Para extinguir BC e dolarizar economia, Milei precisa de maioria que ainda não tem
Para pesquisadora da Uerj, futuro próximo da Argentina tende a ser relativamente semelhante ao que se passou no Brasil de Jair Bolsonaro
Por Eduardo Maretti
São Paulo – Até o momento não se pode apostar nos rumos concretos que a Argentina de Javier Milei seguirá a partir de 10 de dezembro, do ponto de vista da economia, da política e das relações exteriores – que estão intrinsecamente vinculadas. O que diversos analistas vêm pontuando nos últimos dias é que pode acontecer com Milei o que sucede com frequência na democracia: após a eleição, as promessas e bravatas de campanha acabam se transformando em políticas mais realistas.
No caso do recém-eleito presidente argentino, as expectativas são maiores do que o normal, dado o caráter excêntrico de suas promessas: acabar com o Banco Central do país, dolarizar a economia, incentivar e facilitar a posse de armas e outras propostas.
Do ponto de vista político, a pesquisadora Miriam Saraiva, do Departamento de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), acredita que o futuro próximo dos hermanos tende a ser relativamente semelhante ao que se passou no Brasil de Jair Bolsonaro.
A começar de um fato elementar na política: Milei não tem maioria para implementar propostas que dependem do Congresso, como extinguir o Banco Central e dolarizar a economia. Neste caso, para se concretizar o projeto seria preciso mudar a Constituição argentina, que define o peso como moeda do país.
No caso das ameaças de Milei e aliados de que não vai “interagir” com Brasil e China e vai sair do Mercosul, a professora diz ser possível “acontecer algo muito parecido com o que se deu no Brasil com Bolsonaro”. Ela lembra que o então presidente brasileiro atacou a China e o bloco sul-americano sistematicamente. Mas os agentes econômicos, como exportadores de commodities para a China ou industrializados à Argentina, atuaram contra isso, incluindo a poderosa Confederação Nacional da Indústria (CNI), que defendeu o Mercosul. Depois, a relação de Bolsonaro com a Argentina azedou com a eleição do peronista Alberto Fernández, que sucedeu o neoliberal Mauricio Macri.
“Acredito que com Milei na Argentina pode ser mais ou menos assim. As relações econômicas sendo sustentadas por pressão dos agentes econômicos, de um lado, e de outro o discurso agressivo, que no Brasil vieram principalmente de Bolsonaro, seus filhos e o chanceler Ernesto Araújo”, recorda Miriam. O Mercosul é um bom exemplo: “apesar de Bolsonaro, a tarifa externa comum segue existindo e o comércio entre os dois países também seguiu. E a Argentina continua a ser o terceiro parceiro do Brasil, como era antes.”
Miriam lembra que líderes da extrema direita (Trump, Milei e a família Bolsonaro) são mais “comunicadores” do que políticos. “Assim, seus governos ficam frágeis. Passa a haver um desencontro entre eles e os atores da economia e política.” Tanto é assim, lembra ela, que depois Bolsonaro acabou tendo que se aliar ao Centrão, para evitar uma queda precoce.
“Dolarização não seria uma medida imediata”
A pesquisadora Mariana Gainza, da faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires, confirma que a dolarização “não seria uma medida imediata, mas precisará, sim, mudar a Constituição”. “Quanto às reacomodações na Câmara de Deputados (em busca de maioria), ainda não começaram. Vamos saber aos poucos como vão se alinhar os deputados e senadores eleitos. Veremos quais darão o salto ao mileísmo”, diz. Segundo Mariana, “(o ex-presidente) Mauricio Macri está fazendo tudo para juntar forças pró-Milei”.
Usando um raciocínio simples, para dolarizar a economia e extinguir o BC, o Estado e o governo precisam ter dólares para trocar com quem tem peso em mãos. Mas realizar essa tarefa é muito complicado. “Teria de fazer uma espécie de preparo anunciado, por exemplo, para daqui a seis meses dolarizar. Mas, com isso, a população faria uma corrida por dólar. E se fizer isso de uma hora para outra, a economia entra em caos”, avalia Miriam.
A Câmara dos Deputados argentina tem 257 parlamentares. São necessários 129 para formar maioria. Nas eleições gerais, a Casa ficou assim dividida:
• 105 deputados do Unión por la Patria (do peronista Sergio Massa);
• 92 do Juntos por el Cambio (do neoliberal Mauricio Macri);
• 39 do La Libertad Avanza (de Javier Milei);
• 8 com a Tercera Vía (centro-esquerda);
• 5 com a Izquierda;
• 8 cadeiras com outros partidos.
Paulo Nogueira: “quem dolariza perde autonomia”
Em entrevista ao Seu Jornal, da TVT, o economista Paulo Nogueira Batista destacou que o preço de se dolarizar a economia é altíssimo. “Quem dolariza perde autonomia monetária, perde a flexibilidade cambial e monetária, subordina-se à política monetária do país emissor (no caso, Estados Unidos)”, afirmou. “É uma proposta desastrosa”, avalia.
Nogueira Batista concorda que se Milei tentar tal política vai ter muitas dificuldades: “vai precisar reduzir a base monetária, o estoque de moeda em peso. A única forma de fazer isso é provocar uma grande depreciação cambial e hiperinflação, um processo muito custoso”, explica.
Pauta de costumes
Se há muitas semelhanças entre Bolsonaro e Milei, Miriam Saraiva aponta diferenças na pauta de costumes. “Milei já falou que não se importa com casamento gay, que tanto faz e cada um casa com quem quiser. Porém, perto da eleição ele moderou um pouco esse discurso.”
É fato que Milei já declarou abertamente não ter nada contra a união de pessoas do mesmo sexo. “Para mim, não tem a menor importância a escolha sexual. Se a pessoa quiser estar com um elefante, e se tem o consentimento do elefante, é um problema da pessoa e do elefante”, disse ele em uma entrevista.
Outra diferença significativa com o ex-presidente brasileiro é que Milei não tem alianças nem com setores religiosos, nem com militares, que são normalmente mais conservadores em costumes. “Ele ficou um pouco mais conservador na reta final para conseguir votos, mas não parece um traço da trajetória dele”, conclui Miriam Saraiva.