‘Paro alunos na rua para pedir que voltem à aula’: o desafio de educadores contra o abandono escolar na pandemia

'Estima-se que cada jovem com educação básica viverá quatro anos de vida a mais que um jovem que não terminou a escolaridade — e tende a ter um menor envolvimento em atividades violentas, como homicídios', diz estudo

A diretora Marília de Jesus Barbosa e seus colegas têm buscado os alunos, um a um, para lembra-los de aderir ao ano letivo de 2021 na Escola Municipal Viveiros Raposo, em Alcântara, cidade de 22 mil habitantes no Maranhão.

“Quando a gente sente falta de um aluno, vai até a casa dele ou corre atrás dele na rua”, diz Barbosa à BBC News Brasil sobre os esforços em manter os estudantes engajados depois de um ano difícil, de escolas fechadas e dificuldade em promover aulas remotas.

Quando começou a pandemia, um ano atrás, a Viveiros Raposo passou a entregar materiais de atividades para os alunos fazerem em casa e devolvê-las 15 dias depois. O contato com os professores era feito para tirar dúvidas.

“As famílias aqui são humildes. A maior questão é a dificuldade em estudar sozinhos, sem apoio. Muitos não têm internet ou celular em casa”, explica Barbosa. “Houve evasão, porque eles se desestimularam, ficaram tristes. Acabam querendo desistir.”

Por isso é que decidiram procurar os cerca de 400 estudantes individualmente, na tentativa de evitar que abandonassem a escola.

Para as turmas de ensino fundamental 2 (6° ao 9° ano), diz Barbosa, foi possível manter quase todas as matrículas. Com os cerca de 60 alunos do EJA (Educação de Jovens e Adultos) foi mais difícil, “mas conseguimos trazer muitos deles de volta, falando que é importante concluir o fundamental para terem mais emprego, mais renda, e também para incentivarem os próprios filhos a estudar”.

“Quando não vou na casa deles, com carinho eu paro eles na rua quando os encontro, pergunto o que está acontecendo na família e falo que a educação é a melhor solução”, prossegue Barbosa. “Se a gente não for atrás, estará contribuindo para eles se afundarem ainda mais.”

O exemplo maranhense retrata um desafio enorme do ensino público de todo o Brasil em 2021: como conter o abandono escolar, sob a insegurança (financeira, alimentar e de saúde) provocada pela pandemia e em meio aos múltiplos percalços do ensino não presencial.

Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE, em outubro de 2020, um contingente de 1,38 milhão de estudantes de 6 a 17 anos (3,8%) estava sem frequentar a escola, presencial ou remotamente. O percentual já era mais alto do que a média nacional de 2% registrada em 2019.

“A esses estudantes que não frequentavam, somam-se outros 4,1 milhões que afirmaram frequentar a escola, mas não tiveram acesso a atividades escolares e não estavam de férias (11,2%). Assim, estima-se que mais de 5,5 milhões de crianças e adolescentes tiveram seu direito à educação negado em 2020”, diz o relatório Enfrentamento da Cultura do Atraso Escolar, lançado neste ano pela Unicef, braço da Organização das Nações Unidas (ONU) para a infância.

Perdem os jovens e o país

E especialistas e pesquisadores em educação preveem que esses números negativos continuarão a crescer em 2021, colocando em risco décadas de trabalho para reduzir os índices de abandono escolar no Brasil, e com amplos impactos sociais e econômicos que serão sentidos por toda a sociedade.

“As vulnerabilidades socioeconômicas vão se acirrar neste ano, e o desemprego e a pobreza, por si só, já aumentariam a evasão”, diz à BBC News Brasil o pesquisador Luiz Cantarelli, do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP) e coautor de estudo que avalia a resposta das redes públicas de ensino à pandemia.

Essas respostas, por sinal, foram tão díspares entre si que contribuirão para aumentar a desigualdade educacional.

“Dependendo da rede pública que frequenta, o aluno vai ser atingido por um plano (de aulas) melhor ou pior. E, dentro da mesma sala, pode haver aluno que conseguiu acompanhar melhor que o colega, o que pode ser um agravante para que esse colega decida abandonar a escola, ao sentir que não consegue acompanhar (o ritmo).”

Assim, diz Cantarelli, “a tendência é que o abandono aumente e se arraste por anos”, um problema que tende a ser agravado pela queda nos investimentos federais, estaduais e municipais na educação e pela ausência de coordenação nacional por parte do Ministério da Educação dos esforços na área durante a pandemia.

O custo disso é alto — e não se limita aos alunos que ficam pelo caminho. Cada jovem que abandona a escola representa uma perda para o Brasil de R$ 372 mil por ano, segundo um cálculo do economista Ricardo Paes de Barros feito no ano passado, em estudo do Insper com a Fundação Roberto Marinho.

No ano, esse custo total da evasão escolar no país chega a R$ 214 bilhões, cerca de 3% do Produto Interno Bruto (PIB). Isso porque a ausência de educação vai impactar a capacidade produtiva dessas pessoas ao longo de toda sua vida.

“Os jovens que têm a educação básica completa passam, em média, mais tempo de sua vida produtiva ocupados e em empregos formais, com maior remuneração; têm maior expectativa de vida com qualidade — estima-se que cada jovem com educação básica viverá quatro anos de vida a mais que um jovem que não terminou a escolaridade — e tendem a ter um menor envolvimento em atividades violentas, como homicídios”, diz o estudo.

“A evasão representa uma perda de 26% do valor da vida de um jovem.”

‘Queremos as crianças estudando até dezembro’

Em Neópolis, município de 18 mil habitantes no interior de Sergipe, os alarmes começaram a soar quando as matrículas na rede municipal de educação caíram drasticamente.

Uma das escolas, que tivera 604 estudantes matriculados em 2020, começou este ano com apenas 222 matrículas, explica Miriam Barroso, coordenadora operacional municipal da iniciativa Busca Ativa Escolar, projeto implementado em parceria com a Unicef e a União dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) que tem revertido o problema com campanhas e com uma atenção individual a cada família ausente do ambiente escolar.

Educadores e agentes sociais de Neópolis têm batido de porta em porta, para levar materiais didáticos, fazer contatos com estudantes e tentar manter seu vínculo com a escola.

“A gente encontrou uma mãe e um filho de 4 anos, que haviam vindo de outro município. Fomos até a casa deles, e eles não tinham documento nenhum. São coisas que a gente pensa que não existem mais no Brasil”, explica Barroso.

Por situações assim, o Busca Ativa mobiliza não só educadores, mas também assistentes sociais, Conselho Tutelar e agentes de saúde.

“É cansativo, mas dá resultado. E não é só matrícula que interessa. Queremos que as crianças fiquem estudando até dezembro”, prossegue Barroso. “Vamos de casa em casa, para não deixar ninguém para trás.”

Neste ano letivo, a rede municipal pretende organizar sessões de atividades presenciais para pequenos grupos de alunos, para complementar o ensino remoto e para que os estudantes possam conversar pessoalmente com os professores.

“Tem que ter muito acolhimento e afetividade também”, diz Barroso. “Muitas crianças ficaram com medo (do contágio), assim como os adultos. Fizemos vídeos motivacionais para atraí-los de volta, dizendo que a escola está fechada, mas a aprendizagem, não.”

Acompanhamento constante e garantia de acesso à internet

O problema da evasão não é novo: com base em dados de 2019, o IBGE estima que mais de 20% dos quase 50 milhões de brasileiros entre 14 e 29 anos não tenham completado alguma das etapas da educação básica.

A necessidade de trabalhar, o desinteresse pelas aulas e a gravidez foram citados como principais motivos para os jovens abandonarem a escola.

Desde o ano passado, três fatores fortemente associados à evasão escolar têm se intensificado, diz Olavo Nogueira, diretor-executivo da organização Todos Pela Educação: a perda de vínculo com a escola, a dificuldade em acompanhar as aulas e a necessidade de complementar a renda familiar.

A busca ativa, realizada pelos municípios citados nesta reportagem, é um importante esforço inicial, que precisa ser seguido de estratégias amplas, defende ele.

“Não basta apenas que os alunos voltem, porque existe também a evasão associada ao que acontece dentro do ambiente escolar”, explica Nogueira. “Vai haver o desafio de cuidar do (bem-estar) social e emocional dos alunos de fazer iniciativas de recuperação escolar e de acompanhamento das famílias, para identificar os que podem estar sob risco de evadir. O enfrentamento desse problema tem de ter um plano de longo prazo.”

Em muitos casos, o estudante se sente desamparado pela rede escolar, aponta Lorena Barberia, professora do Departamento de Ciência Política da USP e coautora, com Luiz Cantarelli e Pedro Schmalz, do estudo sobre ensino remoto.

“Um aluno que está no final do ensino fundamental e é mandado para o ensino médio acaba sendo jogado para uma realidade muito diferente, talvez até para uma outra escola”, diz ela. “Se ele não tiver um acompanhamento, um aconselhamento, isso pode aumentar a evasão escolar. Os alunos precisam de toda uma rede de apoio para fazer essa transição, e isso não está contemplado muito claramente nas estratégias (das redes de ensino).”

Outro ponto crucial, diz Barberia, é garantir a conectividade dos alunos, com acesso público de qualidade a internet e a aparelhos adequados, para que eles de fato consigam usufruir da educação remota nos momentos de paralisação do ensino presencial.

“Da mesma forma como cobramos o acesso (universalizado das pessoas) a água e eletricidade, hoje, na pandemia, precisamos entender que a internet é um bem público e temos de aumentar a acessibilidade”, diz.

Na cidade sergipana de Neópolis, a coordenadora Miriam Barroso via os impactos disso diariamente ao buscar os alunos em suas casas, para tentar trazê-los de volta ao ensino.

“Alguns pais dos nossos alunos chegaram a gastar dinheiro com plano de dados, mas acabava muito rápido, porque alguns tinham que acompanhar as aulas online de quatro filhos”, conta.

Uma preocupação adicional é com o fato de a pandemia estar solapando o ensino em faixas etárias nas quais o Brasil havia conseguido importantes avanços, tanto quantitativos como qualitativos, na educação. Uma revés em particular se dá com as crianças de 6 a 10 anos, que representavam o maior contingente entre os alunos que estavam sem acesso à educação no final do ano passado.

“Crianças de 6 a 10 anos sem acesso à educação eram exceção no Brasil, antes da pandemia. Essa mudança observada em 2020 pode ter impactos em toda uma geração. São crianças dos anos iniciais do ensino fundamental, fase de alfabetização e outras aprendizagens essenciais às demais etapas escolares. Ciclos de alfabetização incompletos podem acarretar reprovações e abandono escolar. É urgente reabrir as escolas, e mantê-las abertas, em segurança”, disse em comunicado Florence Bauer, representante da Unicef no Brasil.

Esse tema tem gerado debates até mesmo no Congresso Nacional, ao mesmo tempo em que muitos especialistas temem que a abertura escolar indiscriminada possa contribuir para o agravamento da pandemia.

Para a Unicef, é preciso também que o país inteiro deixe de ver o abandono escolar como algo corriqueiro.

“Esta é uma história que se repete, ano a ano, no Brasil. Começa com o estudante sendo reprovado a primeira vez. Seguem-se outras reprovações, abandono e tentativas de retorno às aulas. Sem oportunidades de aprender, ele vai ficando cada vez mais para trás, com anos de atraso escolar, até deixar definitivamente a escola, sem concluir a educação básica – muitas vezes antes até de ingressar no ensino médio”, diz Florence Bauer, no relatório Enfrentamento da Cultura do Atraso Escolar.

“Por trás desses números, está a naturalização do fracasso escolar. A maioria da sociedade aceita que um perfil específico de estudante passe pela escola sem aprender, sendo reprovado diversas vezes até desistir. Essa cultura do fracasso escolar acaba por excluir sempre os estudantes em situação de maior vulnerabilidade, que já sofrem outras violações de direitos dentro e fora da escola.”

BBC

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