Para educadores, projeto do ensino médio deixa retrocessos para trás, mas está aquém do ideal
Coletivo avalia que PL aprovado pela Câmara recupera a “velha dualidade” que segmenta o sistema escolar entre ricos e pobres, e agrava as desigualdades educacionais e sociais. Profissionais cobram mudanças no Senado
Por Clara Assunção | RBA
Professores, especialistas e entidades em prol do direito à educação, reunidas no Coletivo em Defesa do Ensino Médio de Qualidade, criticaram nessa quinta-feira (21) o Projeto de Lei (PL) 5.230/2023, que redefine as diretrizes da Política Nacional de Ensino Médio. A proposta foi aprovada quarta-feira (20) pela Câmara com avanços, de acordo com o grupo, em relação às versões anteriores dos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro. No entanto, o texto ainda mantém aspectos que não garantem uma formação comum e um ensino de qualidade para todos.
O projeto foi encaminhado ao Legislativo pelo governo federal após consulta pública que ouviu quase 150 mil estudantes, professores e comunidade escolar. A principal mudança no texto-base do PL, que agora será analisado pelo Senado, é a ampliação da carga horária para 2,4 mil horas destinadas à formação geral básica (somados os três anos). Uma vitória do campo educacional, na avaliação do coletivo, contra o “retrocesso” que era previsto por Temer.
Na reforma do ensino médio estabelecida em 2017, eram previstas 1,8 mil horas para a formação básica. E 1,2 mil horas para os itinerários formativos. Ou seja, as disciplinas que o aluno escolhe para se aprofundar a partir do que lhe é ofertado. “Algo distante do artigo 205 da Constituição”, explicam os especialistas. A norma estabelece o direito de acesso a uma formação científica, cultural e humanística comum. Em nota, o coletivo fez alertas, porém, sobre outros pontos do texto que não correspondem às demandas sociais apontadas pelo Documento Final da Conferência Nacional de Educação (Conae) 2024.
Pontos rejeitados por especialistas
Eles contestam, por exemplo, a falta de garantia das 2,4 mil horas de formação geral aos estudantes de cursos técnicos-profissionais. Ao contrário, pelo texto aprovado, eles terão carga horária reduzida. A medida, diz o coletivo, remete à Lei Orgânica do Ensino Secundário, criada em 1942 no governo de Getúlio Vargas. Essa legislação institucionalizou um sistema educacional dual que tornou exclusivo os cursos “clássico” e “científico” para as elites condutoras do país. Enquanto aos demais, era oferecido o ensino técnico e profissional.
A divisão “foi parcialmente superada na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1996”, aponta o grupo. Mas o PL 5.230 “recupera a velha dualidade, induzindo a uma forte segmentação no sistema escolar brasileiro e agravando ainda mais as desigualdades educacionais e sociais”, afirmam. O coletivo é integrado por profissionais de referência, como Andressa Pellanda, da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Daniel Cara, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e da CNDE, e Monica Ribeiro da Silva, da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e do Observatório do Ensino Médio, entre outros nomes.
O coletivo também contesta que o estabelecimento da carga horária mínima não garante as 13 disciplinas científicas obrigatórias. Assim como abre espaço para que a formação geral básica seja permeada por “inovações” curriculares semelhantes às que foram implementadas desde 2017 com o “Novo” Ensino Médio. “Isso significa negar aos estudantes o conhecimento historicamente produzido e substituir professores com formação por quaisquer pessoas que aceitem transmitir conteúdos nas salas de aula”, advertem.
Redução e precarização
Os profissionais da educação destacam que o texto “mantém o reducionismo curricular por meio da vinculação da política do Ensino Médio à Base Nacional Comum Curricular (BNCC), a partir da organização em quatro áreas e suas tecnologias”. Isso porque o PL estabelece que os itinerários formativos terão carga mínima de 600 horas e serão compostos pelo aprofundamento das áreas de conhecimento, consideradas as seguintes ênfases: linguagens e suas tecnologias; matemática e suas tecnologias; ciências da natureza e suas tecnologias; ciências humanas e sociais aplicadas; e formação técnica e profissional.
A nota chama atenção ainda para brechas no projeto que podem facilitar a privatização da educação via possibilidade de oferta de cursos técnico-profissionais por organizações privadas. Além de permitir a oferta de ensino a distância (EaD) na educação básica. O trabalho dos docentes também é precarizado com as mudanças, apontam, diante da autorização dada para contratação de profissionais com “notório saber” – não formados – para a docência nos cursos de formação técnica e profissional.
Ao cobrar mudanças no Senado, os educadores pedem a obrigatoriedade do ensino de Língua Espanhola para integração regional e cultural com os demais países da América Latina. O coletivo também cita, por fim, o risco de indução à desescolarização com o PL. Uma vez que estudantes que já trabalham poderão se matricular nas escolas de tempo integral, mas poderão ter frequência em tempo parcial.
Expectativa de mudanças no Senado
“Há muito o que ser melhorado no Senado Federal, pois o texto é muito ruim em muitos aspectos. Muitos”, afirmou Daniel Cara na rede X, antigo Twitter.
Alguns parlamentares da base do governo também criticaram as mudanças aprovadas. A deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ) ressaltou que, diferentemente de governos anteriores, o presidente Lula “realizou consulta pública, ouviu a Conferência Nacional e enviou o projeto modificado para a Câmara”.
Jandira, porém, concordou que a proposta dos deputados deixou lacunas. “Avançamos dentro das limitações da correlação de forças no Parlamento. (…) É essencial continuarmos trabalhando por uma educação pública de qualidade e contra os retrocessos. Parabenizo todos os estudantes e professores pela mobilização e pressão por mudanças positivas. Seguimos em frente!”, pediu a parlamentar.
“O novo Ensino Médio” é melhor que o caos em vigor, mas tem várias insuficiências. Avançou, aqui e ali, mas avançar do muito ruim pro menos pior é pouco! Nossos estudantes mereciam muito mais!”, acrescentou o deputado Chico Alencar (Psol-RJ). A expectativa dos críticos é de que a proposta, que ainda precisará ser votada pelo Senado, seja alterada na Casa. Ainda não há data marcada para essa etapa.