ações, e, na parte conhecida, julgo procedentes os pedidos das ações diretas de inconstitucionalidade 5826, 5829 e 6154 para declarar a inconstitucionalidade do artigo 443, caput, parte final, e §3°; artigo 452-A, §1° ao §9°, e artigo 611-A, VIII, parte final, todos da CLT, com a redação dada pela Lei 13.467/2017. É como voto”.
A ministra Rosa Weber, já aposentada, única a acompanhar o relator, assim conclui seu voto pela declaração de inconstitucionalidade do contrato intermitente:
“O contrato de trabalho intermitente, tal como instituído pela Lei nº 13.467/2017, além de não se prestar ao propósito alegadamente justificador de sua criação (ampliação do número de empregados) — conforme demonstram os dados produzidos pelo DIEESE —, importa drástica redução dos patamares civilizatórios mínimos conquistados em favor dos trabalhadores. Trata-se de supressão objetiva de direitos e garantias fundamentais dos trabalhadores, profundamente dissociada dos valores e ideais inspiradores da Constituição Federal de 1988, cuja matriz principiológica assenta-se na expressão do direito do trabalho como instrumento civilizatório capaz de assegurar aos trabalhadores não apenas os meios essenciais de subsistência (direito à vida), mas também a realização dos ideais de uma vida digna, com acesso a moradia, saúde, cultura, lazer, segurança e todos os elementos de uma existência digna.
- Ante o exposto, julgo extintas as ADIs 5.826 e 5.829, por ausência de legitimidade ativa, e conheço em parte da ADI 6.154, e, nessa extensão, acompanho integralmente o luminoso voto proferido pelo eminente Ministro Edson Fachin, Relator, para julgar procedente o pedido, declarando a inconstitucionalidade material dos arts. 443, caput, parte final, e § 3º, 452-A, §§ 1º ao 9º, e 611-A, VIII, parte final, todos da CLT, na redação dada pela Lei nº 13.467/2017. É como voto”.
Contrato intermitente, ou contrato zero salário e zero hora — como o qualifica o ministro Edson Fachin —, a rigor, nada mais faz do que criar surreal cenário de quem tem contrato formal, mas não tem emprego nem salário, posto que o trabalhador a ele submetido só recebe por hora trabalhada. Importa dizer: para o Caged, o trabalhador está empregado; para a vida, não.
Essa modalidade de contrato, segundo dados do Dieese, totalizou 417 mil ao final de 2023, sendo que quase metade pouco ou nada trabalhou a maioria dos que trabalharam sequer recebeu um salário-mínimo.
O STF de tal forma se sedimentou como cemitério de direitos fundamentais sociais que qualquer advogado cioso de seu zelo profissional, quando consultado por uma entidade sindical laboral sobre a pertinência de a ele recorrer para salvaguardar ou restaurar um direito desse jaez, na melhor das hipóteses dará a equívoca (ambígua) resposta que os oráculos sibilinos davam aos que os consultavam sobre a perspectiva de êxito em uma guerra que se avizinhava ou da qual, já instaurada, iria participar: “Ibis, redibis, non morieris in bello” (em tradução livre, significa “Irás, voltarás, não morrerás na guerra”).
Porém, se se mudar uma vírgula, “Ibis, redibis non, morieris in bello”, o sentido é exatamente o oposto, ou seja, “Irás, não voltarás, morrerás na guerra.
Normalmente, a resposta era dada sem nenhuma pontuação, o que o Latim consentia: “Ibis redibis non morieris in bello”.
No que pertine ao STF, em casos em que tais, o consultado tem a convicção, para não dizer certeza, de que o direito não voltará vivo; lá será morto e sepultado.
Tristes tempos os de agora.
*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee