Peçonhentos e carnívoros: A fauna dos três poderes da República
Por José Geraldo de Santana Oliveira*
O médico e romancista Afrânio Peixoto — por quem Lima Barreto nutria indisfarçada antipatia, chegando a satiriza-lo, impiedosamente, no conto “O homem que sabia javanês”, no livro Parábolas — dizia que Joaquim Murtinho — também médico e político, tendo sido senador e ministro da Fazenda de Campos Sales —, era misantropo (que tem aversão a todos os demais) e que sempre procurava em seus interlocutores o bicho que cada um possuía dentro de si; para ele, o mundo era um jardim zoológico, e, por isso, na administração, no exército, na sociedade havia pavões, sabiás-cicas, sapos, zebras, garoupas etc.
A essa fauna, o referido político teria de acrescentar, hoje, uma pletora de outros, notadamente na administração pública, no Congresso Nacional, no Poder Judiciário e na mídia, tais como: leão, lobo, urutau, cascavel, tigre, sucuri, camaleão, arraia, cuco, meleta, tamanduá, escorpião, traíra, piranha etc.; e, ainda, acrescentar-lhes os que compõem o folclore nacional, com destaque para: lobisomem, boi tatá (cobra de fogo), mula sem cabeça.
O desafeto de Lima Barreto, na citada Parábola, não explicou qual seria, para Joaquim Murtinho, o porquê da comparação dos seres humanos com os animais mencionados. No contexto atual, isso é dispensável, posto que a identificação, entre uns e outros, salta aos olhos de todos, no âmbito dos três poderes da República.
No entanto, é preciso registrar que, na fauna real, mesmos os animais peçonhentos não matam por mal, nem sacrificam uns, em benefício de outros; a sua conduta decorre de atemporal arranjo da natureza.
Já na fauna metafórica, todos os animais, pela essência do sistema que servem e por criminoso e dissimulado arranjo político, são peçonhentos e carnívoros — até o pavão o é — e matam para se fartar do sangue alheio, normalmente em forma de trabalho e de riqueza produzida em benefício de uma minoria sanguessuga e usurpadora.
Na fauna natural, o camaleão muda de cor ao sol; os demais, em regra, em todas as circunstâncias e ocasiões, mostram-se como realmente o são.
Na metafórica, salvo honrosas exceções, todos são personagens, no sentido dado pela Odisseia: máscara; mudam-se de cor ao sol — como o camelão —, traem com convicção, cedo, à tarde e à noite, e são dotados de grande quantidade de seletivo veneno, que é letal para a Ordem Social Democrática e, ao reverso, é refrigério, elixir e seiva para o capital e o seus sequazes.
Aos atuais homens públicos brasileiros, em grande medida, aplica-se a refinada ironia do romancista russo Anton Tchecov, assim exarada: “Eles são honestos: não mentem sem necessidade”.
Como cada medida que tomam é para prejudicar o povo trabalhador, sempre têm necessidade de mentir para tentar iludi-lo a acreditar na sinceridade que não cultivam — ao contrário, abominam-na — e na inexistente justeza de suas injustiças.
Tais homens públicos dão razão à mordaz sentença de La Rochefoucauld, segundo a qual a hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude. Para eles, haja hipocrisia.
*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee