PEC 287 não é ‘reforma’ da Previdência, mas deforma de toda a seguridade social
Por José Geraldo de Santana Oliveira*
A Câmara Federal recebeu, no dia 5 de dezembro corrente, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC), que recebeu o N. 287/2016, que promove profundo e inconcebível retrocesso da seguridade social — formada pela saúde, previdência social e assistência social —, que é o principal pilar de sustentação da Ordem Social preconizada pela Constituição Federal (CF) de 1988. A PEC foi anunciada pelo ilegítimo governo Temer, desde a sua assunção — melhor seria dizer usurpação — ao cargo de presidente da República.
Em primeiro lugar, é preciso que se deixe claro que a referida PEC não trata apenas da Previdência Social, estendendo-se também, e com igual grau de deformação, à assistência social. Como a saúde já foi duramente atingida pela PEC N. 55/2016, já aprovada pela Câmara Federal e em tramitação do Senado, aguardando o último turno de votação, marcado para o dia 13 do mês corrente, que a congela por 20 anos, completa-se, assim, o massacre do tripé que compõe a seguridade social, sem o qual o Estado de Bem-Estar Social, em qualquer país do mundo, não passa de figura de retórica.
A PEC N. 287, desabrida e despudoradamente, faz tábula rasa dos fundamentos, princípios, garantias e barreiras constitucionais, tratando-os com absoluto descaso. Se e quando as suas regras forem implantadas, a dignidade da pessoa humana, que é o terceiro fundamento da República Federativa do Brasil (Art. 1º, inciso III, da CF), será substituída pela indignidade, notadamente paras homens e mulheres do campo e os que dependem da assistência social, que são os mais violentamente por elas atingidos.
À valorização do trabalho humano, que é o principal fundamento da Ordem Econômica (Art. 170, caput, da CF), será imposta a desvalorização, pois que serão exigidos, nada menos, que 49 anos de efetiva contribuição, além de 65 anos idade, para que o segurado de qualquer um dos regimes previdenciários possa se aposentar com 100% do salário de benefício, que nada mais é do que o resultado da média aritmética simples de todas contribuições feitas à Previdência Social. Hoje, como se detalhará mais à frente, são necessários 30 anos para homem e mulher; sendo necessários, também, 60 anos de idade para a mulher e 65 para o homem. Com isto, haverá o aumento de 19 anos para ambos.
Em total detrimento do primado do trabalho e do bem-estar e da justiça sociais, que se constituem na base — o primeiro — e nos objetivos — o segundo e a terceira — da Ordem Social (Art. 193, da CF), será imposta a supremacia absoluta do capital, do mal-estar e da injustiça sociais.
Como a PEC N. 287/2016 visa a reduzir ao rés do chão os direitos e garantias individuais à saúde, previdência e assistência social, promovendo o retrocesso social, é flagrante a sua inconstitucionalidade, colidindo frontalmente com o Art. 60, § 4º, inciso IV, que assim dispõe:
“ § 4º – Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: … IV – os direitos e garantias individuais”.
É de ver-se que, se a PEC não visa a abolir esses direitos de forma integral, tem por escopo a sua redução abaixo do que é considerado como mínimo existencial, que é cláusula pétrea na Declaração Universal dos Direitos Humanos — aprovada pela ONU, em 1948, tendo o Brasil como seu signatário, desde esta data; no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais — aprovado pela ONU em 1966 e ratificado no Brasil pelo Decreto Legislativo N. 226/1991 e pelo Decreto N. 591/1992; e na CF. O que, a toda evidência, faz com que ela se revista de irremediável inconstitucionalidade.
A exposição de motivos, contida na proposta N. EMI 140/2016, do Ministério da Fazenda, enviada ao presidente da República, explicita, de forma cristalina e insuscetível de dúvidas, os verdadeiros motivos e objetivos da PEC sob comentários. Nela, são usados argumentos e conceitos puramente mercadológicos, desprezando, propositadamente, os fundamentos, princípios, garantias e objetivos da CF.
O item 4 da citada proposta acha-se assim exarado, de forma literal:
“Em perspectiva, é importante registrar que a expectativa de sobrevida da população com 65 anos, que era de 12 anos em 1980, aumentou para 18,4 em 2015. Nesse sentido, a idade mínima de aposentadoria no Brasil já deveria ter sido atualizada”.
Colhe-se desse texto que a vida útil do segurado exaure-se no momento que ele chega a 65 anos, o que lhe for acrescido é considerado sobrevida, ou seja, acréscimo para além do que interessa ao capital; e, com isso, é necessária e inadiável o aumento da idade mínima para a aposentadoria, com vistas a diminuir drasticamente o tempo que medeia entre a aposentadoria e a morte do segurado.
No item 7 da proposta, lê-se, de forma literal:
“Além da mudança demográfica, algumas distorções e inconsistências do atual modelo devem ser enfrentadas, as quais se destacam: regras para concessão e financiamento dos benefícios rurais; readequação dos benefícios assistenciais; a persistência de regimes específicos para algumas categorias; e a disparidade das regras que regem o RGPS e o RPPS”.
Esse item sintetiza os objetivos da reforma da seguridade social — até aqui, imprópria e restritivamente chamada de reforma da Previdência Social —, que se encontram enumerados no item 68 e que são:
I – Unificação das regras de benefícios previdenciários para o Regime Próprio de Previdência Social (RPPS) — que abrange os servidores públicos civis efetivos, da União, dos estados, Distrito Federal e municípios —, e o Regime Geral de Previdência Social (RGPS) — que inclui todos os empregados regidos pela CLT, os trabalhadores rurais assalariados e os produtores familiares, os contribuintes individuais, os autônomos, os facultativos, as donas de casa e os estudantes.
Essa unificação representa, antes de mais nada, a quebra do princípio constitucional da isonomia, pois que serão exigidas dos trabalhadores rurais as mesmas condições dos urbanos; das mulheres, as iguais às dos homens; da mulher do campo, as mesmas da primeira-dama, como se não houvesse entre todos eles e elas nenhuma diferença.
Nada é mais injusto do que o tratamento igual aos desiguais, sendo que a isonomia consiste exatamente no respeito a essas diferenças, exigindo de cada um de acordo com as suas condições e possibilidades, sem que isto implique redução de direito, em decorrência disso.
Frise-se que, sem qualquer razão plausível, ficam fora da comentada unificação de exigências os militares, que continuam mantendo inalterados os seus direitos e privilégios.
II – Fim da aposentadoria por tempo de contribuição, inclusive em atividades especiais (insalubres, periculosas e penosas), e dos professores de educação infantil, ensino fundamental e médio, que é considerada de tempo reduzido, não especial.
Para todas as aposentadorias, de homens e mulheres, do campo e da cidade, que não envolvam atividades especiais, serão exigidos, cumulativamente, 65 anos de idade e 25 de contribuição.
Além disto, será criado um gatilho, que aumentará a idade exigida em um ano, a cada ano que se acrescentar na expectativa de vida — que a PEC chama de sobrevida —, tendo como a referência o total de 65, na data de sua promulgação. A título de ilustração, tomando-se a expectativa de hoje, de 18,4 anos, quando ela chegar aos 19,4, a idade mínima para a aposentadoria será de 66 anos, e assim sucessivamente.
As atuais regras da aposentadoria por idade exigem:
a) 65 anos de idade e 15 de contribuição, se homem, e 60 de idade e 15 de contribuição, se mulher, para os trabalhadores urbanos, incluídos os do serviço público;
b) 60 de idade e 15 de atividade, se homem, e 55 de idade e 15 de atividade, se mulher, para os trabalhadores rurais, que são considerados segurados especiais.
c) 55 anos de idade e 30 de contribuição, no exercício de atividades docentes, se homem, e 50 anos de idade e 25 de contribuição, se mulher, para os(as) professores(as) públicos, que atuam na educação infantil, no ensino fundamental e no médio (Art. 40, § 4º, inciso II, da CF).
d) 30 de contribuição, no efetivo exercício de atividade docente, se homem, e 25, se mulher, para os(as) professores(as) de educação infantil, ensino fundamental e médio, da iniciativa privada, com incidência do fator previdenciário (Art. 201, § 8º, da CF).
Para os que exercem atividades especiais, a idade exigida não poderá ser inferior a 55 anos, com tempo de contribuição mínimo de 20 anos.
III – Exigência de 49 anos de contribuição, além de 65 de idade, para os segurados urbanos, do RPPS e RGPS, para fazer jus a 100% do salário de benefício, que é a resultante da média aritmética simples de todas as contribuições previdenciárias, devidamente atualizadas.
- Pelas regras atuais, são exigidos 30 anos para homens e mulheres; pelas novas regras haverá o acréscimo de 19 anos para os dois.
Hoje, o homem que comprova 65 anos de idade e 15 de contribuição e a mulher, 60 de idade e 15 de contribuição, fazem jus a 85 por cento do salário de benefício; pelas novas regras, nem terão direito à aposentadoria.
Para tanto, como já se disse, serão necessários, para ambos, 65 anos de idade e 25 de contribuição.
b) Os homens e mulheres que se aposentarem, pelas novas regras, com 65 anos de idade e 20 de contribuição, farão jus a 76% do salário de benefício, contra os 85% de agora.
c) Os(as) trabalhadores(as) rurais terão de comprovar, cumulativamente, 65 anos de idade e 20 de efetiva contribuição, para que possam fazer jus à aposentadoria, com o valor de um salário mínimo.
Hoje, como já anotado, são exigidos 60 para o homem, e 55 para a mulher, e mais 15 de vida rural, em atividades familiares. Portanto, haverá colossal retrocesso.
IV – Os homens com 50 anos de idade ou menos, e as mulheres com 45 anos ou menos, por ocasião da promulgação da EC, que resultar desta PEC, terão de cumprir integralmente as novas exigências.
V – Os homens com mais de 50 anos de idade e as mulheres com mais de 45 na data da promulgação da EC, para se aposentarem com as regras atuais, terão de cumprir cinquenta por cento a mais, do tempo que lhes faltava nesta data.
VI – Fim da possibilidade de acumulação de aposentadoria, ou auxílio doença e pensão por morte; os segurados, mesmo que façam jus aos dois benefícios, terão de fazer a opção compulsória por um deles.
VII – A pensão por morte será correspondente a 50% do valor do benefício previdenciário a que tinha ou viesse a ter direito o(a) falecido(a), mais 10% por dependente, até o limite de 100%.
Na medida que os dependentes completarem a maioridade, que é de 21 anos, as suas quotas serão suprimidas, de tal sorte que, quando apenas o cônjuge ou companheiro fizer jus a ela, o seu valor será de 60%.
Pelas regras atuais, a pensão por morte corresponde a 100% do valor da aposentadoria, já usufruída, ou que viesse a usufruir o(a) falecido(a), a ser dividido entre todos beneficiários, em partes iguais; a quota parte do beneficiário que atingir a maioridade vai para os demais.
VIII – Pelas novas regras, o benefício da prestação continuada (BPC), pago pela assistência social, no valor de um salário mínimo, aos maiores de 65 anos, ou deficientes, com renda familiar igual ou inferior a um quarto de salário mínimo per capita, que não são segurados da Previdência Social, além de ser desvinculado do salário mínimo, exigirá um ano a mais, na idade, a cada dois anos, contados da data promulgação da EC, até atingir o limite de 70 anos, ao final de dez anos, após esta data.
Se é que se pode falar em uma medida mais criminosa que as outras, dentre as tantas que povoam a PEC sob contestação, a da assistência social é, sem dúvida, a primeira.
Por ela, o valor do BPC, hoje correspondente ao salário mínimo, poderá ser fixado em lei, em metade ou quarto deste, ou até menos, o que transformará em indigentes absolutos os que dele dependem.
Em brevíssima síntese, este é conteúdo da PEC N. 287/2016, que, repita-se, reforma — melhor seria dizer deforma por inteiro — a seguridade social e não apenas a Previdência Social.
Com o Congresso Nacional e com o Supremo Tribunal Federal os trabalhadores não podem contar, para barrar este que, indiscutivelmente, se constituirá no maior crime social dos últimos 50 anos, pelo menos; somente contarão com as suas forças e com a sua disposição de barrá-la.
À luta, em defesa do Estado Democrático de Direito, que se encontra em franca destruição pelo ilegítimo governo Temer e os seus comparsas.
*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee