Para que o caminho às urnas não se transforme em marcha dos suicidas
Por José Geraldo de Santana Oliveira*
Na nada convencional novela “O clube dos suicidas”, do romancista escocês Robert Stevenson (1850-1894) — autor do clássico romance “O médico e o monstro” —, cavalheiros britânicos, enfastiados de sua vida fútil e buscando pôr fim a ela, ao preço de 40 libras, ingressavam-se em um funesto clube de morte, que, por meio de cartas de baralho, sorteava quem, dentre os seus participantes, seriam a vítima e o assassino de cada noite.
Tal clube não permitia desistência nem questionamento aos seus sorteios. Os sorteados, como vítima e algoz, eram obrigados a resignar-se e a entregar-se, espontaneamente, à sorte que lhes reservaram as cartas.
O quadro desenhado pelas eleições gerais, realizadas no último domingo, por mais inacreditável que possa parecer, guarda muitas semelhanças com a novela de Stevenson. Isso, claro, ressalvadas as devidas e necessárias proporções, de tempo, dimensões e danos.
Muitas dezenas de milhões de brasileiros, fartos de corrompidas desesperanças — parafraseando Manuel Bandeira, em seu magistral poema Mar Bravo —, que lhe são ditadas pelo atual quadro sócio-político, espontaneamente e com sofreguidão nunca dantes vista, marcharam, ao dia 7 de outubro corrente, e se dispõem a marchar, ao próximo dia 28 deste mês, para o suicídio: votando em Jair Bolsonaro para presidente da República.
Esclareça-se, desde logo, que dentre esses milhões não se incluem os que votaram com consciência e com o vil propósito de mergulhar o país no abismo, e que não são poucos, devendo ser computados, também, na casa de alguns milhões.
Para além da diferença de tempo, de quase um século e meio, há muitas outras entre a citada novela e o evento brasileiro. Naquela, o suicídio era individual; nesse coletivo, envolvendo todos, tendo votado ou não em Bolsonaro.
Na novela, o preço de ingresso no clube era a quantia de 40 libras; no caso concreto, o voto, na hora de decidir, e a vida decente, ao depois.
Naquela, vítima e algoz eram sorteados entre os participantes; no Brasil, aos participantes cabe unicamente a condição de vítima; o seu algoz será sempre o mesmo, escolhido pelo voto, se isso se confirmar ao dia 28 de outubro corrente; o que não é esperado pelos outros milhões que se recusam a associar-se a este macabro clube.
Na ficção, os que ingressavam no fatídico clube buscavam a morte; na realidade, os que votam em Bolsonaro, paradoxalmente, almejam vida nova e plena de realização, fazendo-o pelo caminho da fé cega e desprovida de qualquer sopro de realidade; como se isto fosse possível; como se a própria história brasileira recente não fosse testemunha ocular de que esse caminho é das trevas, e não de porvir.
Para tanto, basta que se analisem as terríveis consequências das eleições presidenciais de 1989, quando foi escolhido o hoje escorraçado “caçador de marajás”, que igualmente se apresentava como o único guia ao paraíso: Fernando Collor de Mello.
O quadro eleitoral brasileiro, se desafortunadamente for confirmado no segundo turno, corroborará a assertiva de Hegel, para quem os fatos e os personagens históricos acontecem, por assim dizer, duas vezes, sendo ambas, Collor e Bolsonaro, grosseira farsa.
No entanto, é forçoso concluir que a farsa representada pelo segundo (Bolsonaro) será de muito maior monta, pois que a sua proposital e consciente conduta de desprezo absoluto pela ordem democrática é conhecida por todos. Afinal, são sete legislaturas consecutivas, que totalizam 28 anos de mandato, militando ostensivamente contra ela.
Nesses 28 anos de mandato, segundo levantamento do jornal Folha de S.Paulo, publicado aos 13 de novembro de 2017, Bolsonaro apresentou 166 projetos de leis, dos quais mais de um terço tinha por escopo a criação de benefícios para os militares, ou seja, o seu caráter era meramente corporativo; deles, apenas dois foram convertidos em lei.
O voto de Bolsonaro na Câmara Federal nunca visou à ampliação de direitos políticos e sociais. Ao contrário, pautou-se pela defesa de sua redução. Para comprovar essa assertiva, basta citar que ele votou pela aprovação da proposta de emenda constitucional (PEC) N. 241/2016 — conhecida como PEC do fim do mundo —, que se converteu na emenda constitucional (EC) N. 95/2016, que congela os investimentos em saúde, educação, transporte, moradia e Previdência Social por 20 anos; votou contra a subemenda que tentava excluir a saúde e a educação desse congelamento; votou contra a exclusão das contribuições sociais da desvinculação das receitas da União (DRU), que retira 30% dos totais destinados aos investimentos sociais; votou sim ao projeto de lei (PL) N. 6787/2016, convertido na Lei N. 13467/2017, que promove a famigerada reforma trabalhista.
O seu plano de governo prevê a criação da carteira de trabalho (CTPS) verde-amarela, que excluirá o seu portador de todos os direitos e garantias previstos na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e das convenções e acordos coletivos de trabalho. Isso representa o aprofundamento da (de)reforma trabalhista, que, apesar de seu caráter unicamente excludente, foi mais tímida, uma vez que limita essa perda de direito aos que possuam diploma de curso superior e ganhem ao menos o equivalente a duas vezes o teto do Regime Geral de Previdência Social (RGPS), atualmente, correspondendo a R$ 11.291,60 (R$ 5.645,80, valor do teto, multiplicado por 2), conforme o Art. 444, Parágrafo único, da CLT.
A suposta faculdade de opção pela CTPS verde-amarela ou pela tradicional, que em tese assegura todos os direitos não alcançados por aquela, não passa de grosseira tapeação para enganar os menos atentos.
Mais uma vez, vale o registro histórico. Em 1966, o regime militar — ferrenhamente defendido por Bolsonaro —, acabou com a estabilidade decenal assegurada pelo Art. 492, da CLT — que remontava a 1923, pois já era previsto pela Lei Eloy Chaves (Decreto Legislativo N. 4.682) —, substituindo-a pelo FGTS, que, hipoteticamente, era opcional. Porém, quem por ele não optava, no ato da contratação, simplesmente não era contratado.
Por tudo isto, soa completamente dissociada do contexto sócio-político do momento a grosseira e desonesta afirmação de que a polarização do segundo turno tem como pano de fundo o “petismo” e o “antipetismo”. A verdade é que o Brasil está diante de um colossal dilema, jamais enfrentado, qual seja o de mergulhar-se no abismo, decretando o fim da ordem democrática, que se concretizará se Bolsonaro for eleito, ou salvar a ordem democrática, com os seus percalços e desafios já patentes, o que só será possível com a vitória de Fernando Hadad.
Destarte, parafraseando o recém-falecido filósofo húngaro, István Meszáros, esse é o tamanho da montanha que devemos conquistar: salvar a ordem democrática.
*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee