Para resolver a questão do financiamento das entidades sindicais
Não basta que se aprove lei que trate do custeio solidário das atividades sindicais, como até agora se tem apontado na discussão entre as centrais sindicais
Por José Geraldo de Santana Oliveira*
O sindicalismo laboral brasileiro chega aos 120 anos de existência legal (a primeira norma a dela tratar foi o Decreto 979, de 6 de janeiro de 1903) se debatendo em meio à maior e mais contundente crise de sua história secular. Ao envelhecimento do enquadramento sindical ditado pela CLT — que reduz a representatividade sindical a 36% do total da força de trabalho ocupada (de 98,3 milhões, conforme a Pnad contínua divulgada aos 17 de março corrente), pois que se resume a quem tem CTPS assinada —, soma-se o igual envelhecimento dos conceitos e práticas sindicais.
Todavia, o cerne da referida crise reside na expressa e constitucionalmente vedada intervenção estatal (Art. 8º, I e II, da CF). Hoje não mais pelos carcomidos e nada saudosos instrumentos do regime militar, mas, sim, pelo poder ilimitado conferido ao empregador pelas Leis 13.429/2107 (lei da terceirização) e 13.467/2017 (reforma trabalhista) de ditar ao regras e condições dos contratos de trabalho em hipotéticos e fraudulentos contratos individuais, o que importa esvaziamento quase total das funções sindicais. Bem assim pelo estrangulamento financeiro imposto às entidades sindicais, especialmente pelo STF, coadjuvado pela citada Lei 13.467/2017.
Neste espaço, será abordado apenas a espinhosa questão do financiamento sindical, fazendo-o como singela contribuição que a Contee abrirá com o seminário em parceria com o CES (Centro Nacional de Estudos Sindicais e do Trabalho), marcado para o dia 29 de março em curso, a partir das 18h, por meio remoto.
Graças à retrógrada jurisprudência do STF, firmada a partir dos julgados que ensejaram a Súmula 666 (besta do apocalipse), convertida, em 2015, em Súmula vinculante 40, e escancarada com o julgamento da ADI 5794 — na qual a Contee atuou como amicus curiae e que julgou constitucional a nova redação do Art. 582 da CLT, a contribuição sindical foi transformada de compulsória em facultativa. Portanto, ela é pendente de prévia autorização.
As únicas contribuições exigíveis são a confederativa (Art. 8º, IV, da CF), a associativa (Art. 545 da CLT) e a assistencial, com o agravante de que todas elas somente são exigíveis dos associados, não obstante os sindicatos, por força do Art. 8º, Ii e III, da CF, continuar representando toda a categoria. Como bem o sabem os sindicatos, as federações, as confederações e as centrais sindicais, sentindo as danosas consequências, isso levou ao estrangulamento sindical, provocando até mesmo a morte, por inanição, de muitos sindicatos e federações.
Registra-se, desde logo, que quadro perverso não decorre de anomia (falta de norma). Suas causas principais são a antinomia (contradição entre normas de igual hierarquia) e, insista-se, a danosa jurisprudência do STF e do TST, como se demonstrará nas linhas abaixo.
Quem se der ao recomendável e judicioso trabalho de visitar as normas de natureza sindical trazidas ao mundo jurídico no período entre o citado Decreto 979/1903 e a famigerada Lei 13.467/2017, constatará que nenhuma delas criou qualquer empecilho ao financiamento sindical. Todas elas, sem exceção, quer por não abordarem o tema de forma específica, quer por o fazerem solene e expressamente, permitiam a cobrança de contribuição de todos os integrantes da categoria, associados ou não.
A título de ilustração, trazem-se, aqui, alguns dispositivos que trataram solenemente dessa, hoje, espinhosa questão.
O Art. 5º do Decreto 1.637, de 5 de janeiro de 1907 — o primeiro a regulamentar a organização sindical urbana —, estabelecia que ninguém era obrigado a filiar-se e/ou manter-se filiado. Porém, se não contribuísse com o respectivo sindicato, não faria jus a nenhum direito por esse conquistado:
“Art. 5º. Ninguem será obrigado a entrar para um syndicato sob pretexto algum, e os profissionaes que forem syndicatarios poderão retirar-se em todo tempo, perdendo, porém, as cotizações realizadas, os direitos, concessões e vantagens inherentes ao syndicato, em favor deste, sem direito a reclamação alguma e sem prejuizo da cotização do anno corrente”- redação original.
No mesmo sentido dispunha o Art. 8º do Decreto 23.611, de 20 de dezembro de 1933, que revogou os decretos 979/1903 e 1.637/1907:
“Art. 8º Ninguem será obrigado a entrar para um consórcio profissional-cooperativo sob pretexto algum, e os profissionais que fôrem cosorciados poderão retirar-se em qualquer tempo, perdendo, porém, as cotizações realizadas, os direitos, concessões e vantagens inerentes ao consórcio, em favor dêste, sem direito à reclamação alguma e sem prejuízo da cotização do ano corrente”.
O Art. 138 da CF de 1937, estabelecia:
“Art 138 – A associação profissional ou sindical é livre. Somente, porém, o sindicato regularmente reconhecido pelo Estado tem o direito de representação legal dos que participarem da categoria de produção para que foi constituído, e de defender-lhes os direitos perante o Estado e as outras associações profissionais, estipular contratos coletivos de trabalho obrigatórios para todos os seus associados, impor-lhes contribuições e exercer em relação a eles funções delegadas de Poder Público.”
O Art. 513, caput e alínea ‘e’, da CLT, com a redação dado pelo Decreto-lei 8.897-A, de 1946, que se mantém incólume ainda hoje, dispõe:
“Art. 513. São prerrogativas dos sindicatos:
[…]
- e)impor contribuições a todos aqueles que participam das categorias econômicas ou profissionais ou das profissões liberais representadas”.
Frise-se que essas contribuições são independentes da contribuição associativa e da sindical, respectivamente retratadas no Art. 545 e no 578 e seguintes da CLT.
Para pôr pá de cal sobre qualquer questionamento acerca da autoridade e legitimidade sindical para cobrar contribuições de todos os integrantes da categoria, sobreveio o Art. 8º, IV, da CF, que assim estabelece:
“Art. 8º […]
IV – a assembleia geral fixará a contribuição que, em se tratando de categoria profissional, será descontada em folha, para custeio do sistema confederativo da representação sindical respectiva, independentemente da contribuição prevista em lei”.
Como se vê, não há falta nem deficiência de norma capaz de assegurar o custeio das entidades sindicais que compõem o sistema confederativo, reconhecido pelo Art. 8º da CF.
Há, isto sim, jurisprudência avessa a esse desiderato, claramente direcionada ao definhamento sindical laboral, a pretexto de respeitar a garantia inserta no Art. 8º, V, da CF, segundo o qual “V – ninguém será obrigado a filiar-se ou a manter-se filiado a sindicato”, como se a cobrança de contribuição de trabalhadores/as não associados importasse grave e intolerável violação desse comando constitucional.
O mais grave é que essa jurisprudência destrutiva da organização sindical laboral não é recente, nem começou com a Lei 13.467/2017. Ao contrário, vem se firmando desde o final da década de 1990, como comprovam os julgados abaixo. Não obstante sua nocividade, isso passou despercebido pelas entidades sindicais, que, absortas pela cobrança sindical, não se deram conta do que ela representava para seu futuro sombrio, que chegou com o fim da compulsoriedade da contribuição sindical. Por isso, não agiram!
No âmbito do STF, proferido pela ministra Ellen Gracie, no RE (Recurso Extraordinário) 224885, julgado em 2004, sinaliza-se claramente o que foi construído ao longo de quase duas décadas, sem que o movimento sindical laboral reagisse:
“RECURSO EXTRAORDINÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL. CONTRIBUIÇÕES DESTINADAS AO CUSTEIO DE SINDICATOS. EXIGIBILIDADE. 1. A contribuição assistencial visa a custear as atividades assistenciais dos sindicatos, principalmente no curso de negociações coletivas. A contribuição confederativa destina-se ao financiamento do sistema confederativo de representação sindical patronal ou obreira. Destas, somente a segunda encontra previsão na Constituição Federal (art. 8º, IV), que confere à assembleia geral a atribuição para criá-la. Este dispositivo constitucional garantiu a sobrevivência da contribuição sindical, prevista na CLT. 2. Questão pacificada nesta Corte, no sentido de que somente a contribuição sindical prevista na CLT, por ter caráter parafiscal, é exigível de toda a categoria independente de filiação. 3. Entendimento consolidado no sentido de que a discussão acerca da necessidade de expressa manifestação do empregado em relação ao desconto em folha da contribuição assistencial não tem porte constitucional, e, por isso, é insuscetível de análise em sede de recurso extraordinário. 4. Agravo regimental improvido. (STF, RE 225.885 AgR/RS, Rel. Min. Ellen Gracie, Segunda Turma, DJe de 6.8.2004)”
Dissipa qualquer dúvida a respeito da longevidade dessa catastrófica jurisprudência o voto proferido pelo ministro Gilmar Mendes, acolhido pela maioria dos demais ministros, no ARE (agravo em recurso extraordinário) 1018459, julgado em 23 de fevereiro de 2017 — portanto, antes da aprovação da Lei 13.467/2017.
Eis a Decisão proferida:
“Recurso Extraordinário. Repercussão Geral. 2. Acordos e convenções coletivas de trabalho. Imposição de contribuições assistenciais compulsórias descontadas de empregados não filiados ao sindicato respectivo. Impossibilidade. Natureza não tributária da contribuição. Violação ao princípio da legalidade tributária. Precedentes. 3. Recurso extraordinário não provido. Reafirmação de jurisprudência da Corte.
Decisão: O Tribunal, por unanimidade, reputou constitucional a questão. O Tribunal, por unanimidade, reconheceu a existência de repercussão geral da questão constitucional suscitada. No mérito, por maioria, reafirmou a jurisprudência dominante sobre a matéria, vencido o Ministro Marco Aurélio. Não se manifestaram os Ministros Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia.”
Eis o voto aprovado, em excertos literais:
“Assim, a questão ora posta reside em saber se é compatível com a Constituição a imposição de contribuição compulsória, por meio de acordo ou convenção coletiva de trabalho, a empregados não filiados ao sindicato respectivo. Essa discussão é de inegável relevância dos pontos de vista jurídico, econômico e social, na medida em que fixa tese potencialmente direcionada a todos os empregados não filiados a sindicatos, tendo reflexo também na organização do sistema sindical brasileiro e na sua forma de custeio. Portanto, o conflito não se limita aos interesses jurídicos das partes recorrentes, razão pela qual a repercussão geral da matéria deve ser reconhecida. Para melhor entender a controvérsia, é imperioso distinguir a contribuição sindical, prevista na Constituição (art. 8º, parte final do inciso IV) e instituída por lei (art. 578 da CLT), em prol dos interesses das categorias profissionais, com caráter tributário (logo obrigatório) da denominada contribuição assistencial, também conhecida como taxa assistencial. Esta última é destinada a custear as atividades assistenciais do sindicato, principalmente no curso de negociações coletivas, e não tem natureza tributária. A questão encontra-se, inclusive, pacificada pela jurisprudência deste Supremo Tribunal, no sentido de que somente a contribuição sindical prevista especificamente na CLT, por ter caráter tributário, é exigível de toda a categoria, independentemente de filiação. Nesse sentido, registro os seguintes precedentes: Agravo regimental do recurso extraordinário. Contribuição confederativa. Súmula nº 666/STF.
Precedentes. 1. A contribuição confederativa de que trata o art. 8º, IV, da Constituição é exigível apenas dos filiados ao respectivo sindicato (Súmula nº 666/STF). 2. Agravo regimental não provido. (RE 495248 AgR/SE, Rel. Min. Dias Toffoli, Primeira Turma, DJe 26.8.2013) Extraordinário. Inadmissibilidade. Jurisprudência assentada. Contribuição confederativa. Exigibilidade apenas de filiados. Aplicação da súmula 666. Ausência de razões novas. Decisão mantida. Agravo regimental improvido. Nega-se provimento a agravo regimental tendente a impugnar, sem razões novas, decisão fundada em jurisprudência assente na Corte. (RE 176.533 AgR/SP, Min. Rel. Cezar Peluso, Segunda Turma, Dje 16.5.2008) Recurso extraordinário. 2. Contribuição confederativa. Art. 8º, IV, da Constituição Federal. 3. Instituição por Assembléia Geral. 4. A contribuição confederativa, por não ser instituída por lei, não tem caráter tributário – art. 8º, IV, da CF – sendo obrigatória apenas para os filiados do sindicato. 5. Agravo regimental a que se nega provimento. (RE 171.905 AgR/SP, Min. Rel. Néri da Silveira, Segunda Turma, DJe 22.5.1998)
[…]
A interpretação do artigo 513, e, da Consolidação das Leis do Trabalho (de 1943) deve ser feita à luz da Constituição da República de 1988, que consagra os princípios da liberdade de associação e de sindicalização (art. 5º, inciso XX; e art. 8º, inciso V). O princípio da liberdade de associação, nas palavras do Min. Menezes Direito, está previsto no ordenamento jurídico brasileiro desde a Constituição de 1891, tendo sido repetido em todas as Constituições que lhe sucederam. A Carta de 1988, por sua vez, com nítida influência da Constituição portuguesa (art. 46), tratou analiticamente do princípio, enunciando-o de maneira expressa, tanto em sua dimensão positiva (o direito de associar-se e de formar associações) quanto em sua dimensão negativa, a de que ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado (art. 5º, inciso XX). (ADI 3.464/DF, Rel. Min. Menezes Direito, Tribunal Pleno, DJe 29.10.2008). E a liberdade de contribuição é mero corolário lógico do direito de associar-se ou não. Portanto, ainda que a Constituição reconheça, em seu art. 7º, XXVI, a força das convenções e acordos coletivos de trabalho, com base nos princípios constitucionais da livre associação ou sindicalização, é impossível a cobrança de contribuição assistencial dos empregados não filiados ao sindicato, pelos motivos já expostos.
[…]
Ante todo exposto, manifesto-me pela existência de repercussão geral da questão constitucional debatida e pela reafirmação da jurisprudência desta Corte, de modo a fixar o entendimento no sentido de que é inconstitucional a instituição, por acordo, convenção coletiva ou sentença normativa, de contribuições que se imponham compulsoriamente a empregados da categoria não sindicalizados. Fixada essa tese, conheço do agravo e nego provimento ao recurso extraordinário (art. 932, VIII, do NCPC, c/c art. 21, §1º, do RISTF). Publique-se. Brasília, 3 de fevereiro de 2017. Ministro Gilmar Mendes Relator”.
Na esfera do TST, a contestada jurisprudência igualmente remonta ao final da década de 1990, como faz prova a OJ (Orientação Jurisprudencial) 17 e o PN (Precedente Normativo) 119, ambos da Seção de Dissídios Coletivos, abaixo transcritas.
“OJ nº 17 da SDC – TST
CONTRIBUIÇÕES PARA ENTIDADES SINDICAIS. INCONSTITUCIONALIDADE DE SUA EXTENSÃO A NÃO ASSOCIADOS. (mantida) – DEJT divulgado em 25.08.2014
As cláusulas coletivas que estabeleçam contribuição em favor de entidade sindical, a qualquer título, obrigando trabalhadores não sindicalizados, são ofensivas ao direito de livre associação e sindicalização, constitucionalmente assegurado, e, portanto, nulas, sendo passíveis de devolução, por via própria, os respectivos valores eventualmente descontados.
IUJ 436141/1998 – Min. Armando de Brito
Julgado em 11.05.1998 – Decisão unânime”
“PN nº 119 do TST
CONTRIBUIÇÕES SINDICAIS – INOBSERVÂNCIA DE PRECEITOS CONSTITUCIONAIS – (mantido) – DEJT divulgado em 25.08.2014
A Constituição daRepública, em seus arts. 5º, XX e 8º,V, assegura o direito de livre associação e sindicalização. É ofensiva a essa modalidade de liberdade cláusula constante de acordo, convenção coletiva ou sentença normativa estabelecendo contribuição em favor deentidade sindical a título de taxa para custeio do sistema confederativo, assistencial, revigoramento ou fortalecimento sindicale outras da mesma espécie, obrigando trabalhadores nãosindicalizados. Sendo nulas as estipulações que inobservemtal restrição, tornam-se passíveis de devolução os valores irregularmente descontados.”
Destarte, não basta que se aprove lei que trate do custeio solidário das atividades sindicais, como até agora se tem apontado na discussão entre as centrais sindicais, posto que normas desse jaez já existem e que são, como já anotado, pela ordem cronológica: Art. 513, ‘e’, da CLT, e 8º, IV, da CF.
Para se resolver de vez a questão, três são os caminhos de descortinam, a saber:
1) alteração do Art. 8º, IV, da CF, estabelecendo-se no novo texto constitucional que a contribuição confederativa é exigível de todos os integrantes da categoria, sejam associados ou não, o que implica a derrogação da Súmula vinculante 40;
2) alteração do Art. 582 da CLT, para conferir natureza tributária à contribuição que nele for estabelecida, pouco importando sua nomenclatura, o que restauraria a jurisprudência do STF anterior à ADI 5794. Registra-se que essa alternativa encontra amparo na atual redação do Art. 8º, da CF: “IV – a assembleia geral fixará a contribuição que, em se tratando de categoria profissional, será descontada em folha, para custeio do sistema confederativo da representação sindical respectiva, independentemente da contribuição prevista em lei”;
3) alteração do Art. 513, ‘e’, para lhe acrescentar que a contribuição assistencial (negocial ou outro nomenclatura que se lhe der) é devida por associados e não associados, mediante concertação política, com a participação do STF e do TST, na elaboração do projeto de lei que a antecederá. Isso teria como consequência a revisão da jurisprudência desses dois tribunais.
Ao debate!
*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee